domingo, 18 de dezembro de 2011

A Breguice de Lars von Trier


Acabo de passar por duas horas sofríveis assistindo Melancholia, do Lars von Trier. É cinema de péssima qualidade. É tão raso  que cai nessas reavaliaçãos retroativas de me deixar com suspeitas se Dogville realmente é bom. Não é questão de ter-se que achar Melancholia relevante no cenário das produções cinematográficas atuais por este padecer da falta de melhores filmes: a mentira de superfaturar um produto para eufemizar uma crise de gosto não serve a propósitos efetivos. Se não existem hoje nenhum Bergman, nenhum Fellini, nenhum Tarkovsky, não vai ser elegendo um cineasta equivocado como Trier como gênio da hora que pressionará a providência a proteinizar a carência. Melancholia é o tipo de filme que não deveria existir, não por seu diretor ter falado as besteiras que falou sobre Hitler (até nas ofensas polemizantes lhe falta talento: quantos outros não quiseram a mesma porta para os holofotes relativizando Hitler?), nem por seus condenáveis maus tratos a animais em cena (que já seria motivo), nem tão pouco por filmes como Anticristo e Melancholia pretensamente mostrarem o Mal sem roupagens. Deveria não existir por ser, simplesmente, uma perda de tempo assistir à breguice de um filão de clichês que vai desde a histeria das heroínas; o uso de música erudita para salientar um simbolismo inalcançável; a incomunicabilidade total dos personagens que tornam simples atos sociais, resolvidos de outra forma com um  mínimo de diplomacia, em tragédias shakespeareanas; o uso do freudianismo como exercício de percepções nunca antes tida pela sétima arte, onde o grotesco e o estupro do gosto e do bom senso querem servir como arrebatamento estético e espiritual. Tudo em Trier é gratuito, raso, de péssimo gosto, amador, forçado, irrelevante, chato, que mostra muito mais debaixo de seu véu de defeitos do que quer a  constatação de que Trier falhou na escolha de sua vocação: revela que Trier não daria certo em nenhum outro setor da arte por ser ele um analfabeto cultural, alguém que digeriu da forma errada o aprendizado estético do apuro das obras que ensinam o sentimento e a plasticidade das paixões humanas.

Aqueles que exultam diante as cenas iniciais de Anticristo e Melancholia, que insistem em afirmar ser de uma beleza estonteante, deixam-se levar pela propaganda sintomática desses mesmos tempos de carência do cinema. Basta um jornalista escrever que as cenas iniciais de Anticristo são estarrecedoramente grandiosas, para um sem número de consumidores apressados acobertarem essa interpretação como verdadeira. E, quando se vê tal cena pela primeira vez, vem a sensação de anticlímax, pois a tal grandiosidade não passa dos mesmos recursos utilizados pelas agências de propaganda nos comerciais de xampoo, bancos e automóveis. A penetração explícita que recheia essa cena grandiosa, o pênis entrando pela vagina, é tão disparadora do acervo de nossa memória de cultura de massa quanto o é a cena que mostra as estradas ensolaradas pelas quais passa o novo automóvel da Nissan. O que é um coito em meio à música erudita e slow-motion para uma platéia saturada de imagens antes proibidas, acostumada a ter todas as cenas via um click? É pura exibição plástica datada e velha, como o são todos os filmes de Trier, pura tentativa de passar a uma platéia em busca do objeto genuíno da cultura superior a impressão de que tal objeto foi enfim alcançado. Como numa propaganda da Nissan, que aguarda-se a obrigatoriedade de um slogan eficiente no final das belas imagens do carro pelos bosques, o final da cena introdutória de Anticristo promove a intenção de catarse com a oferta da tragédia elegante da criança caindo para a morte através da janela do apartamento. Trier passa para uma platéia esnobe e tola, a satisfação de que, suportando suas longas horas de experimento estético elevado, não precisa-se perder tempo nas agruras da leitura. Faz justo o caminho oposto dos grande diretores, daí que cineastas como Trier colaboram muito mais para a decrescência da qualidade da arte do que qualquer outro. Diretores como Bergman, Fellini, Kubrick e Tarkóvsky usam de toda a sutileza da literatura. Triers jamais será capaz de compor uma cena como a das duas mulheres conversando na praia, em Persona, que, valendo-se apenas de um relato de uma delas, sem cortes de cena, sem feedback, constroi a passagem mais erótica da história do cinema. Para isso, Trier usaria da sua costumeira breguice freudiana para assombrar o espectador.

21 comentários:

  1. Escrevi algo sobre esse filme em meio ao último Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. Um texto curto:

    "Melancolia: Seu grande personagem é o diretor, Lars Von Trier, que realizou este filme como expressão autobiográfica de sua crise de depressão, transformada em história sobre personagens em desencontro diante de um encontro, este fatal, da humanidade com seu último destino. No começo, câmera bamba em uma festa de casamento, em sucessão de cenas semelhantes àquelas apresentadas anteriormente em outro filme dinamarquês do chamado Dogma 95, Festa de Família. Depois, o encontro das irmãs protagonistas com o fim inexorável que tem por símbolo a colisão de um planeta denominado Melancolia com a Terra. Misantropo, misógino, egocêntrico, tudo isso marca Lars Von Trier e sua obra de falso grande artista, evidenciando ainda um sarcasmo que encobriria uma inteligência superior que, é claro, não possui, e ele sabe disso, mas, por gostar da farsa (e do dinheiro que ganha com ela), continua a fazer cinema. Só tem a dizer que, para o melancólico maníaco-depressivo, o fim do mundo é a realização de um desejo; mais que isso, constitui o tranquilizante final, que o torna presciente diante do apocalipse e o único do mundo dotado com razão soberana e suficiente para compreender o mal; além disso, que o planeta se encaminha para seu inexorável fim porque seus habitantes humanos, tomados majoritariamente pela depressão, estão em rota de colisão com a sustentabilidade, e que de criaturas desesperadas só podemos esperar o cumprimento da profecia "O fim está chegando". A imagem é evidente: a irmã depressiva, nua à beira de um rio (ou lago?) seduz o planeta Melancolia para a realização do coito final. Será isso profundo?"

    Se fosse mais adiante, escreveria coisas semelhantes àquelas que você escreveu agora. É uma pena que você perdeu tempo vendo este filme; aqui, no Rio, era um OBRIGAÇÃO vê-lo, e criticá-lo um destoar visto pelos demais como tentativa de ser original. Não precisa. É um filme muito do ordinário, não é? Já prometemos que nunca mais iremos ver um filme de Lars von Trier. Por mais que nos olhem de cara feia, ou até com arrogância. Sabe, quando não partilhamos o mesmo repertório com "a turma" corremos sério risco de deslocamento. Isso é bem chato, mas muitas vezes não tem jeito.

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  2. Pois é, Rachel...

    Um dos meus benefícios aqui é poder não ser embolsado por essas exigências de iconização das grandes capitais. Assisti ao filme por um amigo tê-lo baixado, mas também aprendi de vez a não mais perder tempo com o Trier (um mérito meu foi não saber escrever seu nome corretamente, que tive de corrigir, hehe). Querer compará-lo, como fazem em geral, com Bergman e Tarkóvsky é um desrespeito ao cinema europeu de ótima qualidade. Assisti ao A Origem (do Planeta dos Macacos), e vi a enorme distância entre o cinema de entretenimento e essas empulhações. A Origem dá de mil!

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  3. Melancolia? Argh! Corno dinamarquês quando quer encher o saco não perdoa ninguém, principalmente os espectadores. Quem manda pagar pra ver o resultado de um chifre bem dado?

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  4. Pensei em alugar esse filme ontem, porém, "A árvore da vida" pareceu-me uma escolha muito melhor. Esse filme, a propósito, é excelente. Sem dúvida nenhuma a melhor fotografia dos últimos tempos e um roteiro incrivelmente belo.

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  5. Por coincidência estou com A Àrvore da Vida aqui comigo, Doni. Obrigado pela indicação.

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  6. Sem ser estraga prazeres, mas já sendo, A Árvore da Vida é uma boa merda.

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  7. Mais uma obra inspirada no Livro de Jó. Desde que eu li Fausto (declaradamente inspirado no mesmo livro bíblico) tenho engolido meu preconceito religioso.

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  8. Deixa eu ser voz discordante um pouquinho.
    Eu achava até então que o ensimesmamento e o solipsismo eram condições do senso estético moderno - dessa estética que vai desde a introspecção na literatura até o psicologismo dos murais do Pollock, dos metais livres do ensemble e do arranjo melódico no Free Jazz, etc, etc.
    Por isso não faz sentido para mim o ataque aos últimos dois filmes de Von Trier porque estes são autorais demais; porque eles são na realidade um estudo (uma excursão, como queiram) na mente conturbada de um maníaco-depressivo.
    O Realismo e o Naturalismo como propostas estéticas e, principalmente como acesso privilegiado ao vivido, são farsas. Que o diga o chato experimento literário objetivista de certa fase de um Robbe-Grillet. A obsessão de multiplicar as dobras do mundo na narrativa. De registrar qual um Hubble invertido a consecução mais monótona de todos os atos moleculares que compõem a cena de um senhor tomando uma xícara de café. Robbe-Grillet estava errado. Mas repetir isso é um pouco como chutar em cachorro morto. Robbe-Grillet aqui vale então como contraponto e provocação à crítica do psicologismo do Von Trier.
    Deixa eu adiantar logo que não gostei de Anticristo. Achei repulsivo, patológico em algumas cenas. Aliás todo o movimento do filme, da civilização e da cultura à natureza, à pré-moralidade e bárbarie nas cenas da floresta, foram indigeríveis. Acho portanto plenamente defensável a crítica de que Anticristo perverte o tributo do belo, que é ainda, penso, Platonista que sou, a vocação da arte.
    Os últimos filmes de Von Trier são repulsivos porque incorrem num solipsismo à oitava potência, não por algum vínculo improvável com a indústria cultural. Comparar o intróito de Anticristo - que aliás julguei como belíssimo sem ajuda do Segundo Caderno - com o último comercial da Nissan soa como loa mal resolvida ao olhar que tudo suspeita de um Zizek. Além do óbvio paralelo entre a técnica da câmera lenta das peças publicitárias, e o recurso da técnica nos últimos filmes do Von Trier, quais outros paralelos podem haver entre o cinema mais introspectivo dos últimos 30 anos e a indústria cultural que heroisa o coletivo anonimato?
    No mais, quem um dia foi autor de Dogville não precisa dizer mais nada como artista. O segundo caderno também gostou? Que importa? É preciso muita vontade de divergência, o culto ao avant-avant-garde, que pronuncia a obsolência de julgamentos culturais em cadência vertiginosa, para ignorar o impacto da narrativa de Dogville no cinema.

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  9. O Livro de Jó é a obra mais irreligiosa já produzida no Judeo-Cristianismo.

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  10. "A obsessão de multiplicar as dobras do mundo na narrativa. De registrar qual um Hubble invertido a consecução mais monótona de todos os atos moleculares que compõem a cena de um senhor tomando uma xícara de café. Robbe-Grillet estava errado."

    Muito bom isso. Pensei em Robbe-Grillet, em Claude Simon, no coisismo etc. Superados, claro! Nesse sentido a maior identificação de breguice de Trier está aí.

    Sei que devo me exorcizar de Zizék, mas a relação a um comercial da Nissan não passa por aí, pelo menos conscientemente. Passa pela também belíssima cena do suicídio de O Hotel de Um Milhão de Dólares, cujo roteiro é do senhor Bono Vox. Puro comercial de sabonete. É como escutar o fusion moderno sem poder apreciá-lo por mentalmente vincular-se demais ao sax soprano das trilhas sonoras de filmes pornôs.

    A cena inicial de O Anticristo me pareceu os video-clipes atmosféricos de bandas de prog-metal como Evanescence e Dream Theater. E a cena da morte do filho é um dos clichês recorrentes do drama sofisticado da alta cultura, usados com apuro por Cees Nooteboom, Hemingway (Ilhas da Corrente), alguns bons filmes de terror como The Descent, e uma infinidade da qual não me vem de imediato para exemplificar aqui_ versão invertida de Hamlet, que sempre consegue captar a concentração do espectador/leitor de forma rápida e bem sucedida. Um artifício que, porém, quando usado com evidentes fins gratuitos para promover a catarse, revela-se falso por inteiro. Por isso que a mim soou óbvio que a "morte do filho" fora usado por Trier com a plasticidade mercadológica pura de um slogan de comercial requintado, sem talento e sem contundência. Note uma coisa: a cena toda só é bela não por sua perfeição fotográfica e pela música de fundo, mas pela necessária conclusão lógica da queda do menino. Trier foi de um assistencialismo emocional gritante.

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  12. Luiz,

    Dogville realmente não se adequa à sua crítica. Não assisti nenhum dos filmes recentes de Von Trier, pois as críticas que leio realmente me convencem que não preciso perder o meu tempo.

    A obra mais irreligiosa da Bíblia é o Cântico dos cânticos! Um dos poemas mais belos da história.

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  13. De certo modo, atribuir irreligiosidade as esses dois livros é uma crueldade com a Bíblia. Já que todos gostam de apontar os defeitos, devemos ser honrados em reconhecer as qualidades também.

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  14. Charlles,

    A crítica do Freudismo exagerado eu entendo. Da obsessão fálica e do retorno imodesto à preocupação com o ato fundante da castração e tal.
    Que isso seja datado, de um Zeitgeist já batido, de mal gosto, vá lá.
    Mas não consigo ver na cena da queda do menino o instrumento da catarse fácil das peças publicitárias. A cena não serve como frontispício ao descensus ad inferos do luto da mãe? Luto esse que na realidade antecipa a morte da criança, e que é o desdobramento do inferno depressivo do próprio autor, e que se manifesta na farsa de acidente que reveste a cena toda? Tenho para mim que uma peça, para ser catarse gratuíta, precisa no mínimo ser auto-suficiente. O intróito do filme é parte integrante do enredo.
    Mas acima de tudo é sacanagem duvidar da importância de Dogville e Manderlay.

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  15. Doni,

    Não acho exagerado quando Biblistas como o Jesuíta Jack Miles atribuem Jó como a refutação de toda a tradição Judaíco-cristã.
    A estrutura narrativa mesmo da obra como se sabe é artificial e posterior aos 37 capítulos de poesia que perfazem o bojo da obra.
    Em stanza após stanza, a sessão de tour-de-force poético refuta a bondade do Deus Judáico-cristão, a noção de Cosmos regulado por Sua justiça, o cerne do Judaísmo bíblico de que a existência é feita da retribuição justa que cada um recebe por seus atos, etc, etc.
    É por isso e tanto mais que fico curioso em achar a explicação, ademais espalhada na obra de Zizek, de que Jó é o nascimento da ideologia.

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  16. Fico meio ressabiado com o Terrence Malick.
    The Thin Red Line é um saco. A metamorfose da Guerra do Pacífico na monotonia que a primeira nunca foi.
    O Ocidente já se esgotou do direito de dizer a Segunda Guerra. Prefiro descobrir a Guerra do Pacífico pelo olhar da literatura Japonesa.

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  17. Teria que rever Dogville, q até agora repousa entre os meus preferidos, pra uma "avaliação retroativa", mas, de fato, pouco gostei de Melancolia, muito desgostei de Anticristo.

    dica de filme: não perca o argentino Um conto chinês. Abraço.

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  18. ah, sim, agora fiquei curioso pra saber o q charlles terá achado de A árvore da vida. Achei o papel de Sean Penn dispensável e aquele fim horroroso, mas até q interessante em outros aspectos.

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  19. arbo, quer saber de um filme que gostei bastante? As Origens, aquele dos Planetas dos Macacos.

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  20. Como dizia o Caetano, ninguém entende melhor sobre diversão que os americanos.

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  21. já tinha escutado tu falar. quero ver.

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