Uma semana depois da última conversa que os dois tiveram, o melhor amigo do sr. Omeno Flibas, o ex-juiz Vergue Montesino, cumpriu o prognóstico já por demais estendido que seus médicos lhe deram e morreu vítima de seu câncer terminal. Quando esses mesmos médicos vieram com o envelope fechado da biópsia feita no caroço “do tamanho de uma ervilha” que lhe surgira na garganta, resultado provável de uma vida inteira de fumante, o juiz impôs que lhe dissessem toda a verdade, sem a mínima enrolação. Assim, ele continuou_ com seu humor característico, indômito e viril, eivado de uma espécie de terna perversidade_, ele teria tempo de escalar o Everest ou comer esturjão em um remoto balneário finlandês, se lhe desse na telha, embora esse tipo de romantismo piegas nunca fizesse parte de seu rol de excentricidades. Em seis devastadores meses, porém, a ervilha cresceu, com um ímpeto imperialista (“o império britânico, não o português”, ele dissera), escoriara o tecido vicinal para se expandir pela laringe e ganhara a coluna vertebral, indo para o fígado e os intestinos. Não havia o que fazer e a quimioterapia só o transformou na versão do capitão Kurtz interpretada pelo Marlon Brando (de novo tinham sido essas as suas palavras), embora o sr. Flibas tivesse visto um grau mais avançado dessa personificação no quarto aparamentado de serviços médicos na cobertura de Vergue. Margule, sua filha, ligara para o senhor Flibas lhe comunicando a morte, a voz embargada. “O motorista de papai vai passar aí para pegar o senhor e Alexandra para irem ao funeral”, ela anunciou. O sr. Flibas recusou, lembrando daquela outra segunda feira, quando o Volvo negro parara diante a porta de seu edifício e o homem de terno que o dirigia, o dileto motorista, lhe abrira a porta de trás. Margule fazia a ligação do outro lado do Atlântico, de uma praia de Palma de Maiorca. Ela mesma e o marido estavam de voo marcado para irem à cerimônia, mas o efeito de um desses fenômenos globais semelhantes ao El Niño cancelara todos os voos por dois dias. A cara agência funerária iria conservar o corpo em câmara ardente, cuidadosamente refrigerada para a espera_ o que acabava sendo um oximoro, o sr. Flibas não conseguiu deixar de observar. Era uma cadeia de correlações tristes que ele, aos setenta e cinco anos, procurava evitar. Seus sonhos eram povoados de lembranças dos seus mortos, que vinham lhe visitar nas madrugadas antes que seus rostos estupidificados pelo silêncio lhe impossibilitasse o sono, e não queria esses novos transtornos emocionais. A morte do pai justificava o trêmulo tom alcoolizado da voz de Margule, mas havia algo mais. A sua vida em si, a afronta reiterada em fazer frente à culpa que atribuía ao juiz, a negligência de sua criação. Haviam os problemas com seu terceiro marido, que Vergue não conseguira evitar certa vez a menção de que era um “rematado inútil”. “Um desses conselheiros de como conquistar seu primeiro milhão que tem milhares de seguidores nas redes cibernéticas e é a mais pura enganação”, ele continuava, tendo que só se ater ao estritamente necessário para justificar retirar de vez em quando o inalador de oxigênio do nariz. Ele havia sido leviano, deixando que a filha tivesse acesso ilimitado a Eros. Mas como deveria ser diferente, se ele mesmo morava num prédio suntuosamente cafona que há três décadas tinha sido a Meca dos políticos do regime militar e executivos dos ramos do aço e da propaganda? Como direcionar sua filha para a instrução moral elevada se ele mesmo havia sido um Midas da ganância e do mexerico corporativo?
O sr. Flibas se lembrava de Margule quando era criança, posta num canto da sala para prestar uma atenção reflexiva nas conversas entre eles. Não que a diretriz do conteúdo livremente espontâneo dos temas que eles debatiam se pautasse pela vigilância do pai. Uma vez sentada ali ele a esquecia, não se importando se ofendia seu delicado paladar infantil. Falava seus palavrões retumbantes e não poucas vezes ia mais longe do que a simples insinuação sobre seus casos extraconjugais (tinha então quarenta e tantos anos, prenhes de sua requisição pelo sacio irrestrito que se julgava de direito), ao que o sr. Flibas voltava-se, depois das lúbricas descrições, para ver o rostinho redondo da menina, e confirmava a nuvem de estupidez singela, a ingenuidade daqueles olhos distraídos daquilo tudo pela aquisição de seu mundo privado. Hoje lá estava ela, contudo, ela mesma na idade que o pai tinha naquelas aulas práticas em que ele queria, em alguma eventualidade súbita, que fosse tocada pelo espírito do esclarecimento que flanava por suas conversas, suficientemente experimentada de malícia e usura que, no entanto, nunca tinha despertado no pai o orgulho pretendido. Era a mesma história freudiana do recalque da rejeição do tirânico modelo paterno, a mesma raiz dos terríveis sofrimentos íntimos humanos. Talvez ela tivesse bebido um tanto mais no dia da morte dele por uma alegre vingança retroativa, que remetia ao sucesso enfim atingido por alguma fímbria de entendimento que lhe viera naquela mesinha afastada, ouvindo seu pai falando ao sr. Flibas sobre como ele traía a mãe dela com alguma debutante em uma festa de um dos generais do regime. Ela desafogava sua angústia inibida no modelo de dissolução de seus próprios amantes e homens desprezíveis. O sr. Flibas cogitava essa nuance simbólica ao mesmo tempo que sentia um leve peso na consciência por ter desligado o telefone na cara dela, justo por ela ser delicada com ele e Alexandra, sua filha.
Era um dos aspectos irritantes de Vergue que tudo fosse feito apenas conforme seu mando ditatorial. Agora aquilo, aquele enigma, ficaria insolúvel para sempre. Eram velhos, Vergue tinha oitenta anos, e ele cinco anos a menos. Não havia sobrado muita coisa para entreter seus dias que voltaram a ser demasiadamente longos como na infância. E junto a isso vinha o acréscimo de parte da noite, visto a insônia fisiológica da velhice. O sr. Flibas não acreditava, contudo, que tudo se resumisse a uma coroa de desgraça. Tinha uma alegria imponderável, insubmissa, até de certa maneira arrogante, que o impedia de sucumbir à depressão. Uma revisão parcimoniosa do ciclo da vida lhe indicava a existência de uma lentidão que havia estado lá todo o tempo, e agora, por ser investida da estética um tanto refinada da velhice, aparecesse como coisa inédita. A maneira como bebia seu chá, por exemplo. Em suas andanças pela cidade, havia parado para ver um grafite no muro. As pessoas passando atrás dele, atarefadas, seu circuito de percepção sensorial apreendendo as sombras dos motoqueiros rasqueando ao máximo a aceleração de suas máquinas, para indicar, talvez, a ele, que aquilo não era passível a ser aceito na fauna predatória urbana. Uma moça de olhos azuis esplendorosos, cabelos loiros cortados à lá Chanel, ou o que ele assimilara de modo particular como sendo Chanel (as pontas avançadas como a rabeira de uma asa no nível do queixo, com toda a moldura atrás na nuca em uma linha curta), lhe enviou um sorriso. Na certa ela via o grau de doidivanice de uma velho senhor parado olhando para o nada. As emanações humanas valiosas apreendidas de seu bom coração indicavam ao sr. Flibas que ela esperava algum sinal de desbaratamento, para lhe pegar delicadamente pelo cotovelo. O seu grande pecado sempre fora o orgulho, conforme sua esposa lhe dissera. Vânia, porém, atenuava: “o orgulho idiossincrático dos que tem a mente potente”, querendo dizer com isso que não era algo tão derrisório, apenas a necessidade combativa de ser deixado em paz. Ele sentiu uma apreensão no fundo do seu ser, sua mente reflexiva se recolhendo em um ataque imaginário, fabulesco, até que a moça visse que ele não queria ser ajudado e fosse embora. Ele dispensava com sua simulação de um velho autocentrado todas as efusões perversas da cidade, podia também fazer o mesmo quanto às raras manifestações de gentileza. Um dia, se o correr da sorte lhe beneficiasse, ela também seria uma velha, e pequenas coisas voltariam a lhe ser de um magnetismo infantil poderoso. Era um traço da segurança evolucionista para a ilusão do presente a mente não conceber de maneira fácil que belezas tão frescas fossem vistas na degradação do futuro. Uma vez Vânia lhe mostrara uma foto de sua mãe, nos EUA, sentada ao lado de uma mulher de beleza quase aterradora. Usava bermuda e suas pernas torneadas concluíam-se no cruzamento despojado de dois pés calçados com chinelas (o ar de desleixo saudável e voluptuoso). Vânia viu aquele estupor involuntário nele e disse: “hoje, se estiver viva, tem oitenta anos”. E a própria Vânia já estava morta, há mais de dez anos. “Que minha língua se prenda ao céu da boca se eu me esquecer de ti, Jerusalém”, lhe veio à memória. Aquela efémera manifestação de beleza chegaria aos setenta e cinco e se deteria nessas picuinhas, nessas pequenas intrusões da verdade. E se calaria, talvez, na humildade exultante que lhe tomava conta, admirando uma pintura no muro, em uma das cidades mais populosas do mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário