terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Dois Borra-Botas

Faz bem uns três meses que não vejo meu amigo Gahleb El Assal e quando por fim mato a saudade estamos ambos sentados no alpendre de sua propriedade tomando um café turco e falando com o habitual esnobismo de aristocratas alienígenas sobre o barbarismo do mundo onde, por alguma força de uma punição icognoscível, somos obrigados e viver. Como todos os grandes amigos, nosso assunto é o mesmo, mas desfiamos-o como se recém o tivéssemos descoberto. Ele podara metade do dedão do pé num acidente doméstico, assim como, na mesma época do ano passado, entortata o dedinho da mão esquerda numa queda. "Restam-me, pois, a certeza de que viverei ao menos mais dezoito natais", diz, espalmando as mãos e mostrando os pés. Ele corre até sua estante atulhada de revistas e me traz uma Época, molha as almofadas dos dedos e passa freneticamente as páginas. "Onde está, onde está! É sobre aquele judeu, como chama, Christopher...". Hitchens?, completo. "Isso, isso! Aquele velho ateu que se estrepou!", diz, satisfeito. Procura por mais uma pilha de revistas mas não acha um artigo em que Hitchens quer passar de erudito em interpretação do Alcorão e se dá mal. Segundo Gahleb, Hitchens critica arduamente a má interpretação advinda do emprego equivocado da acentuação de duas palavras árabes. Essas letras deveriam ser entendidas atônicamente no texto do profeta, diz Hitchens, e esse erro determinou uma distorção doutrinária fundamental no islamismo. "Acontece", diz Gahleb extasiado, lançando a revista por cima da mesa, desistindo da procura, "que das 29 letras do alfabeto árabe, 16 são acentuadas, e o não uso do acento nessas letras invalida por completo qualquer sentido da conversa". Ele arranca uma folha de uma agenda encontrada às pressas e desenha em garrancho as 29 letras. "Hitchens, querendo passar por algo que não é, um erudito de uma lingua que não entende, diz uma enorme besteira e todos digerem isso como uma verdade, por vir de Hitchens". "O mundo todo está louco, tirando eu", ele diz, e sua cozinheira o rebata lá de dentro da casa com algum complemento jocoso que não conseguimos ouvir mas rimos em resposta. Ele enrola um fumo odorífero enquanto conta sua última proeza: um pastor evangélico fora lhe visitar e Gahleb lhe passara uma importante informação bíblica. Disse que, segundo o autor Benjamin Astor, que escrevera o profundo estudo A Gastronomia de Salomão, o prato preferido que o rei dos homens sábios oferecia em seus banquetes era carneiro assado com batatas, cenouras e milho. "Uma iguaria sem igual". E dava pormenores da receita ao pastor, que na certa, como era sua intenção, iria passar adiante no púlpito com a seriedade de quem domina a Palavra. "Pelo interesse demonstrado às minúcias da iguaria, ele iria fazer com que todos os seus correligionários fizessem carneiro assado com milho, cenoura e batatas na ceia de natal". E ria à socapa, batendo as mãos nas pernas. Eu complementava, limpando os olhos das lágrimas que me provocava, que ele deveria ter juntado o abacaxi, ao que ele devolvia que deveria ter trazido todos os restantes das frutas, raízes e vegetais que só seriam descobertos pelo mundo ocidental  mais de dois mil anos depois. "Carneiro com mandioca e abacate, na ceia de Salomão, e como acompanhamento um bom cálice de chocolate asteca". "De todo o templo de Salomão mal sobrara um único muro", ele diz,"e o coitado acha que um tal de Benjamin Astor, que não passa do nome de um delegado federal da série de livros de bolso dos anos 70 do sr. Stefane, se embrenhou numa pesquisa árdua sobre o que o bendito comia". Vou embora com a alma lavada, depois de mais de duas horas de conversa da mais pura leveza, onde tudo nos parecia perfeitamente explicável desse nosso lado de cá.

4 comentários:

  1. Penso que 80% dos saberes eruditos são só ostentação, além do que não são saberes e nem eruditos, mas chutes de arrivistas e espertalhões. O conhecimento humano é vasto, mas uma boa parte dele não é conhecimento, mas aposta, e tem cotações no mercado especulativo da Bolsa de Valores: valem dinheiro até que alguém descobre ter sido vítima de uma pirâmide. Todo mundo vai se foder, mas alguns acharam que podem se foder com mais classe que os outros inscrevendo o nomezinho na história, se esquecendo que a história, a longo prazo, deixará de existir, e qualquer pretensão à glória só desaguará numa frustração sem manifesto, pois mortos não falam.

    Pois bem; hoje o dia está bonito, faz sol. Acabo de saber que meu pai, de 78 anos, está com câncer generalizado. Morrerá, não sabemos quando, mas antes do que antes supunhetávamos, como dizemos por aqui. Tinha férias programadas que, certamente, serão adiadas sine die. E não sei quanto tempo vou aguentar de contemplação de um corpo que se decompõe enquanto a sanidade já se foi (nas últimas duas semanas, um tumor cerebral maligno eliminou o pouco que ainda havia de consciência nele). Caralho, é sim um desabafo e é sim inútil, enquanto espero pela chegada da minha esposa e do meu irmão, para que discutamos o que poderemos fazer quando já sabemos de antemão que é nada ou quase nada. Então me despeço.

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  2. A palavra que apareceu para validação da mensagem anterior foi, veja a ironia das coincidências programadas em softwares, foi fecol.

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  3. Marcos, essa é uma dessas situações que cobrariam o ato social vazio e descompromissado de te dizer que "não sei o que te dizer". Mentira. Eu sei, como já escrevi muito sobre. Foi o pior período da minha vida. Uma maneira muito cruel de perder vaidades. As idas ao Hospital do Câncer são cargas pesadas demais para qualquer um suportar. De certa maneira, teria sido mais humano se eu tivesse abandonado meu pai aos cuidados de sua esposa, mas claro que jamais teria feito isso. Tem meu apoio aqui para o que precisar, e isso não é conversa fiada.

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  4. Pois eu só posso dizer q sinto muito. Noutra oportunidade te daria um abraco. q ha de se fazer.

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