quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

As Afirmações Metafísicas de Philip Glass


O Milton Ribeiro já cometeu várias vezes a heresia de dizer que Philip Glass é o Paulo Coelho dos compositores minimalistas. Com aquela fina percepção que todos nós temos para compreender o significado da maldade mais truncada, sei perfeitamente o que ele quis dizer. Pelos extensos conhecimentos_ imbatíveis_ sobre música erudita que tem, Milton não quis dizer que Philip Glass é um sucesso financeiro como o autor brasileiro é, mas que Philip Glass é um fenômeno entre os incautos, uma notoriedade da qual os médio ou baixo apreciadores de música cometem o engano de considerar como artista de primeiro time. Não culpo o Milton de esnobismo gustativo_ quer alguém que comete mais esse pecado do que eu? O co-autor de um dos blogs mais magníficos que compartilha tesouros da música erudita (e, hora e outra, do jazz), o PQPBach, sabe que Glass sempre foi um batalhador para impor a sua música. No livro de Alex Ross, O Resto É Ruído, deixa-se claro que Glass teve que sobreviver como taxista mesmo em boa parte do tempo em que era conhecido como um dos papas do minimalismo. Por isso, Glass está longe de ser um mega-star, termo aliás muitas vezes incompatível com compositores eruditos do século XX. É uma pena, sr. Ribeiro! O Milton poucas vezes visita esse blog, mas já foi o responsável por cifras incomuns de audiência quando expõe alguns post meus no jornal virtual Sul 21 (um texto meu sobre Dostoiévski, publicado lá, me deixou constrangido pela repercussão em números de visitas), por isso, é muito provável que seu silêncio nos comentários deste post figure mais humilhante para manter o quanto Philip Glass lhe é desprezível. Como vingança, sempre lembro que o seu tão cultuado Chico Buarque para mim é excessivamente super-estimado.

Mas vamos lá ao que interessa. O download parece que acabou, ou está em esfriamento. Sorte que tenho dois HDs externos,  com toda a música que eu sempre quis, e até uma grande maioria que eu nem imaginava existir. Neles, uns 40 álbuns de Glass. Coisas como Einstein on the Beach ainda me afiguram difíceis. Mas há, ao menos, 4 obras-primas: o álbum de Philip Glass com Ravi Shankar, Passages; um álbum em que o violinista Gidon Kremer executa obras de Glass, Arvo Pärt e Vladimir Martynov, chamado Silencio; e as duas primeiras partes do projeto Koyaanisqatsi (tenho um grande adesivo com essa palavra estigmatizada colada no vidro traseiro do meu carro, mas nunca consigo escrevê-la sem consulta). O Passages é um encontro multiculturalístico do minimalismo americano com a música indiana de Shankar, um disco que me impressiona sempre por sua leveza, sua delicadeza e sensibilidade. O Silencio é o que o título propõe; não sei quem falou que música é o silêncio em movimento, e esse é o mote da obra: um sofisticado exercício de aquietamento, um convite sério ao relaxamento e esquecimento nirvânico. A parte de Glass oferece uma espécie de exposição didática com solos de diversos instrumentos, finalizados com o estranhismo de uma baqueta batendo em pontuação. Aliás, Glass é grande por conseguir fazer o que os grandes artistas conseguem: causar uma adstringente sensação de estranhismo no ouvinte. Confesso que quando ouço essa obra, e chega o isolado momento da baqueta, os pelos da minha nuca arrepiam.

Não há como passar indiferente diante o espetáculo único entre imagem e música dos 3 filmes do Koyaanisqatsi. Trata-se de uma trilogia, protagonizada pela direção maravilhosa de Godfrey Reggio e a trilha sonora de Glass. Os títulos dos filmes são Koyaanisqatsi, Powaqqatsi e Naqovqatsi. A última parte, confesso, não é tão soberba quanto as duas primeiras. Mas as duas primeiras formam um contraponto temático entre a vida mecanizada e vazia das cidades grandes, e a vida rústica das sociedades com padrões econômicos primitivos que subsistem hoje. Por isso, é uma viagem estética de tirar o fôlego. Eu estava reassistindo ao primeiro filme no quarto, num volume alto, quando minha esposa bateu à porta perguntando que diabos de música perturbadora era aquela, estaria eu jogando vídeo-game? E a questão é justamente esta: a música do primeiro filme é inseparável das imagens. Glass compôs uma música perturbadora, desagradável, mecânica, sem alma, fatídica, que recheia Koyaanisqatsi e enreda o espectador num ambiente de pinball. E isto contem uma força de catarse inigualável. Em minha vida de assistidor de cinema (para mim, uma arte inferior, sobre a qual não exerço uma crítica severa), jamais fui tão tocado por um filme como por esses dois. A sucessão de imagens é vertiginosa, hipnótica, encantadora, que começa com imagens da natureza, passa pelo frenetismo desindividualizante do cotidiano massificado das metrópoles, carros trafegando em velocidade ultra-acelerada, as pessoas como formigas nas atividades de espera nos metrôs, (rostos em calado pânico, de quem diz o que estou fazendo aqui?), prédios implodindo, prédios de vidros espelhados das megacorporações, e termina, num acerto mágico, nas imagens de um ônibus espacial explodindo_ acompanha por longos minutos, num gesto de frieza artística do cinegrafista, uma das peças do motor da nave em chamas caindo lentamente do céu, enquanto o tema de abertura de Glass retorna, em sua profecia sombria, seu catatonismo desconsolado, repetindo em vozes de barítonos o título do filme, KOYAANISQATSI, KOYAANISQATSI, KOYAANISQATSI. E o niilismo da música de Glass é um despertador, um murro na cara!

Cena dos mineiros de Serra Pelada, em Powaqqatsi
Powaqqatsi começa com duas das músicas mais bonitas de Glass. Uma epifania de apitos, percussão e coro de crianças brincando ciranda, enquanto a câmera mostra por seis minutos, numa fotografia renascentista, os mineiros de Serra Pelada. Belas pernas masculinas (não estranhem, a fotografia te obriga a apreciar aquela juventude feérica atrás do ouro) subindo por extensas e superpopulosas escadas verticais, com sacos de lama nas costas, e à beira do abismo. Em dado momento, a câmera flagra um mineiro sendo carregado por outros homens, após ter despencado de uma das escadas. A cena, de inigualável beleza, lembra a Pietá, de Michelangelo. Depois, vem, num ritmo lento que te leva lágrimas aos olhos, diversas cenas de povos orientais que vivem da pesca e da agricultura. A música de Glass, que aqui tem o assertivo nome de Hymn, enche o coração, de forma que aumenta-se o volume da tv e fica-se literalmente imóvel dos pés à cabeça, em pleno deslumbramento. Uma das cenas famosas desse segundo filme é a vela remendada de uma jangada em alto mar, se estendendo a todos os ventos; um remendo multicolorido que simboliza todas as nações, todos os povos. Sério: é um filme de beleza quase insuportável. 

Só essa trilogia já serviu para atestar a genialidade de Glass.




Cenas de Koyaanisqatsi; citando uma frase de Saul Bellow, "em quase todos os rostos, sinais de uma crítica mais profunda ou interpretação do destino_ olhos com afirmações metafísicas":





Philip Glass


24 comentários:

  1. Respostas
    1. É... também deixe-me aqui com o Caetano!

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    2. Sim, deixa-me aqui com Gil
      porque a musicalidade... a musicalidade...
      é uma coisa...uma coisa... uma coisa assim...
      assim... como a musica...como.. com...
      João Gilberto...

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  2. Que maravilha, Charlles! O Glass possui obras difíceis de traduzir, mas há outras de uma metafísica arrebatadora. O seu minimalismo é espiritualizante. A trilogia qatsi se insere nesta última categoria - com ânfase para Koyaanisqatsi. Você já ouviu trilha sonora do filme As horas (do mesmo Glass), no qual a bela e gostosa Nicole Kidman faz o papel de Virginia Woolf?

    Abraços!

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    1. Carlinus, veio a ideia de Glass ao ler seus textos hoje sobre os filmes. Esqueci-me do As Horas, também gosto muito.

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  3. Vi, no Municipal do Rio, uns... 20 anos atrás (de novo?) uma ópera denominada "Matogrosso", de autoria de Glass e... Gerald Thomas. Aquela sensaboria ecológica toda, meio híbrida, por causa da arrogância de Gerald e seu sarcasmo por se saber um merda e mesmo assim enganar um público de pessoas "cultas".... A música é aquilo, minimalismo, serialismo, etc. O teminha que se estende em quase fugas/tímidas escalas a um infinito de impossibilidades satisfatórias ao conforto dos ouvidos urbanos e "sofisticados", que tem em Glass a parcela de "eruditismo" que pode suportar...

    Mas Paulo Coelho aí também é muita sacanagem. Quem sabe um síntese do primeiro com Terry Eagleton?

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  4. Na minha fabulosa visita à POA, fui a exposições de arte com o casal Ribeiro e nada como sair com pessoas diferentes das quais se está acostumado para se dar conta de seus padrões. O casal, principalmente a Senhora, tem um gosto para arte contemporânea que eu não consigo alcançar. Minha relação com a arte contemporânea: aceito-a, em teoria, depois que li a História da Arte de Gombrich e entendi que a arte representa o período histórico em que está inserida e que a nossa busca inovação e ruptura. Na prática, acho quase tudo um lixo. Eis que lá estavam todos fascinados - Milton, Claudia, curadores - e meus olhos... Havia uma instalação formada por enormes fotografias, onde dois homens com os rostos cobertos faziam gestos esquisitos e identificos para as fotografias. A arte remetia à códigos, ditadura, perseguições e pessoas querendo se comunicar sem serem identificadas. Eu olhei para aqueles dois fazendo gestos iguais e vi... ÊÊÊ, MACARENA!

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    1. Hahahaha. Que o Milton não nos escute. É bom ter essa carta na manga.

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    2. Parece que você tem a sorte, Charlles, de, na sua Goiânia ou cidade dormitório de Goiânia, não ser chamado a exposições de arte, intervenções e performances. Qualquer dia desses, por essas e por outras, vou morar em Taumaturgo, no Acre.

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    3. A Art Gallery of Ontario tem uma ala de contemporânea impressionante. Fui surpreendido pelo talento de pintores canadenses contemporâneos circa anos 60 e 70.
      Respeito muito arte contemporânea quando assim.
      Agora, não me coloca para ver esse arremedo de arte que se esconde atrás do circumlóquio instalação...
      Acho que Gombrich não discordaria de você, Caminhante.

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    4. Por essa e outras razões eu moro no interior, Marcos. E não sinto absolutamente nenhuma falta dessa "urbanidade". Tá certo que talvez eu seja, como diz minha mãe, "bicho-do-mato", pois, por convicção, nunca fui a uma apresentação de teatro. Nem se encenassem Bernard Shaw eu me motivaria a ir.

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    5. Luiz, quando a Caminhante disse o acima, lembrei-me de um filme, o título me foge, em que pessoas descoladas tinham que fazer ar de plena admiração em uma amostra de esculturas gigantescas de pênis e casais copulando. E pensar que a obra de arte mais cara do mundo é uma "instalação" em cujo interior apodrece o corpo real de um grande tubarão!

      (Falar nisso: ontem vi a capa da nova edição da Veja. Eles se esforçam cada vez mais pela veneração dos bezerros de ouro do capitalismo. Depois de Eike Batista, a estampa daquele guri do Facebook com a portentosa cifra em letra garrafais do atual valor da empresa: 100 Bilhões! Por algo que nem existe! Não tive como não ser assolado pela exclamação: a estupidez humana está bem valorizada!)

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    6. Procure na Internet (é fácil, oras!) e veja "Por onde andará Petrucio Felker?" (acho que o título é este), um curta demolidor em animação.

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    7. Vi esse curta num link do blog da Rachel, e achei o máximo. Essa farsa fetichista no mundo da arte é muito visível na área das artes plásticas. Lembro que quando eu era aluno da UFG, houve uma exposição sem a presença do artista de uma série de rabiscos infantis na biblioteca da universidade. Eram rabiscos muito toscos, recordavam um pouco os desenhos de Kafka, só que muito piores. No canto havia uma mesa com um livro para que os visitantes expressassem suas opiniões, e páginas foram preenchidas com mistura de elogios, impressões de que "entendia-se o que o artista queria dizer", e algumas críticas severas. Um amigo e eu nos juntamos para escrever um texto só com proparoxítonas, que catamos exaustivamente de um dicionários, e copiamos no caderno. Era uma grande sátira que o artista fazia a si mesmo, ou assim meu amigo e eu entendemos. Na literatura é um pouco mais difícil de se fazer isso. Foi o mote do texto meu sobre o Vila-Matas. Vila-Matas não é uma farsa, e é até muito valioso, muito autêntico. Apenas que certifica a limitação criativa atual dos leitores e da literatura em geral.

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    8. Bom q eu não tava junto, então, Carminhante. Ou então teríamos dançado LA MACA ad eternum. HHEHEHE

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  5. Nunca ouvi (ao menos conscientemente) Glass, Charlles.
    Seria ele assim o sucedâneo musical de um Esperando Godot?

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    1. Nunca pensei Glass nesse termo, mas é uma referência interessante. Porém, nenhum músico sobreviveria em sua arte se reproduzisse no universo dos sons o niilismo beckettiano. Glass às vezes poderia ser o Jared Diamond da música, ou, melhor, um músico da escola de Frankfurt. Mas, como ressaltei no post, ele consegue momentos de extrema beleza. Pô, ache um tempo aí e assista aos dois filmes, e me diga.

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  6. Talvez eu goste desse album com o Shankar. Tenho simpatia pela parceria entre o George Harrison e o sitarista. Aliás, acho interessantíssimo que Shankar tenha certa feita declarado influência do Coltrane na sua música pós-60 (a bem da verdade todos ouviam Coltrane nos 60!). Seu aparte era de que ele só não entendia como o Coltrane da época, leitor do Gita e dos Upanishads, notório influenciador da meditação na América do Norte, fazia uma música tão nervosa, por vezes tão angustiada. Acho que é justamente esse aspecto dos solos mais tardios do Trane que me desagradam - 15 ou 20 minutos de urros, gritos, uma experiência portanto do mais primal do homem. A arte, claro, deve ser capaz de representar também o primal absoluto. Mas quem pode de fato sustentar absorver tal experiência sensorial por tempo tão prolongado, sem que de fato você seja o sujeito que emite, ou experimenta de forma indireta, tal angústia? Faz-se necessário, no mínimo, um espírito altruísta, ou, o mais comum, a empatia da dor compartilhada.

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    1. Esse álbum com o Shankar é o Glass mais acessível. É muito bonito mesmo. Meus filhos o amaram por muitos meses, quando todos os dias colocava para que ouvíssemos. Tem uma ternura infantil distribuída nas músicas. (Vai ver é isso: Glass foge da comparação a Beckett por ter um acentuado tom infantil, de primeira olhada no mundo, de espanto antes que se apreenda o conecito_ assista aos filmes, porra!).

      Pouco sei do Shankar. Havia programado reservar tempo para procurar mais obras dele, mas para um futuro indefinido. Uma parte de mim achou bom a suspensão temporária do download, assim se valoriza e se pode apreciar com vagar o conceito individual de cada álbum, como se fazia no tempo da aquisição do cd). Mas, quem não gosta de Coltrane?

      Passei a tarde ouvindo as sonatas e partitas para violino de Bach, e fique pensando se há algum violinista de jazz que produzisse algo do mesmo calibre. Essa música convida à exaustão, mas sua beleza é hipnótica. Traz à mente a censura da música por Maomé, por ela ser perigosa. Talvez falte isso ao jazz, essa pureza que não incomoda através da longa exposição. Talvez seja uma mera questão instrumental, e o violino ganhe nesse quesito, em beleza.

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    2. Luiz, as partitas e sonatas, caso te interessem, estão aqui:

      http://pqpbach.opensadorselvagem.org/j-s-bach-1685-1750-as-sonatas-e-partitas-para-violino-solo/

      Belíssimo álbum!!

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  7. meu tio sempre me recomenda esse filme, não sei p q ainda não o vi. lembro da trilha d'as horas, pq adorei.

    "(não estranhem, a fotografia te obriga a apreciar aquela juventude feérica atrás do ouro)"
    não pude deixar de estranhar, mas é verdade

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    1. Não é verdade?

      Imagino que você vá gostar muito destes filmes. Comprei-os baratinho na Livraria Cultura por 14,90. Tinha-os em download, mas o dvd atual é remasterizado e traz extras imperdíveis.

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