terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Arcimboldo


O que aconteceu mesmo foi que o peru não foi sacrificado. De algum modo, nessas duas semanas em que fora colocado no terreiro da casa de frente à minha, ele conseguira, com seu charme consonantal e seu jeito de pensador reservado, reverter o propósito que o distinto senhor negro que o trouxera havia-lhe estipulado para a ceia de natal. E, no amanhecer do dia 26, quando abro a janela do quarto da minha filha para que a chuva fina que cai há tanto tempo refresque o ar interior, que surpresa vê-lo parado do lado de lá do portão, ainda vivo, com seu excesso de cristas subindo e descendo pelo pescoço suntuoso, olhando a rua deserta com a candura estóica de quem mesmo tendo caído nas graças do bom acaso de escapar do holocausto, não se desfaz de seu escudo de reserva em relação ao mundo. Respiro aliviado, reconhecendo que sua presença barulhenta (um barulho monocórdio de dois em dois minutos), e seus passos medidos de mordomo, haviam feito com que eu gostasse dele, o tornara um amigo, e digo baixinho:

_ Ah, danado! Então o senhor tá aí, firme e decidido.

Como por aqui não consta nem nos mais desatinados manuais de etiqueta gastronômica que essas aves dubiamente beneficiadas por sentenças de final de ano possam ser comidas em outras ceias que não a do natal, é certeza que ele sobreviverá por mais um ano inteiro. A primeira vez que nos vimos, ou eu o vi (tamanho o alvoroço que fez ao descer da caçamba da caminhoneta que só deve ter tido tempo de notar o homem de livro na mão sentado na cadeira de fio do outro lado da rua só quando identificou primeiro seu novo ambiente), quando o senhor Osvaldo, o negro sempre muito educado que é meu vizinho de frente, como que me o apresenta, "a patroa gosta de um peruzinho no natal".

E eis que o danado, com seu gluglu que espoca os sons habituais da cidade com uma indecifrável urgência que só a ele é séria, conquistou o senhor Osvaldo e a patroa do senhor Osvaldo, e, como a simpatia nesses casos tende a crescer ao longo do tempo, no natal que vem ele estará inconspícuo em seu lugar consagrado de animal doméstico, e minha filha já terá idade suficiente para também ter sido cativada por ele.

Arcimboldo, penso, é um bom nome.

_ Olhe lá Júlia, o quanto tá grande e bonito o Arcimboldo!

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GLU-GLU-GLU
by Ramiro conceição


Estou muito desconfiado que o tal do Arcimboldo não é bobo,
porém um astuto Assimbardo culto a fazer “GLU-GLU-GLU”.
Ai dos futuros natais nessas plagas daí, do interior de Goiás! 
  
                                    (comentário do poeta Ramiro)
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Fiz esse post ano passado, e o peru ainda continua vivo, na casa do vizinho. Parece incrível. Mas não é. Hoje mesmo vi uma reportagem sobre pessoas que domesticam essa ave, a criando como animal de estimação. E há também a tradição norte-americana de, todo ano no feriado de Ação de Graças, o presidente daquele país liberar um peru do sacrifício. 

E minha filha Júlia, ah! Como ela adora animais de todos os tipos!




6 comentários:

  1. Dizem que quando o animal ganha nome ele não morre mais, ele passa a ser da família. Vida longa ao Arcimboldo!

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  2. Efetivamente, o tal do Arcimboldo não é bobo.
    Tolo foi o Hitchens - que criou polichinelos
    a beber à sua morte junto ao Bush e ao embuste
    duma globalizada miséria intelectual – não por ser ateu!,
    mas por ter cuspido covardemente no prato que comeu.



    PS: 1) Feliz Ano Novo a você, Charlles, e à sua família.
    2) Sem dúvida, o olhar de sua filhinha é Aquele… de Deus.

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  3. Tem isso mesmo, Caminhante. Claro que ele não se chama Arcimboldo, mas com certeza tem um nome. Vida longa a ele, que é uma graça!

    Feliz Ano Novo a você e aos seus, amigo Ramiro. Não apaguei seu poema no post anterior, como pediu.

    Abraços.

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  4. Você podia manter ao menos em parte a tradição e oferecer uma pinga vez ou outra pro Arci - como é chamado entre os íntimos.

    Feliz 2012!

    Fábio Carvalho

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  5. muito rapidamente, estou no paraguay num pc nao meu.
    grande abraco a todos os comentaristas deste blog, em especial ao charlles. grande ano passei aqui, reflexoes sempre mto boas.
    abraco e felicidades.
    arbo

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  6. EPISTEMOLOGIA DO SUL
    by Ramiro Conceição


    Desejo o conto de fadas
    que conte efetivamente
    a história dessas casas.
    Aquele que não é um mero sonho,
    mas somatório de conhecimentos.
    Aquele em que as fadas são do Sul,
    não daquele Norte abissal, obscuro.
    Bem-vinda seja a travessia ao tempo dos diferentes
    e que se dê realmente a conquista que vale a pena:
    a celebração solar à Vida.

    Era uma vez…

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