Cortázar é uma presença tão peculiar no cenário da literatura latino-americana que faz com que sobre ele recaia uma série de interpretações equivocadas. Assim como os que olham bem apressadamente Borges_ esse conterrâneo tão diametralmente oposto_ tendem a pensar que sua obra se circunscreve aos dois volumes de contos fabulosos, O Aleph e Ficções, a esses parece que Cortázar não escapa a um exame mais sério além das duas coleções de narrativas que o tornaram relevante: As Armas Secretas e Bestiário. Pois quem se preza a conhecer mais do que o canonizadamente convencional, sabe da ensaística indispensável e da capacidade que beira o milagre de Borges em compor resenhas de vinte linhas que vão além da saturação que o próprio livro analisado oferece; e os outros tantos contos encantadores que Cortázar escreveu que estão à margem de sua produção estabelecida, confortavelmente lidos, relidos e amados pelos seus leitores fiéis, assim como essa peça inclassificável de humor filosófico-surrealista que é História de Cronópios e Famas (uma antecipação de dez anos ao humor anárquico de Monty Python), e esse romance que não se repetiu nem pelas mãos de Cortázar nem por quaisquer outras que se seguiram, O Jogo da Amarelinha.
Cortázar tem essa característica de não se render a classificações. Não se limitou a ser um simples escritor, mas todos os seus experimentos em outras áreas de expressão convergiam inadvertidamente para a escrita. A fotografia (como em Prosa do Observatório), a narrativa oral (como nas tantas horas de gravações a que submeteu vários excertos e textos inéditos ao som de sua própria voz), a colagem de citações (como nos capítulos fragmentários de Jogo da Amarelinha), a editoração gráfica (como em O Livro de Manuel), e essa espontânea prefiguração de uma escrita virtual que nos diz que ele teria se dado bem com as mídias da internet, antecipando o blog em Volta ao Dia em 80 Mundos e Último Round. Ele foi um desses autores para os quais o talento era tão fluído, sinérgico e ilimitado, a ponto que o caminho lógico era o de ir-se contra a literatura até destruir qualquer traço dela através de uma saturação implosiva. Mas, ao contrário de Joyce (ou, num campo menor, mas usado aqui para maior elucidamento, Salinger), Cortázar não optou pela aporia do sarcoma verbal ou pelo silêncio, mas pelo que ele descreveu em sua fase tardia como escrever cada vez pior. Sua prosa ficou cada vez mais intimista e desnorteada, de forma que, enquanto seus parceiros intelectuais passavam pela radiografia distintiva de remeterem-se às influências dos antepassados imediatos ou distantes, Cortázar já não assegurava nenhum porto seguro para que a crítica identificasse se ele deslindava o labirinto da escrita pelos fios de Faulkner ou Sartre, de Joyce ou Borges, de Dos Passos ou Camus. Em vez de oferecer esses marcos de estudo facilitadores e reconhecíveis no ambiente comum das letras, havia a exigência de uma cultura mais ampla e multitudinária para apreender quais as novas órbitas pelas quais Cortázar passava. Só assim, com a mente disposta a aceitar o confronto em zonas desconhecidas, muitas das quais não acatadas como ambientes psíquicos de refinamento aceitável, se podia ver que Cortázar escrevia tendo em mente (ou, como) Louis Armstrong, Charlie Parker, ou algum afluente disparatado de alguma escola minúscula e desconhecida de fotógrafos franceses, ou como Kandinsky, Miró ou M.C. Escher. Nesse sentido, nenhum outro escritor latino-americano se aproxima de Cortázar no que ele teve de inovador, desbravador e ampliadar das fronteiras para a escrita desse continente. Através de Cortázar, a literatura latino-americana se alçou ao nível de grandeza especular da literatura produzida nos Estados Unidos no século passado, tendo a ressaltar que Cortázar escreveu O Jogo da Amarelinha antes que o Pynchon de O Arco-Íris da Gravidade surgisse, antes de Don Delillo e Foster Wallace. Assim como os grandes escritores ajuntados no rótulo da contra-cultura norte-americana, Cortázar seria o autor contracultural por excelência da América Latina, no que teve de repúdio à cultura estabelecida, de negação ao apego à eufonia da linha reta das academias, das limitações impostas pela natureza a que o criador seja escravo de sua estética pessoal (como é o caso de Borges nunca ter conseguido ir além ao borgismo, e García Márquez ter sucumbido em vida à mumificação da eterna repetição de si mesmo).
Como Mário Vargas Llosa diz num ensaio sobre Cortázar, ele foi o escritor mais culto e com o legitimo conhecimento enciclopédico apontado em alguns raros autores europeus. Sua cultura era mais vasta que a de seu patrono Borges, pois enquanto o autor de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius tinha como fé inamovível desprezar grande parte da literatura moderna, Cortázar se empenhava em cercar as inovações do pensamento em todas suas vertentes. Em seu grande romance O Jogo da Amarelinha, ele destina parte da composição em emular a técnica de colagens de Walter Benjamin empregada em Passagens. E esse romance é o que temos de mais próximo ao romance ensaio, gênero para poucos autores, como Thomas Mann, Musil e, recentemente, Cees Nooteboom. Além da sutileza jungiana em contos que extrapolam os limites da percepção extra sensorial (como em Cartas de Mamãe), e dos contos que tratam o tempo como elemento coligativo endossado pelo relativismo da História e do mero cotidiano (como no magistral Todos os Fogos o Fogo). Essa erudição põe à prova o conhecimento de uma série de doutores de literatura que, vítimas das próprias insuficiências, enxergam no primorismo de Cortázar apenas o que demanda o limite de suas interpretações restritas, por isso não é de se estranhar que alguns apontem Cortázar como "escritor para adolescentes", da mesma forma que alguns acham intratável escritores como Pynchon, pelo que colhem na superfície de pornografia grotesca e escrita sobre o efeito narcoléptico. Cortázar não fez outra coisa, mesmo em seus anos de piora deliberada, do que produzir literatura genuína, de altíssima qualidade, que, aceite-se, às vezes acontece da própria peça sucumbir à voz do autor; às vezes saber que se está lendo Cortázar sobressai à unicidade do texto, e o mais importante passa a ser as impressões digitais do criador, seu humor, sua inteligência, sua muitas vezes tocante sensibilidade (quem não chorou lendo Final de Jogo ou A Saúde dos Doentes), e nisso parece que a fama está agindo e não o conteúdo.
E outra coisa dever ser dita: Cortázar nunca se rendeu a sua própria erudição e perdeu o coração terno. Poucos escritores mostraram-se tão humanos e delicados, e nisso também está a sua força.
Estou relendo os Relatos completos. Grande mestre da Literatura.
ResponderExcluirSempre tive a impressão de que era uma intelectual de araque. Que talvez a cultura erudita que eu tenho veio a mim de criação, que nunca a alcançaria sozinha, ou se nascesse em outro contexto. Aí conheci o blog do Milton, e os leitores dele por consequência e passei a ter absoluta certeza: sou uma intelectual de araque. Não conheço um terço das coisas que vocês referenciam.
ResponderExcluirAinda bem que eu danço.
Intelectual de araque sou eu: percebi haver escrito "enchergar" no texto do post. Você dança por prazer, eu também faço da mesma maneira quando leio. Mas fico com a opinião de Nelson Rodrigues quando disse que é possível se tornar bastante proficiente na escrita e cultíssimo, lendo incansavelmente o mesmo livro, "Crime e Castigo" por exemplo, ele disse.
ResponderExcluirCassioney, hoje estou revendo os livros de Cortázar que tenho aqui. Redescobri o volume dos Relatos em que consta "El Perseguidor", um livrinho de capa branca de bolso.
O que tenho de Cortázar na alma é:
ResponderExcluir“Todos os Fogos o Fogo”.
Por se poeta, só o título é obra-prima.
De todos os fogos, o fogo.
De todos os amores, o amor.
De todos os ateus, Deus.
De todos os inimigos, o amigo.
De todas as tempestades, a água.
De todas as mortes, a vida.
De todas as mentiras, uma verdade.
De todos os calabouços, a liberdade.
De toda a prosa, a poesia.
De todos os dias, um dia.
De toda a existência, a essência.
De todos os pesadelos, um sonho…:
NA COVA DA ALMA
by Ramiro Conceição
(Nos pingos do sonho,
uma criatura estranha
insiste em me visitar.)
“Filho, acorda! Sou eu!”
“Pai, você tá aí?
“Tô chegando…”
(Começo a desabotoar
o medo da alma…)
“Anda logo! Anda logo!
Estou debaixo da saída.”
“Tô chegando!
Tô chegando!”
(Entre o ódio e o amor
de um vivo âmago:
os mortos clamam!)
Muito bonito, Ramiro!!! (Acaba que me limito a dizer pouco isso, diante seus poemas, para não ser redundante.)
ResponderExcluirNão acho estranha essa noção de que parte de Cortázar seria para adolescentes, apesar de discordar dela. A literatura de Cortázar era lúdico e ele sempre foi muito, mas muito jovem na sua abordagem do mundo.
ResponderExcluirPorém, ele foi um sujeito estupendamente "conhecedor de tudo". Eu gostaria de analisar apenas uma coisa, a tal naturalização dele no final da vida que tanto ofendeu os argentinos. Por que virou belga???
E, olha, não sei em função de quê, mas seus livros não vendem muito não. Andam meio sumidos das livrarias bonairenses e montevideanas. Os mais lidos hoje -- e aquela parte da América Latina lê MESMO -- são Borges e Benedetti.
Abraço e parabéns pelo post (que roubarei).
Opa, li agora que ele morreu francês, não belga. Sei lá de onde tirei esta ideia.
ResponderExcluirWhat, do you imagine that I would take so much trouble and so much pleasure in writing, do you think that I would keep so persistently to my task, if I were not preparing – with a rather shaky hand – a labyrinth into which I can venture, into which I can move my discourse... in which I can lose myself and appear at last to eyes that I will never have to meet again. I am no doubt not the only one who writes in order to have no face. Do not ask who I am and do not ask me to remain the same: leave it to our bureaucrats and our police to see that our papers are in order. At least spare us their morality when we write.
ResponderExcluirBelo elogio ao Cortázar, Charlles.
Sem querer cair no lugar-comum, Rayuela segue sendo parada obrigatória para quem deseja experimentar o melhor da literatura Latino-Americana.
Sentimentalmente, pra mim, o romance se situa entre os dois mais importantes romances do continente. (Tenho certeza que algum estudioso fez a mesma asserção, mas sob o ponto-de-vista do inaudito que o romance inaugura).
Achei interessante a nota do Milton de que Cortázar não tem vendido bem. Fica mais fácil apropriar-me do escritor - como se já não tivesse me apropriado tantas vezes do intelectual avant-la-lettre Horacio Oliveira - e fingir-me em Paris, fingindo fingir-me perdido para poder assim encontrar la Maga.
Apropos... acho que foi o Milton que faz algum tempo postou o Cortázar brincando de Horacio Oliveira em Paris. Carol Dunlop faz as vezes de la Maga.
http://www.youtube.com/watch?v=sR547ALtbAY
A Maga...que nome inserido devidamente na frase inicial tão musical de Rayuela. Não é exagero afirmar que parte de mim está lá nesse romance, e, contidamente, sempre que escrevo sobre Cortázar tenho que me policiar, pois verdadeiramente é um dos que amo de forma quase acrítica (tem os Beatles, Miles Davis, Jethro Tull, Saul Bellow e Tchecov).
ResponderExcluirEngraçado, Milton, para mim Cortázar parece ter sido muito argentino em tudo que escreveu. Vou averiguar o que disses. Esses textos aqui são abertos, pode aproveitar quando quiser, sempre vai ser motivo de orgulho para mim.
Acho que foi lá que vi o post do qual se refere, Luiz.
Estou meio na corrida, mas rascunhei um texto sobre o fracasso de Kafka hoje no trabalho. (mais um pouco de sorte e transformo meus momentos de ócio em algo que Conan Doyle fez com seu tempo livre de oftalmologia). Vou digitá-lo e hoje à noite estará aqui, com o perdão da Caminhante que, pelo que conheço, já não deve estar aguentando de tanto papo furado.
Outra coisa: a obra de Cortázar está sendo toda reeditada aqui no Brasil, inclusive livros que ficaram desconhecidos por 30 anos. Não sei se endossaria essa informação de poucas vendas do Milton.
Ei, não vai diminuir o nível dos posts por minha causa! Daqui há pouco você vai começar a discutir BBB por aqui (pra isso eu tenho meus amigos de twitter). Escreva à vontade, eu sempre leio.
ResponderExcluirCharlles
ResponderExcluirConheci Cortázar por um de seus últimos livros, Deshoras, que não sei com que título foi publicado em português. Já era da fase em que estava desaprendendo propositalmente de escrever. E adorei. Depois, Bestiário e As Armas Secretas me apaixonaram inapelavelmente. De Todos os Fogos o Fogo só gostei mesmo de três contos (apedrejem-me, eu mereço, mas não quero mentir). Gosto dos experimentos narrativos, das diversas vozes que ele emprega. Gosto da música e do ritmo firme. Gosto, sobretudo, dele não ter abandonado a ternura, sem deixar de ser inteligente e culto. E como foste feliz em perceber e ressaltar isso, Charlles. Porque sempre veio daí mais do que de qualquer coisa meu amor por Cortázar e nunca lia isso referido como uma de suas qualidades.
Hahahaha. É porque, Caminhante, estou meio que distante de outros assuntos que não a literatura, mas tenho algumas coisas pessoais ainda para ocupar o assunto de outros posts.
ResponderExcluirFarinatti, também não gostei de todos os contos dos "Fogos", mas a leitura de Cortázar sempre me deixou de queixo caído, mesmo nos contos que não são tão imediatamente impactantes. A força de Cortázar sempre me pareceu ser a sua ternura, a sua extrema simpatia.
Mesmo com algumas edições recentes dele por aqui, acredito que ele é muito mal editado e divulgado. Gostaria que sua obra, como a do Borges, fosse para a Companhia das Letras.
ResponderExcluirTambém gostaria. A Civilização Brasileira tem destinado umas capas horríveis aos livros dele (ainda que gostei de Último Round e Volta ao Mundo, naquele formato de bolso). Mas não devemos esquecer que até a Cia das Letras peca, veja o caso dos livros de Bolaño, com aquelas capas insossas e feias.
ResponderExcluirDois textos no mesmo dia, depois de um longo silêncio? Impossível dar cabo de tanto assim pela manhã. Fica para outro dia. Breve comentário: não acho que Cortázar escreveu bons romances. Seu elemento era o conto. Penso que sua literatura, tão excessivamente nutrida por leituras aprofundadas de bibliotecas inteiras, no elemento romance se misturava e cansava. Nos textos pequenos, melhores, restava um travo: sua síntese muitas vezes resultava em simplificação; a busca pelo insólito ficava na superfície, porque ele o buscava, ao contrário de Kafka e Benjamim, que encontravam o insólito porque sempre viveram dentro dele, de onde retiravam narrativas e percepções notáveis. Cortázar resulta um tantinho "busca pelo efeito", fogos de artifício, expressão de vaidade culta. Não é descartável, porém. Mas não esqueça: escrevi isso sem ler o seu texto!
ResponderExcluir"Nos textos pequenos, melhores, restava um travo: sua síntese muitas vezes resultava em simplificação; a busca pelo insólito ficava na superfície, porque ele o buscava, ao contrário de Kafka e Benjamim, que encontravam o insólito porque sempre viveram dentro dele, de onde retiravam narrativas e percepções notáveis. Cortázar resulta um tantinho "busca pelo efeito", fogos de artifício, expressão de vaidade culta. Não é descartável, porém."
ResponderExcluirEstranho poder esse da dialética. Concordo profundamente com você, ainda que discorde completamente!
Isso fica um pouco chato. Tudo que conversamos em casa vejo aqui recomposto duma maneira asim, à traição. Bá, barbaridade, parece prosa de corno gaúcho. Mas, vá lá, Cortázar é legal, mas não tá no meu panteão, o que, é claro, não quer dizer bosta nenhuma. Ele me parece aquele portenho culto, a percorrer os cafés de Buenos Aires só para rir dos pedestres e daqueles que, como ele, frequentam as livrarias; ele, do lado certo dos livros, os outros do lado errado. Sua literatura expressa, sobretudo, o alto padrão que insiste em ver em si mesmo, sabendo de antemão que não é nada disso, pois Cortázar, como todo falso gênio, sabia muito bem que era um qualquer, necessitado de excelentes companhias para se por ombro a ombro com o mundo tão mais ininteligível quanto mais ininteligível ele o parecia ser em sua prosa engraçadinho, dada a preciosidades. Mas a gente já tá no século XXI e esses gracejos elegantes são dispensáveis e foram dispensados por nossa nova intelectualidade tão culta quanto analfabeta.
ResponderExcluirQue merda, Marcos! Esse tipo de falso xeque-mate em seu comentário não vale. Não há como retrucar, é um comentário do tipo beco sem saída. Muita sacanagem. Alguém aí tem alguma ideia?
ResponderExcluirTenho: é só dizer, ô, Marcos, tu não sabe porra nenhuma de Cortázar; leia o ensaio em * e te instrui, seu babaca, e não me venha com esse subpsicologismo babaca aprendido em fila do INSS.
ResponderExcluirEu diria mais ou menos isso aí.
Eu não seria tão descortez assim por uma chata percepção de que tenho a necessidade aqui de ser bom anfitrião (ia dizer "drogomano", uma palavra que aprendi há dez anos e nunca tive a oportunidade de usar, mas essa mesma educação compulsória me impediu de usar esse requinte fácil e inútil). No blog do Milton, isso na certa mudaria.
ResponderExcluirMas a questão é que realmente não concordo com você. Concordo com a Rachel, acho "Os Prêmios" ilegível, tentei ler mais não consegui, e alguns contos são realmente chatos_ mas até Tchecov!
Mas não acho Cortázar esnobe, falso genio ou o diabo...Ele nunca se propôs a nenhuma dessas coisas. Aliás ele sempre insistiu em se estabelecer num ambiente mediano, tal qual Benedetti, e quase conseguiu se não tivesse criado uma voz tão original e característica. Quando penso em Cortázar, não me apego a definições de grandiosidade. Só gosto muito de ler o cara.
Morreu Ernesto Sábato...
ResponderExcluirApesar dos 99 anos, nunca deixa de ser triste.
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