quinta-feira, 14 de abril de 2011

Pós-Guerra, de Tony Judt


A questão que se nos coloca desde a leitura da capa é: por que não uma história da Europa no século XX, e não apenas de 1945 em diante? Ainda mais que o contraponto imediato criado em torno de Judt é o de  ser um antagonista cordial ao historiador marxista Eric Hobsbawn, as quase mil páginas de sua obra capital não serviriam melhor à dialética com o autor de Era dos Extremos se também se ocupassem do mais violento e  desestruturador século da história como um todo? Em Reflexões Sobre um Século Esquecido, compilação de ensaios publicada no esteio das vendas exponenciais de Pós-Guerra, Judt lança a sua pá de provocação contra Hobsbawn ajuntando-lhe ao nome o termo "o romance do comunismo". Apesar de ser o maior historiador contemporâneo, senão o maior dos últimos cem anos, Judt diz de Hobsbawn, apesar de deter um talento narrativo único entre os colegas de profissão, o grande historiador pecava em muito pelo imperdoável lapso em sua bibliografia por não ter uma avaliação honesta e desapegada de ideologia quanto aos crimes e a perniciosa obsolescência da experiência dos regimes comunistas do século. Esse ensaio, e as declarações que Judt fez em várias entrevistas, fundamentou a atmosfera disjuntiva tradicional que os meios acadêmicos adoram alimentar entre dois intelectuais, o que por si não descarta a vocação inevitável de que qualquer livro que fale do século XX não pode evitar de dialogar firmemente com  Era dos Extremos, seja para confrontá-lo, ampliá-lo ou para corrigir suas naturais arestas omissivas (como o de um ensaio de Said, em Reflexões sobre o Exílio, em que o pensador anglo-palestino aponta as falhas de informações e os juízos superficiais dessa obra quanto ao Oriente Médio).

Hobsbawn: um opositor cordial
A resposta que surge da leitura de Pós-Guerra à questão acima serve para entendermos em quais aspectos Judt foi além a Hobsbawn. Todo o livro de Judt, com sua catalogação acirrada de centenas de fontes de pesquisa, sua estrutura de vontade descomunal, sua inteligência assimilativa de perfeccionismo em não deixar passar nada em branco na composição de sacrifício de uma vida de estudos, todo esse livro, ia dizendo, traz um prognóstico filosófico para o futuro da humanidade que o próprio período histórico escolhido emana significados. E nisso, a dureza da linguagem de Judt, seu sarcasmo (mais que ironia) depurado que ele prefere reservar às concisas notas de rodapé, serve no rico contexto de afirmar que ele não é Hobsbawn, que ele não tem a sutileza elizabetana e a finesse que identificam o estilo inigualável do historiador nascido em Alexandria, que ele não se propõe à invejável leveza dançarina de Hobsbawn em transcorrer elegantemente por contínuuns temporais que abrange num só extenso parágrafo tanto música, literatura, máfia e sucessão presidencial. No que se poderia dizer que Judt possa ter tomado como fio condutor para sua própria ampla sinfonia da obra de Hobsbawn, seria o último capítulo de Era dos Extremos, as sombras que assomam no horizonte da História e que, a contar por um caráter cíclico inevitável de comportamento do homem, cairão sobre nós a passos lentos que nos distrairão de sua verdadeira natureza fulminante. No campo da literatura, Hobsbawn estaria para a eufonia de Saul Bellow, enquanto Judt estaria para uma verbosidade calculadamente desmanzelada de Günter Grass.


Uma criança caminha ao lado de cadáveres de Bergen-Belsen
Essas "sombras" vaticinadas por Hobsbawn, e que são sentidas por todos em maior ou menor grau de premonição, é o mote do volume de Judt. Judt não perde tempo voltando o olhar para os eventos pregressos a 1945. A primeira e segunda guerras, o extermínio judáico, as etapas da descolonização, o fascismo, o nazismo, a Revolução Bolchevique, o implemento keynesiano do Estado Previdenciário, todos esses traços genéticos que determinaram o século passado são tidos como uma metade formativa inerente que fez ascender a curva no gráfico dos últimos experimentos sociais, humanos e políticos, antes que essa mesma curva começasse a mostrar sua queda deliberada de falta de perspectivas e vontade humana. Por isso os títulos dos primeiros capítulos de Pós-Guerra já sejam um cartão de visita à desilusão: O Legado da Guerra, Punição, A Reabilitação da Europa, O Acordo Impossível, O Fim da Velha Europa. A partir de então, Judt nos conduz pelos dolorosos processos de reconstrução nacionais dos países europeus destroçados ou seriamente combalidos pela guerra, mostrando as diásporas, os retornos, a hiperinflação, a adaptação traumática à ruína material e os despojos espirituais. O Era dos Extremos se inicia com uma memória de Hobsbawn a um gesto de sutileza inapreendido de François Mitterrand numa visita em 1992 a Sarajevo, no 28 de junho do assassinato do arqueduque Ferdinando, para, em contexto a esse ponto inaugural das guerras mundiais, o autor rememorar o quanto na passagem para o século XX o mundo ocidental estava exultante no progresso e na ciência aplicada ao humanismo. Já em Pós-Guerra, a frase inicial às 848 páginas da edição nacional traz o humor sem eufemismos que dominava uma humanidade despida de esperanças quanto a si própria: "Na sequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva da Europa era de miséria e desolação total." Todo esse parágrafo é uma radioscopia exemplar do que vem a seguir:

"Fotografias e documentários da época mostram fluxos patéticos de civis impotentes atravessando paisagens arrasadas, com cidades destruídas e campos áridos. Crianças órfãs perambulando melancólicas, passando por grupos de mulheres exaustas que reviram montes de entulho. Deportados e prisioneiros de campos de concentração, com as cabeças raspadas e vestindo pijamas listrados, fitam a câmera, com indiferença, famintos  doentes. Até os bondes parecem traumatizados_ impulsionados por corrente elétrica intermitente, aos trancos, ao longo de trilhos danificados. Tudo e todos_ exceto as bem nutridas forças aliadas de ocupação_ parecem surrados, desprovidos de recursos, exauridos."(p.27)
 
Judt pega os últimos 55 anos do século XX e mostra como esse período foi um negativo que se assemelha a sua primeira metade apenas no que tem de resistir às suas consequências. Vemos que em relação diametralmente oposta aos experimentos políticos das direitas fascistas ou das esquerdas centralizadas à União Soviética, a história do pós-guerra é um cenário onde os valores políticos, sociais e econômicos se transformam numa representação cercada de farsa e teatro. Esses anos, no dito de Kierkegaard adaptado por Marx, decanta o que havia de seriedade no processo histórico extenuado, e se transforma numa versão histriônica de si mesmo. Essa luneta é usada com enorme potencial esclarecedor quando Judt analisa as vistas grossas dos países vencedores da Segunda Guerra quanto à culpa da Alemanha pelas fábricas de extermínio de judeus e demais povos inferiores. Sem nenhuma cautela (à moda de Judt) por falar sobre o que ainda hoje se ressabia por detrás dos tabus das auto-afirmações alemãs, Judt nos mostra o quanto a questão da Shoá foi mantida em "distraído" esquecimento em prol de interesses de equilibrar as relações econômicas numa Europa em que ninguém estava capacitado à santidade acusadora dos pecados alheios. E um dos pontos fortes de Judt é sua sobriedade quanto às armadilhas do maniqueísmo da História, pois ele compreende bem que essa comédia era mais a única forma minimamente coerente de se corresponder às exigências do meio e do período do que propriamente um surto de hipocrisia.

A farsa da  "juventude esclarecida e combatente" de 1968

Outras partes impagáveis de Pós-Guerra formam o que se poderia chamar de "revisionismo sem surpresas de eventos históricos de compreensão consolidada", como o magnífico capítulo em que Judt desbaratina as "revoluções juvenis" de 1968, revelando de vez que todo o tumulto representado nas mídias populares como um movimento sistemático de universitários ideólogos por liberdade de expressão, sexual, de livre consumo de drogas, e direito feminino, surgiu não nas universidades, sobrecarregadas de jovens que mal possuiam uma perspectiva histórica suficiente para saberem sobre as agrúrias que seus pais passaram durante as guerras, mas por greves de estalajadeiros franceses e, em justiça à parte universitária, por acadêmicos que protestaram não pela paz mundial, mas por melhores condições nos albergues estudantis. Assim também, Judt relata um raríssimo caso de atúcia das massas, no advento dos Acordos de Helsinque, em que um pequeno grupo de refugiados ucranianos inicia um atropelo em série às ditaduras soviéticas graças às próprias armas criadas por Brejnev e companheiros que, achando estarem criando um simples joguete de apaziguamento a dissidentes do regime através de um acordo que deveria figurar como uma encenação patriarcalista, acaba por ser uma corda de pescoço e fonte da legitimidade internacional para a pressão popular.


Thatcher: "olhos de Calígula e boca de Marilyn Monroe"
Outro capítulo fundamental é o que trata do "Novo Realismo", os governos neoliberias de Margareth Thatcher e François Mitterrand. Uma das facetas principais de Judt é o de ser crítico da esquerda, sem ser de direita, e o de verificar os benefícios do neoliberalismo lamentando avidamente a defasagem do poder do estado. Seu estudo sobre Thatcher é revelador. Ele não consegue esconder sua admiração por essa mulher que, no dizer de Mitterrand, "tem olhos de Calígula e boca de Marilyn Monroe", mas o painel que ele deslinda em torno da grande figura mítica dessa mulher retorna ao seu tema recorrente do desencanto ideológico moderno. Thatcher foi uma figura de dominante solitária e imbativelmente decidida, que destruiu o Partido Conservador e "esmagou seus oponentes trabalhistas", em que o governo era ela mesma e mais ninguém, que desprezava a opinião popular com uma lucidez de perceber que não havia conteúdo no povo da inglaterra do final da década de 1970, e que trocava a seu bel dispor seu secretariado com uma frequência de monarca indistituível. Ela dilapidou o patrimônio estatal inglês, o que, enfocando a realidade não apenas virtual mas pragmática das estatísticas de crescimento econômico, tirou a Inglaterra do atraso de décadas e a impulsionou em dez anos de governo a um dos primeiros lugares entre os países desenvolvidos. Tirando o sistema de transportes, a saúde e o ensino público (intocáveis para os ingleses), Thatcher vendeu tudo, o que fez fechar milhares de postos de trabalhos vinculados ao Estado ineficiente e não competitivo, levando a uma taxa de desemprego altíssimo. As decisões a médio e curto prazos de alavancar a Inglaterra nos índices de produção econômica, sem se preocupar com os índices reais de desenvolvimento humano, fez da Inglaterra um país rico com uma grande massa de pobres dependente das beneses do governo, num paradoxo de menos estado previdenciário para mais pessoas destituídas de condições mínimas de sobrevivência retiradas pelo próprio fenecimento compulsório do estado.


Por final, Judt avalia os regimes de esquerda da Europa Central e suas derrocadas ao longo do período enfocado, o que também são capítulos de alto teor informativo e escrita afiada. Pode-se ler Pós-Guerra como uma história subliminar do marasmo humano após o esgotamento das ilusões e transformação das utopias comunistas em distopias assassinas. A única frente de fé que aponta pelo horizonte e faz milhões de asseclas é a ideia da globalização, e sobre isso, tanto no capítulo final de Pós-Guerra quanto em "A Questão Social Revisitada", em Reflexões Sobre um Seculo Esquecido, Judt faz uma condenação à grande estupidez desse tempo em dar as costas para a Questão Social, apostando as fichas no bezerro de ouro de uma era desregulamentada em que as empresas e as instituições estatais restringidas à manutenção da indevassabilidade do poder dessas empresas tomarão conta da vontade humana, transformando o homem na velha repetição de animal de carga desespiritualizado.

Como bem sabiam os grandes reformadores do século XIX, a Questão Social, diz Judt, se for deixada de lado, não desaparece gradualmente. Em vez disso, ela sai em busca de respostas mais radicais. É para nos elucidarmos dos ciclos pela frente que a História nos espera, com tais respostas radicais, que se torna imprescindível a leitura de Pós-Guerra, como antídoto à bestialidade e às sombras do nosso tempo

Tony Judt




23 comentários:

  1. http://sul21.com.br/jornal/2011/04/pos-guerra-de-tony-judt/

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  2. Já li várias coisas, entre artigos e entrevista de Hobsbawn, onde ele traça a enorme distância entre as idéias marxistas e as realizações russas sob a cobertura da bandeira vermelha. Essa antinomia não bate. Ok, em épocas passadas Hobsbawn foi mais cauteloso nas críticas, mas épocas passadas são isso, épocas passadas, ainda carentes de maiores informações e sob o regime da Guerra Fria de informações, com mentiras para todo lado. Hoje dá pra olhar pra trás e pensar: como fomos tolos em esposar a guerra de guerrilhas ou o foquismo no Brasil, isso estava desde o princípio fadado ao fracasso. Ora, sabemos disso agora, não antes...

    No mais, é aquilo que o muitas vezes citado Walter Benjamin dizia, d todo documento de civilização ser igualmente um documento de barbárie. Ler Dickens, por exemplo, nos dá um panorama a partir das ruas do que foi, em seu próprio tempo, a exitosa Revolução Industrial, com sua degradação humana, fome, exploração de crianças, desperdício de recursos ambientais, etc.

    Quanto aos idos de 1968, é óbvio que a juventude da época se sobrepôs à explosão dos movimentos operários, quer em tinturas trabalhistas quer comunistas ou mesmo revolucionárias; uns tomavam as porradas, outros editavam os slogans, e que belos slogans eram aqueles, vale o exemplo: “Seja realista, peça o impossível”.

    Nesse meio tempo, a URSS depois do caos revolucionário e passando pelo refluxo sangrento do stalinismo, já tinha desembocado em uma república de burocratas, cautelosa, pragmática e fazer corar Fidel Castro.

    Admirar Thatcher seria o mesmo que deixar-se seduzir pela Medusa. Ê bola fora! A falta de conteúdo popular tinha um nome: acomodação, e totalmente afim a acomodação das próprias classes dirigentes inglesas, todos esquecidos que, quando o sol se punha na Inglaterra, se punha também em todo o Império, perdida a guerra contra a geopolítica agressiva do País dos Idiotas. Thatcher veio então com seu realismo maior que o rei, com seu refrão “não há alternativa”, e um plano de recomposição imperial meia bomba. Seu liberalismo enriqueceu ricos, empobreceu pobres, repôs o país na rota do seu passado. Parabéns!

    Já a questão social, como nos ensina Efeagagá, está superada (o cara é impagável!). O negócio é fechar com a classe média e por nos trilhos nosso projeto de poder. Depois de nosso retorno, a Questão Social ressuscita, com todos os problemas que criaremos para os outros. Nós? Nós ficamos na boa, diria Efeagagá, se tivesse mais coragem; como não tem, enche de palavrório um texto insosso e tenta fazer com que ele volte a pautar a oposição, para a desgraça do Aécio Neves. Com Efeagagá teorizando sobre os novos caminhos da oposição, rá, teremos 20 anos de PT pela frente.

    O fato é que a Questão Social é eterna, da natureza mesma da democracia, em que os partidos políticos tem que aprender que não são representantes de classes, mas do conjunto da sociedade, e tem que pautar suas ideias na realização do Bem Estar Social, sem o que não há democracia, e a política está condenada a ser um jogo de interesses espúrio.

    Puta merda, é coisa demais, né? E não deu para escrever 10% do que deveria. É por isso que a Internet é uma bosta – nos condena às sínteses que não são nada além do que brutais simplificações – como tentar pintar um quadro à Hieronymus Bosch com a paleta de Jackson Pollock.

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  3. O pouco que estudei de história na minha segunda faculdade - na primeira, estudei absolutamente nada. Essa sempre foi uma das minhas grandes críticas ao curso. E pretendia sanar minhas lacunas fazendo história na minha 3 faculdade. Mas me faltou fôlego - foi princiapalmente baseado em Hobsbawn. Então não me vejo em condições de julgá-lo. Mas acho sua escrita tão interessante que ler que um autor é tão diferente e faz tanta questão de ser diferente de Hobsbawn só consegue me soar como ofensa. Posso ter dito uma merda colossal, mas pra um leigo é assim. A coleção das Eras sempre foi um dos meus sonhos de consumo.

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  4. tbm não percebi essa "antinomia", pelo menos no q li.
    [esperando os 90% restantes do marcos]

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  5. Devo ter passado uma impressão equivocada. Judt foi um autor absolutamente independente, não se pautava pelo Hobsbawn nem outro historiador qualquer. Apenas que o diálogo entre a obra dos dois é uma coisa inevitável. Não eram competidores, esse papel fica melhor para Christopher Hill e E. P. Thompson, os outros dois historiadores marxistas britânicos. Judt esbarra com Hobsbawn na crítica à esquerda, um debate vigoroso estava em formação entre esses dois grandes quando Judt morreu. Judt cita como fonte o Era dos Extremos. O que procurei dizer foi: Pós-Guerra é um prosseguimento da análise de Hobsbawn, ainda que sua posição desencantada seja de uma vertente mais ácida de Era dos Extremos. Acaba que soa como falar de Lennon e McCartney: dizer sobre os pontos de superioridade que um tinha sobre o outro não anula um em detrimento do outro. Hobsbawn, relembrem, é um dos meus preferidos. É bom ter os dois.

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  6. Milton, muito obrigado!

    Marcos, senta a pua.

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  7. Do Judt só lemos, aqui em casa, entrevistas e resenhas. Do Hobsbawn as Eras, entrevistas e resenhas, mais uns artigos dele publicados sobre questões contemporâneas, e acho que foi aí que o Marcos se contrapôs à crítica do Judt sobre as supostas reticências de Hobsbawn em analisar mais acerbamente a revolução russa e seus descaminhos, principalmente os desdobramentos depois de Segunda Guerra, Guerra Fria e a queda vexaminosa na décaada de 80. O Judt morreu, não é? O Hobsbawn é que parece que não morrerá nunca.

    Depois do comentário imenso (segundo ele, sintético) fico por aqui.

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  8. Sem chance de ir em frente. Só assinalar que li uma entrevista de Judt e sei que ele considera muito o Hobsbawn, só tem esse pequena pinimba sobre a leniência com que o velho Eric tratava a questão da esquerda nos velhos tempos, coisa que já tratei acima. Será que Judt, em 1968, tinha a visão que teve de 1968 no século XXI? Ou, como tantos, gostou da experiência, participou dela, etc? História é coisa engraçada: quando a vivemos, nada sabemos nela; quando passamos por ela, ela passa a existir e ser objeto de doutas considerações; com mais tempo, passamos a revisionistas e a atacar a nós mesmos e a maneira como pensávamos anos antes. No fim ficamos discutindo se o primeiro dia do mundo foi daquele jeito mesmo ou se, na ausência de fontes primárias, estamos a sobrevalorizar as secundárias e terciárias... É uma bela confusão, mas não é por isso que devemos nos abster de tomar decisões e firmar posições: erros cometeremos de qualquer maneira, então que o cometamos logo para que eles passem a ser História; senão, como já escreveu o poeta alemão, estamos condenados a nos repetir como farsa - não tenham a pachorra de se divertir com isso!

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  9. Bela resenha, Charlles, apaixonada e vigorosa, como costumam ser teus textos. Confesso que uma das muitas lacunas da minha formação (e o que mais se tem são lacunas) é o Pós-Guerra do Tony Judt. Tua resenha me anima a arrumar meu calendário e ir a ele.
    Hobsbawm, de quem eu, tu, a Caminhante e certamente também Judt gostamos tanto é uma sombra para ele, talvez não pelo que possa representar em termos historiográficos (é um ótimo historiador do século XIX, mas ele mesmo se confessa em terreno estranho quando escreve sobre o século XX). Mas talvez seja essa sombra porque Judt tinha horror político aos regimes do leste europeu no pós-guerra, e Hobsbawm é talvez o historiador mais ouvido fora do meio historiográfico, e não faz alarde das atorcidades e do planetário de erros que foram aquelas experiências (se bem que, como disse o Marcos, ele refira isso seguidamente).
    Como sabemos, os historiadores constroem suas versões da História não apenas pelo que escolhem dizer, mas também pelo que escolhem silenciar, e pelo que escolhem dar ênfase ou apenas referir.
    De qualquer modo, creio que será um bom exercício lê-los em contraponto, um completando o outro, como uma conversa. Obrigado pela sugestão implícita nos teus textos sobre História.

    O ótimo comentário do Marcos me lembrou uma passagem de "Paisagens da História", do historiador americano John Lewis Gaddis. Ali, ele afirma, contra todo o senso comum, que, para conhecer a História, ele não queria ter uma máquina do tempo, porque se a distância proporcionada pela posição do historiador em relação ao passado traz imensos limites, ela também traz vantagens, como o acesso a informações que os sujeitos imersos naquele presente-passado não podiam dispor. Ele compara os historiadores aos quadros em que Caspar David Friederich retrata pessoas solitárias de costa para quem vê a pintura, contemplando a imensa natureza, num retrato do hábito romântico de caminhar para apreciar paisagens que ficaram para trás. Interessante.

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  10. Farinatti, obrigado. Os temas da história são vastos, né. Eu particularmente sempre gostei da teoria da história, história do século XX e literatura e história. E não sou muito ligado a história regional, medieval, oral, etc. Não dá para ler tudo.

    Achei interessante a desculpa antecipada da Caminhante, se estivesse falando besteira. Não sou especialista em nada_ como dá pra ver nos vários defeitos do texto_, e me mantenho firmemente nessa condição. Os livros estão aí para todos, os acadêmicos os leem e se acham no direito de uma posse ortodoxa de seus significados por puro engano.

    Não sei quanto tempo vou ficar sem internet, talvez uma semana. Discuti com o provedor via rádio, cujo fornecimento de sinal é um fracasso completo. Pedi uma net via linha telefônica,e parece que demoram 7 dias para instalar. Aviso no caso de novos comentários, não acharem que meu silêncio seja só deselegância.

    Abraços.

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  11. Charlles,
    Eu tinha pra mim que essa coisa de escrever histórias de séculos já fora sepultada por Carlo Ginzburg, Jacques Revel, Natalie Zemon Davis, E. P. Thomson, etc.
    Não que eu queira diminuir a estatura intelectual de pesos-pesados como o Hobsbawm e Judt.
    Mas essa conversa de se escrever histórias totais é sem pé nem cabeça.
    Por mais imperativa que seja a necessidade de grandes sínteses, a empreita é megalomaniaca e desonesta.
    Será que ninguém leu Archéologie du Savoir???

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  12. Luiz, mas aí é que está a sutileza da coisa, e um ponto a favor de Judt. De novo vou incorrer no terreno delicado de, ressaltando uma qualidade de Judt, parecer que estou diminuindo Hobsbawn, o que não é verdade. Mas, enquanto Hobsbawn fez de Era dos Extremos uma síntese da história MUNDIAL do século XX, incorrendo em vários pontos mortos, como a crítica de Said à superficialidade de sua cobertura apressada e sem originalidade do Oriente Médio, Judt destina seu calhamaço a uma região e período mais delimitado_ com uma atenção ao tema da decadência das ideologias, enfocada nas centenas de páginas destinadas à narrativa crítica da distopia dos regimes comunistas.

    Lendo esse livro e Reflexões Sobre um Século Esquecido, percebe-se porque Judt se tornou uma especie de Historiador Maldito, devido ao peso de análise filosófica extrapolada da mera conduta historiográfica. Sua crítica sem meias palavras, sua capacidade de informação que pega o assunto poor todos os lados, o fez um oponente vigoroso e temido pela unanimidade de seus detratores.

    E, olhando-se bem, o século XX apresenta uma série diminuta de temas coesivos que descarta essa "história totalizadora". Falar sobre esses cem anos é falar do horror, da violência, da brutalidade, da alienação. Ao lado da linha de informações objetivas do livro corre em paralelo uma análise subjetiva desses aspectos da degradação humana que tornam Pós-Guerra um exercício indispensável de pensar a condição humana.

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  13. O Hobsbawm escreveu coisa muita mais séria do que a sua famosa triologia, essa compilação de história de almanaque, me dizem.
    Confesso que me desanimo toda vez que trombo com a trilogia em alguma livraria.
    Quando se aproxima o ofício do historiador da literatura, da crônica, ou da ensaística, por razões claramente metodológicas, quero dizer, como estratégia para destacar a complexidade do real ou para desmantelar mesmo qualquer pretensão do historicismo burro objetivista, acho a empreita providencial.
    Por isso o meu apreço ao Carlo Ginzburg e aos demais historiadores da revista Italiana Quaderni Storici que elevaram a escrita narrativa a método historiográfico na Micro-História. Como não ler o Queijo e os Vermes como uma espécie de tributo à sua mãe, Natália Ginzburg, a continuação de um ofício de família, e que o filho Carlo executa com a mesma elegância e destreza que a mãe romancista e poeta. Mas aqui a narrativa é também método além de tributo.
    A trilogia de Hobsbawm peca porque desconhece, na típica insularidade Bretã, qualquer coisa que não seja o empiricismo da escola Inglesa de história. Mas aí está aporia da coisa. O Hobsbawm da trilogia é o empiricismo sans o empírico. A ensaística elevada a história, mas sem que isso aponte ao metodológico.
    Não li o Judt e por isso me calo de fazer maiores críticas. Mas que é um anacronismo escrever um livro (que pretende ser um estudo sério de história) sobre toda a Europa no período do pós-guerra, ah é. A empreita é de um Braudelianismo sem tamanho.
    Pelo menos o último tratava de estruturas milenares arrastadas e dormentes e não de wounds and scars which have not healed.

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  14. Luiz, não há como negar que isso que diz tem muito de coerente. Meus livros preferidos do Hobsbawn não são nenhum da tetra-logia (visto que, com Era dos extremos, eles formam 4), mas os ensaios de Sobre a História e a autobiografia Tempos Interessantes. Mas, inerente à própria crítica, qual a motivação para que se escreva? Nessas sínteses pretenciosas, ainda há muita coisa boa e engrandecedora. E, lembremos que uma das justificativas de Hobsbawn para sua história do século XX ( a ele, o primeiro a quem não fugiu o absurdo da empreitada), é que grande parte dos eventos narrados foram vividos, direta ou indireatmente, por ele, visto corresponder ao mesmo tempo de sua vida.

    Gosto muito de Ginzburg. Minha preferência é para seus livros multitemáticos, como Olhos de Madeira e Os Fios e os Rastros. Nesse primeiro, há um texto impagável intitulado Para Matar um Mandarim Chinês, que ele trata de uma das noções mais importantes do humanismo: a indiferença entre os indivíduos criada pela impersonalidade da distância.

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  15. Occhiacci di legno é um primor mesmo.
    A sacada do título dessa coletânea por si só já é genial. O jogo com o Pinóquio de Collodi em amarrar os nove ensaios sobre distância cultural e o olhar do historiador...

    Grande olhos de madeira, por que olham para mim?

    Meu ensaio favorito é aquele onde o Ginzburg disseca o discurso de João Paulo II na primeira sinagoga de Roma, discurso que serviria para fechar o gap histórico entre o Vaticano e os Judeus e que tratava de servir como pedido de perdão pela omissão ante o Shoah, mas que ele desvenda cruzado pelo milenar discurso anti-Judaico.
    Sabe que eu quase fui estudar com o Ginzburg em UCLA? A gente trocou mais ou menos uns 10 e-mails em 2004. Mas então ele já estava de sabbatical leave para Bologna...

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  16. Não estou com o volume aqui, mas é algo como "um lapso de Wojtyla". Excelente e sutilíssimo ensaio. Numa coletânea de ensaios antiga, há muito esgotada por aqui, ele trata sobre o blecaute total de 1977 em Nova York. Lestes?

    Engraçado, pensei, não sei por que vias e de quem a culpa, que estivesses aí se especializando em Foulcault.

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  17. Ah! Coloquei ensaios "multitemáticos" por Ginzburg partir de um tema e embarcar alguns outros.

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  18. Charlles,
    Exato! Esse mesmo o título.
    O ensaio do Blackout de 77 em New York eu desconheço. (Interessante?)
    Foi o Ginzburg que me empurrou para o Foucault. Em O Queijo e os Vermes ele tergiversa sobre os equívocos heurísticos de Moi Pierre Riviére...
    Na época em que li a introdução do Queijo e os Vermes eu pensei-me completamente convencido pelo Ginzburg - há de se convir também que a historiografia de Foucault no projeto do Collège de France que possibilitou o Moi Pierre Riviére apontava de fato para uma história puramente estetizante, que se escusava de fazer quaisquer juízos de valores. Mas penso hoje que talvez o Ginzburg lera Foucault influenciado pela lente de Hayden White. A heurística de Foucault não me parece irracional como quer Ginzburg em o Queijo e os Vermes.

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  19. Li a “Era dos Extremos” de Hobsbawn. O que sobrou em mim foi algo semelhante àquela sensação que se tem depois da leitura das miúdas letras do contrato de um plano de saúde, isto é, um vazio intelectual junto à pergunta “será que esse cara está tentando me enganar” ou “ esse cara sabe realmente sobre o que está escrevendo”.

    Parece-me ser uma onipotência intelectual, ou como ressaltou muito bem o Luiz, um anacronismo escrever um livro (que pretende ser um estudo sério de história) sobre toda a Europa no período do pós-guerra.

    Escrever História é, principalmente, tentar compreender processos históricos.
    Um texto sobre um determinado processo histórico, bem fundamentado em 100 páginas, é mais importante que 1000 páginas a relatar acontecimentos sem a costura de uma reflexão objetiva, dentro do possível associado a um determinado contexto.

    Creio que os historiadores deveriam aprender com os poetas, ou seja, é melhor cantar criativamente sobre rio da própria aldeia, pois certamente compreender-se-á assim essa nossa, tão nova, aldeia global.

    Com erros? Certamente. Mas com erros sinceros! É isso.

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  20. Em tempo ainda:

    primeiro, uma errata:
    onde se lê “sobre rio da própria aldeia”, por favor, leia-se “sobre ‘o’ rio da própria aldeia”;

    segundo, uma reflexão:
    não foi - não é e não será – com os seus erros que o ser-humano (assim mesmo com hífen) construiu, constrói e construirá a sua escada ao conhecimento? Não serão os erros os verdadeiros degraus existenciais à sabedoria? Será que o culto aos acertos não seria uma predadora ideologia branca que se auto-considera receptáculo da evolução humana? Será que o ser-humano já nasceu?

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  21. q bom q voltou, ramiro, há uns 3 posts te mencionava com deferência. não desapareça.

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  22. Charlles,
    encontrei uma coisinha que talvez lhe agrade:

    http://losslessjazz.net/van-morrison-new-york-sessions-%e2%80%9867-1999-2-cd-flac/#more-6474

    Abraço,
    Rodrigo

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  23. Rodrigo, muito obrigado! Pensei: como ele sabe que sou fã de carteirinha do Van Morrison, daí me lembrei que já postei sobre ele. Esse disco eu não conhecia. Tenho uns vinte cds originais do cara, os que pude comprar por aqui ao longo de 20 anos, e o resto obtido com os orixás virtuais. Obrigado novamente.

    Luiz, fico te devendo uma tréplica, assim como ao Ramiro (compartilho a alegria com o Rômulo, que bom que voltastes!), pois, como já disse, estou esperando a instalação da internet em casa, uma mais potente que o cágado que eu alimentava com raiva. Já chegou a linha, o sinal da internet e o só falta o moldem (sic). E eu não tenho muita paciência para escrever aqui nessa lan-house.

    Abraços a todos!

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