quarta-feira, 13 de abril de 2011

Meu Museu Pessoal de Escritores Esquecidos




Todo ano eu me mudava de casa e arregimentava os mesmos cinco carregadores que ficam sentados num banco de frente a uma tabacaria de paredes de adobe na parte alta da cidade, de modos que quando lhes disse que era a última mudança, que eu havia comprado uma casa própria, eles suspiraram tanto de decepção quanto de alívio: afora essa vez, não iriam mais ter que carregar o baú de  200 quilos cheio de livros que eles viam me acompanhar por todo esse tempo. Eu levava sistematicamente os meus livros principais em várias viagens de carro de uma casa a outra, o que custava um dia inteiro de trabalho solitário, mas o baú continha livros tão antigos e pouco visitados que não era de se desprezar o risco da poeira inerente tomar conta de tudo se fossem retirados sem preparo do seu sarcófago. Depois que retiramos os móveis principais e os colocamos nos lugares devidos da casa, olhamos com uma cara de desamparo  o grande quadrângulo de madeira que parecia emborcar para baixo a carroceria do caminhão, e respiramos fundo. Colocamo-lo num casebre que fica nos fundos da casa, o que resumir o esforço sobre-humano em uma frase tão retilínea desconsidera impunemente as veias do pescoço a ponto de explodirem, os nodos dos dedos das mãos à beira da gangrena, o risco de se adquirir uma hérnia de disco, e a minha necessidade pessoal de manter a mente aberta para compreender como estímulos de força os filho da puta e desgraçado que com certeza passavam pelas cabeças daqueles trabalhadores para resistirem à demasiada pressão sem que lhes comprometesse a integridade dos esfíncteres. No final, depois do lanche que minha esposa preparara e dos vinte reales para cada um, eles se permitiram a repetição tradicional da mesma pergunta: se no maldito baú só existem livros que não te interessam mais, por que você não queima toda essa merda de uma vez? E eu respondo a mesma coisa: e me poupar de fazer valer cada centavo que eu lhes pago?

A verdade é que só descobri a razão ocasional desses livros me serem tão importantes depois que já instalado meu local de refúgio nos fundos da casa. Junto ao som e à mesa do notebook, e ao carpete que sobreviveu às diversas marcas dos cigarros de solteiro onde me deito para sentir os respingos minúsculos da chuva que atravessa o telhado sem forro, esses livros dão a impressão de ausência de tempo, de a-contemporaneidade. São tão velhos que o motivo de estarem enterrados sem consulta deixou os critérios práticos e se tornou um vínculo compulsório: mais que o cobertor esfarrapado que só parece contrariar os que estão alheios ao poder de conforto no sono que ele tem, esses livros culminaram para mim no sentido mais limítrofe da literatura: serem a prova de que seus autores um dia existiram. Pois todos esses 300 livros do baú, depois que diligentemente os limpei e os coloquei em duas estantes no escritório, revelaram essa identidade comum: são livros completamente relegados ao esquecimento. Fui comprando-os ao longo dos anos em sebos por diversas cidades, todos por ninharias retiradas do fundo dos bolsos, alguns juntados em grupos de cinco ou dez que os livreiros organizavam apressadamente pelas semelhanças das cores das capas ou pelo avançado estado de desencadernação, sem saberem ou o sabendo, não pelo critério de qualidade mas pelo triste índice de baixo interesse por parte dos compradores, que se tratavam de livros esquecidos, escritos por mãos desaparecidas há décadas e que mesmo sua linguagem arcaica soava abrutalhada para os ouvidos modernos. Recordo-me que aos 17 anos comprei de uma leva uns 20 livros da coleção dos ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura, todos com capa dura branca com um desenho de musas gregas dançando roda rascunhado pelo Picasso, e cada um pelo preço equivalente a dois reais do valor monetário de hoje.

Aos 17 anos eu ainda não tinha lido nada, mas sabia que não poderia começar perdendo tempo com Selma Lagerlöf ou Henrik Pontoppidan. Por isso fui colocando-os em lugar seguro, enquanto me atirava nas maravilhas dos russos pré-revolução e nos autores de língua alemã que todo mundo deveria ler. Mas quando me cansava de Gregor Samsa, retirava um desses volumes brancos e ficava horas o folheando. Lia a biografia do autor, muitas delas escritas na época da edição, ou seja, por acadêmicos que já viviam o descompasso do brilho da outorga da medalha com a voracidade do tempo, de forma que o biógrafo de Jacinto Benavente, por exemplo, se permitia um sarcasmo fanfarrão de sapatear por cima da laje do morto, esculachando seu estilo com histriônicos pontos de exclamação, e o de John Galsworthy repetia a fórmula já usada em Lolita de diagnosticar friamente que já ninguém mais o lê. Mas vez ou outra, tragado por aquelas páginas suaves onde se finaram as vaidades e as competições, eu me pegava já a meio do livro, devorando-o como numa viagem ao tempo em que as proezas cerebrais do autor jamais deixariam prever que sua capacidade de escandalizar, embevecer e ser uma orbe de imitação para jovens autores, iria se contrapor à certeza de eternidade.

Além dos nobéis há uma quantidade outra de autores que perderam suas coroas sem que pudessem dividir o demérito com a ineficiência do prêmio em sacramentar a imortalidade. Tenho aqui ao meu lado o Minhas Universidades, de Górki, que se não foi esquecido ao todo parece não ter o escopo de resistir a mais uma década. Uns cinco ou seis Herman Hesse (outro Nobel), que devorei na juventude com a convicção de que o futuro do romance estava na filosofia esotérica e que hoje me soam tão inofensivos os loucos para os quais parte da história do Lobo da Estepe é dedicada. Carlos Castañeda, que também me impossibilitou o sossego devido ao vírus da necessidade incontornável de abandonar tudo e achar meu Don Juan no México, e que, hoje, nem sei por onde anda. E há um livrinho aqui que não merecia jamais o esquecimento, o inacreditavelmente ótimo Longe, e Há Muito Tempo, de W. H. Hudson, mistura de pensamento whitmaniano com os mais incríveis retratos conradianos das reminiscências do autor de uma Argentina de estancieiros e gaúchos indômitos.

São livros cuja única proteção lhes dada é a da persistência na curiosidade de colecionadores como eu, mas que passam um ar majestoso de terem chegado logo ao destino de toda a literatura e deles não poder ser cobrado mais nada. Estão ali como os velhinhos longevos daqueles povoados da Itália que ultrapassam os cem anos de vida, de quem nem os bisnetos perdem tempo em lembrarem-se deles fora de eventuais datas comemorativas, mas cuja presença física é demonstrável com um grau de direito que faz com que todo o cenário se estacione numa região adenda à vagareza e à tecnologia de bater as solas dos sapatos e das ruas de paralelepípedos de seus tempos de juventude. Assim são esses livros. Meus filhos, que sobreviverão longos anos a mim, e que caminham para se tornarem grandes leitores, saberão, quando chegar a hora, quais os Philip Roth, os Saul Bellow, os Bolaños, Garcia Márquez, Ian McEwan... eles retirarão das estantes  da sala e colocarão nas estantes  do escritório dos fundos.

3 comentários:

  1. Reminiscências assim são semelhantes a de muitos leitores e portadores pelo mundo afora de bibliotecas caídas no esquecimento das pequenas casas de subúrbio. Nós também surpreendemos os carregadores da empresa de mudanças quando eles viram que, de nossa residência anterior, de quatro anos atrás, para a nova, onde estamos até hoje, teriam que levar basicamente caixas e mais caixas de livros, que pesam, são incômodas e só trazem volumes que, no mais das vezes, ficarão expostos nas estantes, às vezes em coluna dupla, dificilmente retirados e lidos mais uma vez.

    Mas não são esquecidos, não habitam um lugar de esquecimento.

    Diria que vê-los nos conforta. Que, ao olharmos para eles, sentimos como se as páginas se descolassem de suas encadernações e voassem em nossa direção. Isso faz a memória, a lembranças das histórias, das teses, dos personagens, das análises estatísticas, as imagens fotográficas e tudo que contém livros de muitas origens, finalidades e gêneros diferentes.

    Alguns, de fato, fazem parte de um mundo que ficou para trás: os mesmos Hermann Hesse e Castañeda; não Górki: sua autobiografia, há pouco relançada em três volumes, contém material notável, tipos inesquecíveis, análises tão acuradas quanto mergulhadas em genuínos sentimentos. E não sabemos quem é W. H. Hudson.

    Como não temos filhos, nossa biblioteca, um dia, será diluída em alguma usina de reciclagem. Alguns volumes serão pegos por pessoas aqui e ali, talvez até mesmo na usina, como ocorreu com o rapaz do filme Lixo Extraordinário, ao recolher um exemplar de O Príncipe em meio ao lixo e já maculado pelo chorume.

    Bonito, Charlles, e logo hoje que publiquei um textinho sobre Joyce e Molly Bloom tão avesso aos seus critérios. Mas é como dizem os personagens de livros ruins: “Temos que ser fiéis a nós mesmos”. Pensar que “nós mesmos” encontra-se alhures, provavelmente mais nos muitos volumes espalhados pelas estantes do que em nossas pequenas existências individuais.

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  2. Eu amo esses livros todos, Rachel. Fui apresentado ao Gibran Khalil Gibran através do vasculhamento que fiz no lixo de um vizinho de apartamento, que tinha se desfeito de "O Louco".

    Procure na Estante Virtual por "Longe, e Há Muito Tempo", do Hudson. Deve ter por dez reais ou menos. Garanto que não irão se arrepender.

    Borges restabeleceu uma série de autores esquecidos, o mais conhecido deles sendo Chesterton e seus contos policiais do Padre Brown (que fiquei conhecendo através de Borges, e passei a amar). Mas também reativou o interesse por outros autores policiais, que, ironia, não recordo seus nomes agora (Ellery Queen?).

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  3. Bah, Rachel já escreveu o que eu mais-ou-menos escreveria. A acrescentar:

    Continuo as peregrinações por livrarias; nada compro na Internet além de vinhos, e mesmo assim de má vontade (na Internet, realmente, é mais fácil a barato comprar os vinhos que você já conhece). Gastar sapato nas ruas do Rio entre uma livraria e outra é um prazer a mais.

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