quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Uma primeira página abortada


Eu nasci bonito. Nas poucas fotos que mamãe conserva daqueles tempos de berço com véu protetor em volta, eu apareço com toda minha silenciosa presença simétrica no centro do plano. Olhos calmos fitando a câmera mambembe do alto da qual deveria sair o passarinho anunciado pelo fotógrafo. Minha harmonia de proporções era tamanha que esse meu bom comportamento provocava a interpretação de que eu trazia algum prenúncio não revelado, alguma punição não passível mais de ser adiada. As pessoas me olhavam uma vez e evitavam fazê-lo de novo, incomodadas com a verdade inacessível estampada na aberração da minha beleza.        

     Minha mãe foi quem mais sofrera com isso. Abandonada pelo homem que a havia embuchado, como ela insistia sempre em dizer, ela que tinha que suportar sem nenhum lenitivo o peso dessa realidade. De primeiro, sua astúcia de menina rejeitada a fazia simular toda espécie de doenças para que não tivesse que me amamentar. Esfregava alho com urtiga nos sovacos e arnica-do-campo nos mamilos, dormia calçada com meias apertando os pés cujos dedos entremeava com pedaços de folhas de coroa-de-cristo, de forma que a febre resultante dos eczemas a fizesse ter delírios, o que convencia por certo tempo que haveria algo de perigoso conceder-me à proteção de uma criatura de saúde tão instável. O pai de minha mãe_ que vivia em um isolamento totêmico em que raras as vezes se tinha a audácia de invoca-lo para assuntos comezinhos_ mandou baixar até a casa uma ama-de-leite. A mulher não chegava aos 15 anos mas tinha aquele olhar duro resultante da completa adaptação às atribulações naturais que a fazia intocada à maledicência cotidiana, e que estendeu-me seus seios por algum tempo, pelo tempo suficiente para que em minha mãe despertasse o instinto materno que antes recusava, depois que ela viu a inevitável correlação de santidade entre dois seres angélicos, um sentado em serena entrega no leito e outro em um sono saciado no centro dos seus braços. Reivindicou com a mesma obstinação furiosa de antes que seu rebento lhe fosse devolvido. Por uma semana minha mãe sustentou a farsa de que admitia com o coração ponderado que eu era um bebê normal, cantando cantigas de ninar para embalar meus sonos, estendendo-me com fartura o bico de seus peitos não mais salpicados de feridas de arnica, ainda que fizesse de tudo para que seus olhos não confrontassem com os meus que, impreterivelmente nessas ocasiões, se fincavam nos dela com infinita malícia. 

9 comentários:

  1. Não sei a razão de abortar, mas que gostei muito do texto, lá isso gostei.
    Uma escrita muito agradável e bem ritmada que se lê pelo prazer da forma. O texto promete... mas daqui em diante compete-lhe continuar a gestação e o conteúdo.

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  2. Autobiografia ou ficção?

    Vale uma corrigida nisso aqui: "ela quem tinha que suportar". Proponho "ele tinha que suportar". E quem tinha é um cacófato.

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    1. Realmente. Obrigado pela correção. Não é autobiografia, apesar de que eu também nasci bonito.

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    2. Outra ficção.

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    1. É. Eu escrevi uns 200 começos; a coisa tava uma obsessão.

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  4. Interessante. Ah, as gestações literárias...

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