quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O anticristo

 


Entro no facebook hoje. Vídeos que eu não quero ver são jogados na minha cara. Não quero ver um avião planando. Não quero ver um cara pendurado numa montanha. Não quero ver um vídeo caseiro de uma mulher de bermudas pegando um vaso na estante. Etc, etc, etc. Tudo de páginas que eu não sigo. E vem mais uma enxurrada de propaganda, as mais estúpidas possíveis. Não suporto e largo o celular. Creio que a depressão crônica que me toma todos os dias vem disso, dessa plenipotência da imbecilidade e do péssimo gosto. Me passa pela cabeça a impressão de que é assim que os poderosos sempre nos viram, os czares, césares, ditadores, colonizadores, presidentes, e as redes sociais agora nos mostra o segredo. A grande maioria da humanidade consiste de futilidade e ausência de espírito. Me lembro de Gurdjieff dizendo que só uma minúscula porcentagem de nós conseguiria a conquista da imortalidade. E Simone Weil dizendo que só poucos conseguem saber que existem, que vivem. Tudo o mais vai se apagar pela própria inanição do espírito, pela própria rarefação da consciência. Eu ainda fico aterrorizado de ver como nos deixamos chegar a isso. Minha avó me contava, quando eu era muito criança, sobre o anticristo. Que o anticristo iria marcar cada um dos habitantes da terra, e todos esses marcados iriam sucumbir e perecer. E eu, com oito anos e já muito cético, ria da ingenuidade pentecostal dessa senhora tão devota, pensando que quem seria burro pra se deixar marcar pelo anticristo. E hoje eu penso, quem me dera se houvessem elevadas entidades cósmicas, como um demônio, como um anticristo, para validar uma possível importância de nossas almas. Seres espirituais não tem interesse por nós. A realidade, se eu pudesse voltar no tempo e contar para minha avó, seria tão imbecil que ela jamais acreditaria. "Vó", eu lhe contaria, "o esplendor de Lúcifer não aconteceu, a senhora está errada. Quem nos dera! Aconteceu algo muito, muito, muito pior. Toda a humanidade, que está explodindo, oito bilhões, aceitou voluntariamente viver na mente de um adolescente. Toda a humanidade desistiu de planos maiores e se resignou pelo mais pobre, o mais abjeto, o mais feio, o mais perverso, e fica 24 horas só trabalhando feito um verme, feito uma mula, e vendo vídeos estúpidos. Sorrindo com carinhas estúpidas para mascarar a enorme tristeza. Não houve a glória do Mal, vó. Não houve a dignidade excruciante do inferno de Jó. Não houve fogo nem nenhum de nós teve a honra de ser transformado em uma estátua da sal. Houve só a abissal e brega burrice. Só as cores da miopia e os sons das dancinhas." Eliot disse que o fim viria não com um estrondo, mas com um lamento. E mesmo ele estava errado. O fim está vindo com um meme de um peido, e todos nós símios rindo do alto das árvores jogando bosta e se masturbando um nos outros. Até que tudo seja passado no rodo e não sobre nem uma fagulha de luz para testemunhar que seres como nós um dia existimos.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq

 



A leitura desse fenômeno de vendas, chamado Michel Houellebecq, suscita muitas cogitações sobre o que vem a ser carisma na literatura contemporânea. Houellebecq é retorcido com certa insistência, pelos seus leitores bem intencionados, para caber no molde de um Jonathan Swift e de um Albert Camus, e mesmo em suas primeiras obras ele tendo demonstrado não ter nenhum propósito de se equivaler a esses modelos, já em seus romances mais recentes vem reagindo passivamente a essa necessidade de entendimento, talvez de forma inconsciente. Em seu romance Plataforma, quando a temática das novas investiduras da dominação global através do turismo sexual dos antigos dominadores nas ex-colônias se junta à repercussão de um polêmica criada e exagerada pelos jornais, o carisma com muitas lacunas do autor sofre uma espécie de eufemização na tentativa de ver sarcasmo sofisticado no que aparentemente é apenas um niilismo grosseiro e uma astuta adequação ao que o público ávido por comprar livros requer. Tudo não passa de uma estratégia mercantil: o mercado encontra um escritor que polemiza dentro do gosto do freguês, e a mídia se apressa a potencializar o escândalo de uma elegante má reputação também ela com olhos raposinos nos lucros. É o par com sintonia perfeita para alimentar a fama e a glória para ambos os lados_ quantos jornalistas e formadores de opinião não passaram a se beneficiar largamente com documentários, reportagens e livros sobre Houellebecq?_: Houellebecq escreve Plataforma, um romance que só com muita credulidade poderia matizar delicadezas pontuais da política moderna como o turismo sexual e o islamismo, e a mídia ecoa com uma sensibilidade simuladamente ultrajada que realmente o autor brutaliza tanto o turismo sexual quanto o islamismo. Talvez o que satisfaz em primeiro plano o leitor nem seja a controversia, mas os mobiliários de cena os quais Houellebecq é pródigo em oferecer_ como paisagens, o tédio dos aeroportos e os apartamentos aquecidos de Paris_, mas a premissa sustentada pela propaganda feita para que as sublimidades de sua escrita passe a dar a impressão ao leitor de que ele está ganhando algo mais profundo do que um simples hedonismo de viagem: há ali uma sarcasmo político, um humanismo às avessas, uma fina experiência filosófica. Quando Houellebecq escreve todo um romance sobre turismo sexual, que qualquer um levemente bem informado sabe ser uma característica de todos os países, algo notório e incapaz de provocar surpresas, o imaginário criado como áurea à sua mensagem secreta é que quando ele aparenta defender a exploração de meninas em países subdesenvolvidos ele está, na verdade, emulando Swift quando este satiriza que a solução para conter a desigualdade social da Irlanda é comer os filhos dos irlandeses pobres. E no seguimento dessa colaboração entre escritor e mídia publicitária, Houellebecq encerra Plataforma com um massacre provocado por islamitas, o que dá à obra uma segunda vertente de incorreção. Se o leitor tiver ânimo para uma segunda leitura de Plataforma, verá que sua primeira impressão é a certa, de que tal romance tem 400 páginas dedicadas a descrições sexuais de uma insensibilização fisiológica (com uma repetição da frase, que é uma assinatura do autor em todos os seus livros: "ejaculei violentamente"), e uma longa e morosa catalogação sobre a burocracia de como funciona uma agencia de turismo internacional. Não que Houellebecq seja mal escritor, mas a questão é que ele parece ter perdido a mão, parece que seu excepcional talento demonstrado nesta que é sua única grande obra, Partículas elementares, se limita agora apenas a um bom cenógrafo. 

Uma recente pesquisa apontou que as crianças mais bem educadas do mundo são as francesas. Elas não fazem bagunça em aviões, elas não gritam, elas não pulam, elas não atravessam os assuntos dos adultos, elas não dão birra: uma criança francesa, pelo que enalteceu as revistas que ensinam as etiquetas do bom comportamento para famílias abastadas, para todos os efeitos do bem público, simplesmente não existe. Elas estão lá como composição do ambiente, mas são esvaziadas desde muito pequenas de qualquer potencial de perturbação. O segredo para se obter uma criança destas, reproduz por nossa terras virtuais o site da revista Veja, é porque os franceses não as tratam como crianças, os franceses deixam bem claro que as vidas dos pais estão desvinculadas das vidas de seus filhos, no tocante a tudo que esteja externo à manutenção financeira de seus estudos, alimentação e saúde. O carinho é algo protocolar, biológico, como deve ser entre bons conviventes de idades diametralmente opostas e que só por um acaso envolve detalhes escatológicos triviais como a gravidez e amamentação. Eu sempre achei que a excepcional assepsia da educação parental dos franceses determinou toda a literatura francesa. Determinou que seja algo impossível para a literatura francesa gerar um escritor como Kafka, por exemplo; e determinou que a atmosfera de abandono cósmico pretendido por Beckett para seus romances tenha levado Beckett a optar escrevê-los em francês. Nenhum escritor francês jamais teria a capacidade idiossincrática de centrar a figura do pai em sua obra, como fez Kafka, nem nas complexas identificações deístas do pai como em O processo e O castelo, nem mesmo no mais pungente debate com a tirania caseira do pai em Carta ao pai. Para um escritor francês, a figura do pai é meramente um assombro muito bem estancado em eras passadas a ponto de se tornar um reminiscente sem nenhum apelo filosófico em seus genes; o pai na literatura francesa tem um peso bovino, de animal associado a ilesas características reprodutoras, de uma figura que aparece nas fotos com uma seca intranscendência que é visto pelo seu filho com a falta de qualquer necessidade de esgotamento racional; o pai poupou o filho de especulações esotéricas, de nostalgias emocionalmente pouco econômicas e desgastantes; o pai oferece ao filho o dever de devolver no final da vida do pai a mesma polidez de ausência de toques desnecessários que este outorgou ao filho, na infância. Mesmo Camus, o menos francês dos escritores em francês, fracassou diante o abismo de tentar escrever uma elegia mais ocidental a seu pai, em O primeiro homem, quando todas as suas pretendidas observações sobre o túmulo do pai se transformam no mesmo ruído proximal e sem fôlego, expirado com pressa. E por isso o mais próximo do afeto paternal que se encontra na expressão francesa seja o da eutanásia do pai: seja no filme As invasões bárbaras, ou no romance de Houellebecq, O mapa e o território. Mas algo tão reativo para a arte como a figura do pai não é extirpado sem sérias consequências estéticas e significantes: a literatura francesa moderna é incapaz de se beneficiar da riqueza do tema da paternidade (temos aqui a mais gritante das exceções à regra na figura de Proust, principalmente na tocante e belíssima relação de paternidade entre o sr. Vinteuil e sua filha, que se acentua e perde todos os atenuantes regidos na educação da filha somente após a morte do pai, e na relação peculiar e terna do narrador com sua mãe).

Isso é amplamente visto nos romances de Houellebecq. Para nós, leitores sul-americanos, a assepsia da importância do pai é ainda mais implacável, nós que sempre fomos muito mau criados em nossos mimos de compensações supersticiosas e nossas balanças de afeto católicas, o que para o leitor francês de Houellebcq não passa de pedantismo circunstancial. Essa ausência de esoterismo afeta muito a qualidade da mais ambiciosa obra de Houellebecq, O mapa e o território. Esse romance é a prova de força do que sobra do carisma do autor quando ele tenta dar-se autonomia de escritor relevante negando-se a manter um contrato tão evidente de recíprocas garantias com a mídia polemista. Neste romance Houllebecq abre mão do sexo (há poucas cenas, e a usual frase "ejaculou violentamente"), não o colocando como um dos pés da obra; e aqui ele não recorre ao escândalo ou à maledicência. Sua tentativa de autonomia é respeitável, mas o que ele pretende ser a aproximação ao patamar sério de um Camus, acaba mostrando vários defeitos na obra. O defeito recorrente é o unidimensionalismo dos personagens: o herói da trama é bonzinho demais, racional demais, se permitindo um arroubo de violência moderada no final para ganhar legitimidade. As mulheres ainda são as sacerdotisas agradecidas dos desejos dos machos, que muito tem colaborado para as feministas verem no autor a encarnação do demônio, mas com menos disposição ao sacerdócio do que aparecem nos outros romances: elas arvoram uma inédita independência, sendo que a namorada do herói o deixa pela carreira profissional_ aqui, pela primeira vez, Houllebecq permite que uma de suas mulheres tenha humor, na figura da promotora de exposições do herói. O segundo e mais grave erro foi a técnica mal sucedida do próprio autor se pôr como um personagem no livo: na verdade é o que o livro tem de melhor, um Houellebecq pouco higiênico e com abstrusões de humor, mas o sentido da coisa fica incompreensível e a brutalidade da resolução dada ao artifício dá a impressão de uma mera comicidade gratuita.

A parte genuína da obra, a que parece capaz de alçar Houellebecq para um novo patamar, é a relação entre o pintor e herói da narrativa, Jed Martin, com seu pai. Martin é um recente milionário das artes, e seu pai é um profissional do ramo da arquitetura que está prestes a enfrentar o vazio de uma aposentadoria sem os vícios urbanos do excesso benemérito de trabalho. A convivência entre os dois, como não haveria de deixar de ser, é fria, distanciada, monologal, mecânica. Todo o peso da excepcional educação pragmática é visto na vida de Martin: seu determinismo ao sucesso, seu apartamento de alto luxo sem mobília em que ele dorme em um colchonete suportando o ronco do aquecedor sempre estragado, seus meses em que fica trancado em casa pintando, sem falar com ninguém, ao ponto de um simples pedido em uma padaria ser um esforço de desatrofiamento das cordas vocais. Martin vive a angústia de sua mãe ter suicidado antes que sua memória infantil pudesse perpetuar uma imagem dela. Martin é muito francês em seu polimento e suas reservas, em seu humanismo embutido aquém da racionalização. É o mais humano dos personagens de Houllebecq, em uma bibliografia recheada de personagens que estão situados além do bem e do mal, o mais próximo a um desentronamento de seu casulo para ser aquecido por uma impressão de alteridade. Uma vez, sem motivo algum, ele desce de seu apartamento e vai até o escritório do pai, apenas para estar diante dele, sabendo que a mesma inexorável falta de assunto vai abater sobre eles. O pai o recebe esbaforido, em pleno meio de um dia hipertensivo, e o repreende por assustá-lo e pelo nonsense da visita. Tempos depois, o próprio pai o visita, e eles bebem junto, num clima de intimidade desconcertante de uma primeira vez, e com o laconismo de sempre o pai lhe diz que vai recorrer à eutanásia em uma clínica suíça, porque se nega suportar o tratamento de um câncer de reto. É a última vez que se veem. Martin, em um novo arroubo, parte para procurar a clínica suíça para saber sobre os últimos momentos do pai, e encontra um prédio branco límpido e com a pureza sem exaltação dos muito ricos e muito civilizados. Lá, ele é atendido por uma mulher insípida e crua, avessa sem a mínima paciência a atender à vontade de Martin de saber o que seu pai viu e falou em seus momentos finais. Ele a soca e a espanca violentamente, a deixando atirada em evidente coma no chão, e sai diligentemente até o aeroporto, contando ser preso a qualquer hora. Neste momento, se fosse um filme, a plateia do cinema com certeza teria se regozijado em gritos e batido palmas. Martin vê que uma clínica destinada a multi-milionários jamais iria procurar os noticiários com uma denúncia de espancamento, e ele chega de volta a Paris. Quando ele estava procurando a clínica, um erro de interpretação idiomática faz com que o taxista o leve a um bordel de luxo. Houellebcq faz um novo esforço em adstringir o peso da vida com comparações do quanto seria melhor se o pai de Martin tivesse recorrido ao hedonismo do braço daquelas moças, no final da vida, em vez da solução da clínica. Inconscientemente ele acabou transformando todo o bem engendrado mobiliário de cena apto para reflexões mais profundas no mesmo clichê dessa vez sexualmente ponderado de seus outros livros. O único alcance obtido foi esse: a figura do pai fracassa em produzir algo substancial e vira uma decantada comédia. O que é revelado como mais diagnóstico desse fracasso é que o pai de Martin, na juventude, sonhou ser também um artista.

O vazio da paternidade é o tema de O mapa e o território. O personagem mais interessante, um chefe de polícia que é lamentavelmente aposentado da narrativa sem qualquer explicação próximo ao término do romance, é um pai fracassado por causa de sua oligoespermia, a quase nula produção de esperma. Isso que ele considera a maior dor da sua vida é contornada com o lenitivo da criação de um cachorrinho e de uma vida de atenções sanitárias recíprocas com a sua esposa. O próprio Houellebecq que aparece no livro é um órfão sedimentado, um órfão insofismável. O órfão padrão francês, com selo de qualidade. E tudo passa. A vida deles todos passa e é descrita até o fim a decomposição rumo à velhice e à morte de Martin. E o romance termina com a tristeza cada vez mais plástica e vazia de Houellebecq, que o conclui com o carisma típico de um escritor famoso que se sustenta pelo comedimento chique e pela competência de mobiliar bem a narrativa. Há uma tentativa de criticar a sociedade de consumo num novo coisismo em que Houllebecq faz de seu livro uma repetição da obra consumida, descrevendo manuais de funcionamento de carros e outros utensílios do desejo do homem moderno comum.

É impossível não se questionar por que Houellebecq é um dos escritores que mais se vendem no panorama atual das letras. Seus leitores são como ele? Ele fala o que pensa? Ele é uma forma ultra-moderna de sátiro? O que eu acho é que Houellebecq expressa muito mais sobre o que realmente é em seus livros, e o fato de ser brutalmente assassinado em O mapa e o território revela uma catarse auto-crítica que talvez aponta para uma nova exploração pessoal nas próximas obras. Ele se fez morrer talvez como forma de mea culpa. O que eu acho é que sua intranscendência é um espelho da mesma característica do homem consumidor de cultura do alto desse século XXI, bem localizado em sua falta de necessidade do autêntico e refestelado com o que a bijuteria fina da aparência do autêntico lhe dá de garantias de sofisticação e conteúdo. Uma leitura rarefeita e dentro de certos parâmetros válida, com a precisão de oferecer a matéria hercúlea de 400 páginas com a fluidez de leituras de revista. Uma leitura, no final das contas, inofensiva em toda sua comburência de coisa perigosa, fechada em seu círculo de validade ao ter como polo receptor um consumidor exatamente igual a ela.