terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Comentários coloquiais sobre leituras dos últimos dois meses

O vermelho e o negro, de Stendhal



Romance magnífico que passou ignorado quase por completo em sua época, mas que seu autor vaticinou com estoica tranquilidade que só seria entendido pela posteridade. O livro inaugura seguramente a maturidade sobre o estudo escatológico do ser humano, e imagino o espanto que deveria ter causado em sua época pelas estarrecedoras coisas que conta. Quando o li pela primeira vez em minha adolescência o abandonei, com grave hostilidade, na página 279 (tem meus comentários, meus sublinhamentos e meu marca página enterrado nessa página na minha antiga edição de banca, de quando eu tinha menos que 20 anos); recordo que o livro me pareceu como a mais terrível história de terror, de tão opressiva, desaerada, soturna e desumana que era. Não é para menos que o romancista mais diabólico que existiu, Elias Canetti, reverenciava Stendhal (o capítulo sobre a imortalidade que Canetti escreve em seu insuperável Massa e poder é uma ode a Stendhal). E isso tudo apenas porque Stendhal descreve a sociedade e a alma humana como ela é, e de uma maneira sem espanto, perfeitamente equilibrada. Há corrupção e ânsia de assassinato por toda parte, e o amor é uma impostura da fraqueza ou da ambição. Há a pobreza atroz e a adaptação animalesca a ela, quando o pobre Julien Sorel é internado em um seminário, como último recurso para sua ascensão social, e seus companheiros cujo estado de espírito transita entre a indiferença e a crueldade se revelam com o propósito de existirem apenas para suprirem diariamente a paixão de seus estômagos. Quem ainda cultiva algum respeito pelas religiões, esse livro é uma destruidora libertação. Nenhum escritor escreve tão bem em francês quanto Stendhal; ele reina absoluto sobre a língua. Como esteta, é inigualável, assim como psicólogo e frio denunciador da empáfia da política e da sagração; é também um arauto de unívoca lucidez sobre o poder do tédio, e se tivesse que resumir todo seu tema em uma única palavra, seria essa: tédio. Não sei quem foi quem falou com precisa assertividade que o único páreo para ele é Dostoiévski.

Morte em Veneza, de Thomas Mann



A maioria dos grandes romances purga títulos canhestros. Esse não foge à regra. É como se Agatha Christie tivesse optado para um de seus romances pelo título de O detetive é o assassino, ou Nabokov para seu grande romance O narrador enlouquece. Até quase a metade dessa curta novela fiquei em suspense se Mann conseguiria erguer e encerrar toda a conhecida trama que ela comporta, porque até então a obra cai em uma divagação solta sobre a estética e a preparação do escritor para seu ofício. É como se Mann tivesse programado um de seus caudalosos fôlegos de 600 páginas mas, na última hora, determinasse que a coisa se encerrasse rapidamente. Isso não exclui o fato de que esse livrinhos seja uma obra-prima, e mais ainda que tais páginas pré-trama estejam entre as melhores que já li sobre o ofício de escrever. A tal morte em Veneza é descrita com uma singularidade que ressalta a genialidade do autor pela delicadeza com que ele equilibra o foco da narrativa do amor do velho escritor pelo jovem fisicamente perfeito sem que se entreveja qualquer traço de vulgaridade ou de pre-conceitos formalizados. É tão bonito esse livro que, na ânsia de que a história se inicie, ele acaba sem que o leitor deseje outra coisa senão que as páginas se prolongassem pelas centenas. É precioso também ler as antecipações de Doutor Fausto nesse livrinho.

As sementes da revolta e Os anos de provação, de Joseph Frank



Essas duas primeiras partes da biografia de Dostoiévski são puro deleite. Interessante ver que os dois últimos volumes tiveram o dobro da tiragem do restante, 3000 exemplares, como se o interesse se limitasse ao Dostoiévski do período de seus cinco grandes romances. Pois perdem bastante os apressados em não saberem como é ótimo seguir Dostoiévski em sua infância e juventude, em sua paixão pelas ideias humanistas (centrada na extinção da servidão na Rússia), a publicação de seu primeiro romance, Pobre gente, e como isso foi ao mesmo tempo a glória e a perdição para um jovem escritor que não soube conviver com a fama e se indispôs com todo mundo por sua terrível prepotência. A cena que inicia o segundo volume é a de Dostoiévski, mais seus 20 companheiros do círculo de Petrachévski, que conspirara contra o czar Nicolau I, sendo retirados após 8 meses trancados na fortaleza Pedro e Paulo e levados até a praça Semenóvski para serem executados pelo pelotão de fuzilamento. Creio que a escrita de Frank nessa parte se ombreie com as melhores páginas da literatura do século XX (ou ao menos assim parece para esse leitor apaixonado pelo tema, pela atmosfera e pelo escritor russo). Dostoiévski é encapuzado e amarrado em um poste, mas antes ele se vira para seu amigo Spechniev, também nas mesmas condições, e diz: "Estaremos em Cristo", ao que o colega niilista lhe responde: "Um punhado de pó". A pena se revela uma encenação e é convertida, para o autor de Crime e Castigo, em 4 anos de trabalhos forçados na Sibéria, mais a obrigação em servir após esse tempo como cabo no exército russo. E os anos na Sibéria nunca foram contados com tanto provimento de detalhes e com tanta profundidade como nessa biografia. A paixão enlouquecida de Dostoiévski por María Dmitriévna, sua solidão dos centros culturais do país, sua fé nunca perdida de que seria um grande escritor. Estou iniciando o terceiro volume hoje.

22 comentários:

  1. Sobre Vermelho e Negro além de o considerar um grande obra, penso que deve ser seguido por Educação Sentimental, retratam épocas próximas de uma forma tão contrastante que se complementam.
    Morte em Veneza é um poema escrito em prosa expondo um quadro impressionista, arte em estado puro

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  2. O Vermelho e o Negro é para ser relido. Me lembro da impressão que me causou, bem mais marcante que A Cartuxa de Parma. Um grande estilista, mas ainda prefiro Proust e Montaigne. E devemos considerar também Flaubert, que sei que você não gosta. Três Contos (especialmente Um Coração Simples) é uma obra-prima.

    Sim, amanhã devo terminar Luz em Agosto. Que livraço! A aparição de Gavin Stevens foi como um reencontro com um amigo que mora fora.

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    1. Sempre esqueço Proust. Não que o esqueço, mas é que ele está num nível tão inatingível que esqueço que ele tem uma nacionalidade, que por acaso é a francesa_ assim como recorrentemente esqueço que Faulkner é americano.

      Luz em agosto é uma experiência de vida, uma marco fundamental para qualquer um.

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    1. Mas Stendhal é um fundador. Por mais que disséssemos preferir Céline, Stendhal criou algo primordial para os escritores que dele descenderam.

      O que me impressionou foi a maturidade de Stendhal, mesmo hoje ela soa imponente e solitária, agora imagina naquela época de romantismo exacerbado e educação elitista. Há muita coisa em vermelho e o negro que é perigosamente adulto e libertário.

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  4. Ah, por que Canetti é o romancista mais diabólico?

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    1. Lestes o Auto-de-fé? Como ele escrever apenas esse romance, julgo ele o mais diabólico, pois é um livro de uma maldade explícita. Sempre achei isso, e aí, para espanto meu, vi a confirmação nas próprias palavras do autor em sua auto-biografia, em que ele diz que atrasou anos a publicação dessa obra por ver a evidência dessa característica. E escreve que o próprio Hermann Broch, seu amigo, ao ler os originais, disse para ele ter cuidado com isso.

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    2. Não tenho muita simpatia por Auto-de-fé, mas reconheço que se trata de um grande romance. Ainda escrevo mais detalhadamente sobre ele_ preciso de uma releitura (meio paradoxal essa de não gostar assim-assim do livro mas pretender relê-lo, não?). Mas há algo muito diabólico nele, simplesmente. Os personagens são individualistas extremos, sem coração e sem simpatia; o mundo onde vivem não oferece nenhuma esperança. A mulher é a torpeza encarnada, e o intelectual colecionador de livros é de um egoísmo sem eiras nem beiras, e o anão é desses únicos da literatura que não tem nenhum pingo de humor. Há só outro anão da mesma maneira abjeto, o anão negro de O homem sem qualidades.

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    3. Só li o comecinho de Auto-de-fé, e achei bem engraçado, na verdade. Peter Kien é tipo um Sheldon Cooper das humanas. Tem um anão depois é?

      Já ia comentar que o romancista mais diabólico que já li é Pär Lagerkvist, autor de, coincidentemente, O Anão (existe algum na literatura que não seja abjeto?). O único momento em que o rancoroso protagonista sente alguma alegria, é quando enfrenta outro anão numa batalha.

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    4. Tem um conto do Moreira Campos chamado: "Os anões".

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  5. Charlles, você leu Tonio Kroger? Achei fantástica essa edição, as duas histórias tem muito em comum.

    Preciso ler Stendhal com urgência. Até Nietzsche fala bem dele, até Nietzsche...

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  6. Hahahahaha. Oi Charlles, há quanto tempo! Bateu uma insônia e resolvi adiantar umas resenhas. As aulas começam dia 7 e o semestre será longo. Que tal a vida e as crianças? Abraços fortes. Aguinaldo

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    1. A vida está ótima com as crianças, Aguinaldo. Vida longa para suas resenhas, nesse blog que eu visito diariamente. Forte abraço e tudo de bom.

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  7. Ano passado deixei passar o Stendhal numa promoção da Amazon. Me arrependi. Míseros R$ 21, se não me engano... Ah...

    Enfim, vou começar a ler Morte em Veneza, Charlles. Essa semana terminei Doutor Fausto e também Herzog. Uma coisa que me chamou atenção: o momento em que o pequeno Eco aparece nas partes finais do Dr. Fausto é uma coisa tão bonita que as cenas que se dão entre o menino e Adrian ficam tão bem escritas quanto o passeio de Moses com a filha; ou também os passeios de Bernhard com o avô - por acaso li Origem em janeiro. Coincidências, acho.


    Estive acompanhando a tradução que a Denise Bottmann tem feito de um livro do Harold Bloom. Ele que, segundo consta no livro, diz ler mil páginas por hora (sim, mil páginas!!). Queria saber Charlles, por mera curiosidade mesmo, qual a sua média de páginas por hora? Porque fiquei bastante cabisbaixo com as minhas poucas 20 folhas horárias.

    E eu sei que ninguém lê mil páginas por hora, apenas achei interessante essa afirmação. Vindo de quem veio...

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    1. Belas correlações que você fez entre esses livros. Muito instrutivo! As cenas do belíssimo e puro menino em Doutor Fausto são algumas das mais belas (e tristes) páginas que já li. Chorei muito naquela descrição final. Aquelas páginas de Origem sobre o avô são muito tocantes, também. Um dos meus personagens preferidos de sempre é o avô de Bernhard. Leia Meus prêmios, há ali descrições da tia de Bernhard que também são ótimas.

      Mil páginas por hora!! É isso mesmo? É fisiologicamente impossível. Mesmo que fosse possível, que tipo de aproveitamento mental e espiritual isso teria? Ler, digamos, Agatha Christie (li todas as 390 páginas de "E não sobrou nenhum" hoje), é compreensível, que o livro foi feito para leitura rápida, mas ler autores sérios, os grandes, nessa velocidade, é um descalabro.

      Não sei quantas páginas leio por hora. Nunca me preocupei em medir isso. Fiz, quando tinha 18 anos, um curso de leitura dinâmica, e na época li todo O conde de Monte Cristo, em uma biblioteca, em prazo recorde (acho que em uma semana, duas horas por dia). Já falei aqui que li Ulisses em 4 dias, e Os demônios em um feriado de carnaval. Mas esses eu consegui não pela velocidade, mas porque fiquei compulsivamente concentrado (e aqui cabe a maravilhosa descrição da arte pela Susan Sontag: "A arte é uma técnica para a concentração da atenção"), e eu fiquei 15 horas seguidas lendo esses livros, atento ao máximo, absolutamente concentrado.

      Mas minha média é um livro de 500 páginas por semana. Leio, pois, de 500 a 600 páginas por semana.

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  8. Anotado, Charlles. Lerei assim que terminar Morte em Veneza e o primeiro volume de "Os sonâmbulos", do Broch.

    E eu perguntei a um amigo, assim que terminei o capítulo que fala do menino, onde eu voltaria (e se voltaria) a encontrar tanta beleza escrita outra vez, ele me disse: "Proust!". Devo confiar?

    Isso mesmo, Charlles, 1.000 páginas por hora!! De acordo com o post da tradutora no facebook, o Bloom utiliza de um método rígido, e até simples, de leitura diagonal (que eu não faço ideia do que seja), o que ajuda com que ele, logo após terminar um livro, releia o mesmo inúmeras vezes. Eu, quando jovem, li o sexto Harry Potter em um dia - também por motivos de compulsividade. Pouco mais de 500 paginas, acho. Nunca repeti o feito e, ainda hoje, não penso que seja novamente possível. Tenho algumas desculpas verdadeiras que me ajudam a não conseguir: trabalho, faculdade, falta de tempo, sono... Embora eu saiba que é completamente diferente ler JK Rowling e um Joyce, por exemplo.


    Você tem planos de ler o Stoner do John Williams, Charlles?

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    1. Isso aí é leitura halterofilista. Não vejo qualquer valor nela. Tem mesmo uma técnica de leitura diagonal, uma coisa ridícula que mistura precognição com cabala e aritmética. Trocando em miúdos, o Bloom está descaradamente mentindo, querendo dar uma de velhinho superdotado e faquir intelectual. As únicas formas eficientes de leitura rápida é a de pontinhos, imaginando-os por cima das palavras até que a coisa flua com total naturalidade, podendo-se usar uma caneta como direção de leitura. E o de imaginar cada palavra lida, suspendendo o entendimento imediato (não raciocinando durante a leitura, mas com extrema atenção). Esses métodos foram criados para ostentação de uma super-humanidade fingida em salões. Mas são úteis, de alguma forma surpreendente, quando você as treina e descobre que são imposturas. De alguma maneira compensatória, a coisa acaba fluindo. Melhor método: ter um puta tesão pelo texto, e treinar espartanamente a concentração.

      Por enquanto não sinto interesse no Stoner. Estou numa fase muito séria de Dostoiévski, Stendhal e outros autores do século XIX. Estou no final do terceiro volume da biografia de Dostoiévski. Aliás, faço aqui uma recomendação seriíssima: os 5 livros do Joseph Frank são maravilhosos, nem sei dizer o quanto. Quem se interessar, aproveite, pois na Amazon já estão esgotados vários deles, na Estante estão pedindo aqueles preços cabeludos. Só tem na Livraria Cultura. Logo irão esgotar, e aí será tarde. Repito: estão entre as mais sensacionais experiência de leitura da minha vida. Uma viagem sem igual.

      Proust. Seu amigo está certo. O que eu notei nessa páginas é que Mann foi diabólico, pois ele escreveu essas páginas sublimes com o intuito de aumentar o terror de quando o menino fosse descrito em sua agonia de morte.

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  9. Falando em Mann: Os Buddenbrook já está na Amazon.

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