Vi um vídeo no Fantástico falando sobre os apartamentos caixotes de Hong Kong. Pessoas moram dentro de caixas menores que caixões. São dezenas delas em cada apartamento, com uma micro cozinha e um micro banheiro coletivo. Ao todo, são milhares, quem sabe milhões, que moram assim na China. A visão desses prédios é aterrorizante, gigantescos, cobrindo com suas cores pardas ciclópicas toda a área urbana. Não há o mínimo espaço para algo que não seja feio, brutal, sem alma, opressivo, aviltante. Em dado momento o repórter é expulso pelo dono do local, ou o gerente, que o aborda com a truculência de um miliciano. O repórter então sai para a rua e entrevista os que se dispõe. Uma senhora diz que lembra com dor a época em que era criança e morava em uma casa ampla, o que só existe agora na sua memória. Um homem diz que não tem mais onde morar, pois os aluguéis são altíssimos, e a grande maioria dos chineses ganha um salário de miséria, o menor do mundo. Os moradores encaixotados são serventes de açougues, funcionários da construção civil, chapas de feira, etc. Uma mulher, contudo, diz que é o paraíso, e é filmada no claustrofóbico espaço deitada. Antes, ela apanhava do marido e foi expulsa de casa, porque o marido não mais a queria, só sobrando morar ali. Pessoas tratadas como lixo, como números, numa sociedade desapiedada e sem traços de humanidade. Eu estou chegando na página 100 de História de amor no novo milênio, escrito por Can Xue, o que não é o verdadeiro nome da autora. Ela saiu de um cenário assim, do nível mais baixo da pirâmide trabalhista escravocrata chinesa, cursou até o ensino fundamental e é uma autodidata. Nietzsche falava sobre o regime chinês em Além do bem e do mal (ou será em Humano demasiadamente humano?), como uma figura retórica do inferno. Hoje, sociedades assim são elogiadas pelos progressistas e pelos capitalistas, o grande país que está tirando o Satã Americano da liderança global. Eu ainda não entendi onde a Xue quer chegar. É um romance que bebe generosamente de Kafka, com seus personagens regidos por morais heterodoxas e situações oníricas. O que me cativou de imediato é a liberdade irrestrita com a qual é escrito. A alegria extasiada da palavra. A forma como a autora mostra que aquele é o terreno só dela, amplo, ilimitado, cheio de espaço. Uma das personagens do romance diz que se tornou prostituta como escape para se livrar da vida terrível que levava na fábrica. A literatura nunca foi tão representativa da mentalidade de cada nação, com seus desejos, lamentos, temores, sonhos e vislumbres de redenção como agora.

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