domingo, 27 de fevereiro de 2022

O Bistrô Chinês_ Um Conto

 




Foi uma jornada da imolação e a pior demonstração de abandono que Timos teve. Nem antes nem depois sentira-se tão alvo do desinteresse do mundo, com todas as suas antigas sensações de insegurança despertadas. Sabia que seria assim e antes de se dispor a ir poderia ter escutado sua consciência e abandonado o plano. Em seu apartamento solitário, onde o frio já não lhe provocava temor e a chuva de contra a janela se tornara uma forma de paraíso, lembrava-se desse ano e sentia a tendência de se lamentar por ter sido tão burro, por tudo estar na sua cara, por ter caído naquela armadilha da aflição que o destino armara para ele. Mas o Timos de agora, vinte anos mais velho, seguro de suas faculdade mentais e conhecedor de tudo que o mundo permitia que a instável inteligência humana conhecesse, sabe que é inútil analisar desse ponto de salvaguarda a sua história. Sabia que era impossível não ir. Teria que passar por aquilo. Não deixaria Assia ir sozinha, não se pouparia de que ele fosse testemunha da vingança cuja estrutura já estava montada contra ele. Partiram da capital, 12 horas de voo sobre o Atlântico, luzes internas de luminária de escritório de mogno, como do escritório do tio, amareladas, exalando a ausência de ternura que marcaria aquelas duas semanas cheias de ruídos. Toda a conversa, desde que os 3 ocuparam suas poltronas, se afunilara, se tornando em murmúrios, onomatopeias, resmungos citadinos de raiva e tolerância mal feita. Não havia voado antes e um pavor vindo de uma inapropriada lucidez por se reconhecer entregue à sorte de um cilindro que testava pela milionésima vez o absurdo de afrontar a um deus que havia produzido sem retóricas um bípede terrestre tomou-lhe conta. Ele sabia que sua situação era desafortunada demais depois das tantas brigas pra cobrar algum consolo a Assia sobre esse pavor, era inimaginável que demonstrasse o pouco que fosse que alguma coisa em seu organismo não estava nada bem. A imagem do violinista, com seu onipresente cabelo de crina selvagem, não lhe saía da cabeça; um músico de orquestra deve pegar um avião como aquele por semana, e ele ali em sua desproteção pueril. Assia iria confirmar que era um frouxo, se para tal ela ainda precisasse de confirmações. A questão era apenas essa: a tábula onde se auferia a sua vocação pelo fracasso em tudo que fazia, sendo que o rancor surgido em seu peito não passava de uma variante do tema. Kiria apareceu para lhe dar uma esmola de piedade ao ver que ele suava em bicas e tinha uma cor nada boa. Chamou a aeromoça, e ele não a impediu. Quem sabe poderia render uma cena a seu favor, uma moça de pernas longas, o rosto de uma niilista sexual que dispensava provar para algum deus que a vaidade humana realizara a contento aquilo que a falta das asas de sua miserável condição havia lhe privado e aquele cilindro podia investir contra céus e tempestades sem dramas metafísicos e com a pureza sem moção da ciência; quem sabe surgisse entre esse quadro ilógico uma insinuação de interesse dessa bela mulher por ele, uma vez ele entregue em seu colo para algum processo de cura que iria muito além dos males do enjoo.

             Mas essa forma de provocar ciúmes em Assia se mostrou mais uma vez falha. A aeromoça mal lhe destinara um olhar, disse-lhe algumas palavras cordiais, alguns vaticínios militares da profissão, explicando-lhe a função do saco de vômito, que na verdade se revelara algo não tão óbvio de se usar, as posições necessárias de se ficar no caso de um ataque de ânsia, e lhe passou dois comprimidos não propriamente especificados a não ser que “o senhor vai ficar muito melhor depois de tomá-los”. E Timos não teve tempo de examinar se se tratava de uma beldade e não lhe pareceu que a maneira como ela lhe enfiara os comprimidos na boca tivesse alguma mensagem subliminar sobre libido. Tudo em sua cabeça se atentava à absoluta falta de conhecimento de como um objeto tão pesado e de geometria ridiculamente não natural poderia estar levando todos eles a onze quilômetros acima do mar escuro e frio. Esqueceu-se de Assia, refugiou-se em seu canto esperando que as drogas fizessem efeito e duvidando que o fariam, e chorou, não sabe se baixinho, algo lhe dizia que o fez em um volume inapropriado para aquele ambiente de eclético silêncio zimbório que reinava.

           A primeira cidade que conheceram foi Paris. Na imaginação dos três a única forma válida emocionalmente de abordarem uma cidade como aquela era através de hotéis baratos e viagens de carona. Não tinham contratado guias turísticos e nem tinham qualquer contato na cidade, apenas a proficiência em francês das duas irmãs e seu poder de comunicação aprendido em uma maçonaria acadêmica em que se pesava a frieza exigida pelos parisienses e uma limítrofe simpatia em que ninguém desprezaria duas mulheres com tal transbordamento de saúde juvenil. Timos tinha um domínio do francês bem peculiar, tinha lido Lacan e Foucault, e descobrira que não havia se atribuído tempo de ver que não entendia nada quando a comunicação era falada. Dormiram no mesmo quarto, um pequeno cômodo charmoso na Gare de l´Est, com sacada para um cinema desvalido e uma parede dupla de prédios populares do tempo antes da revolução, e que eles juraram que tinha sido alvo de registro das fotos de Charles Marville.

         Tudo melhorou substancialmente com o frio primaveril; por um longo momento Timos aceitou que a cultura e a radiância da liberdade eram verdades eternas maiores que os banais trambiques da paixão, a viagem era uma reeducação de tudo que ele lia nos livros e nisso o automatismo da juventude em conhecer o mundo antes de se entregarem de vez ao aborto da idade madura estava certo. Se pensasse muito enquanto andavam juntos pela cidade, veria a melancolia daquela ação, a triste aceitação de que aqueles dias eram tudo que restava de uma vida realmente feliz que a efemeridade de suas obrigações sem sentido com o obituário cotidiano os esperavam quando voltassem, era uma lucidez que sua própria razão de ser era se entregar ao engano, que aquele sorriso convulsivo mas natural dividido entre eles, na bagunça do quarto e no senso de adversidade ainda latente de seus meros problemas de casal. Era a última instância tardia de uma icônica beleza da infância.

         Haviam aqueles momentos proporcionados pelo esclarecimento do álcool, sentado à uma das mesas diante as fontes e a matéria humana inexaurível dos casais e crianças e artistas solitários, em que o olhar dos três se cruzavam em silêncio e a consciência de que aquilo não iria durar, estava com seu efêmero tempo contado, e que eles saboreavam juntos os efeitos colaterais dessa amarga descoberta que era que nenhuma dor que eles tinham até ali era válida, todas eram risíveis, pueris, fruto de alguma distorcida má criação mimada da classe que eles advinham (qualquer delas, isso não era marxismo, mas a existência pura). Na certa havia muitos gêneros de olhares silenciosos como esse, mas nenhum deles com uma ação tão aliviante.

              Nessa noite aconteceu algo que ele poderia colocar a culpa no cabernet, todos estavam altos pelas garrafas de vinho e sucumbiram a um desmaio paulatino, contraditoriamente que os levavam a profundas instâncias de sono ao mesmo tempo em que os sentidos vindos das paixões mais à flor da pele e nascidas do moto contínuo da exortação sensorial das propagandas e do romantismo residual continuavam rumorejando uma letargia quebradiça e prontificada para a autoafirmação desses pequenos demônios. De forma que Timos sentiu a pele fresca, aquecida pelos cobertores roçando-lhe a região do ventre, sentindo primeiro aquele chamado distante, agindo como por um misto de movimento infantil e resposta pessoal a algum sonho, e depois os sinais se firmando, verbalizando-se com irrecusável nitidez na mensagem progressiva, e ele ciente de que era inevitável ceder à sua exigência, na névoa do cansaço, do álcool e das fragmentadas iluminações que tiveram durante o dia, e ele abaixou sua calça e consumiu o ato com vagareza, sentindo o calor de uma atmosfera muito conhecida mas surpreendentemente nova o acolhendo da desproteção daquele quarto em uma capital com sua incisividade suplantando todos os artifícios da civilidade. Quando acabou, parecia que o ato tinha vindo como complemento lógico à intuição filosófica que Assia demonstrara que compreendera muito acima da fragmentação que as emoções de Timos conseguira vislumbra-la, e Timos caiu em uma paz profunda embalada por esse perdão que ela lhe dava sobre todas as brutalidades que ele havia cometido contra ela. Mais tarde, em uma frequência horária que ele não poderia medir naquela noite que parecia ser uma abdução suspensiva na eternidade, ele sentiu o mesmo aceno vindo de uma farol longínquo, do meio do oceano negro e impalpável, mas que seus instintos de libido e prazer, menos que o de ser autorizado por um novo conhecimento, responderam com prontificação, agora com mais empenho muscular, com o animal liberado de dentro dele, um animal que passara pelas provas de toda racionalização e se provara com direito de se externar sem qualquer peso de consciência ou culpa ou teorizações. Mais tarde, na infinita noite, ele quem procurou, enviando aquela ordem dominante e sendo respondido da mesma forma. Sempre novos aprendizados. Quando acordaram, em uma manhã radiante, com a luz do sol instalada por entre as cortinas beges, a translúcida impressão de que a vida estava zerada para um novo começo em que haveria um novo mundo de coisas inéditas a explorar lá fora, as circunstâncias daquele despertar para um novo dia trouxe uma certeza muda entre os três.

     Era notório a descomplicação dos bretões quanto aos corpos, como eles haviam resolvido em alguma imprecisa época histórica de luta contra carências reais aquela vergonha ignóbil de seus corpos nus que tanto fazia perder tempo com restolhos inúteis o resto do mundo. Pois eles estavam assim, a atmosfera de liberdade os havia contaminado. No uso coletivo do banheiro para as abluções da manhã, enquanto escovava os dentes e Assia se sentava na privada para esvaziar um tanto soniferamente sua bexiga_ e Kiria escolhia uma nova calcinha com a porta aberta do banheiro_, Timos deixou que a certeza do que havia acontecido à noite alargasse o ponto em seu cérebro e tomasse-lhe conta por inteiro. Enquanto cuspia a espuma da pasta dental na pia, sorvendo entre os incisivos o gosto mentolado que tão bem condizia com aquele céu pleno de riquezas que por um luxo adâmico ele atrasava de propósito para se deleitar, o discurso que estava pronto lá no fundo o interpolava sobre a necessidade de que ainda tivesse validade, e a resposta que a nova instância de um Timos aquilino e alegremente pouco cerebral era de que aquela voz podia se calar para sempre, numa seguridade de que o silêncio era a única solução que se poderia dar para ela que seria feito sem rancor, sem medo, sem ecos das agora antigas abstrações. Ele havia sim dormido com as duas, biblicamente, sorriu ao usar essa palavra tosca que lembrava-lhe da fonte de repressão sexual que cobria todos os assuntos cotidianos. Assia deu um muxoxo distraído carregado de uma preguiça infantil cheia de incognoscível energia, puxou um pedaço de papel higiênico e limpou sua vagina com uma falta de pudor ainda mais rusticamente brilhante, e lhe perguntou de que ele ria. Seria o primeiro assunto do dia, e ele balançou a cabeça e disse que não era nada, uma das piadas vestigiais que nos assolam quando a mente é deixada por si mesma para realizar os movimentos maquinais de sobrevivência e um pensamento ou outro escondido por alguma misteriosa assimilação no sistema de acondicionamentos aflora, ele não tendo dito isso, ou antes o fato de tê-lo pensado servindo como frequência para o diálogo de que ele estava protegido por uma banalidade, que estava longe e imune ao tipo de dúvidas que poderia tê-lo assaltado se aquela luz parisiense cheia de presenças dos grandes libertadores amorais não o tivesse resgatado.

       Timos cogitava, anos depois, que se tivessem se despedido naquela tarde, aquilo faria parte das memórias não protocolares de sua vida, aquelas que a maturidade da fisiologia da mente iria duvidar se teria mesmo acontecido, se não fora uma ilusão criada por uma costura de múltiplas experiências, sonhos, distrações, a forma como a alma exsuda o tóxico de sentimentos represados e sem utilidade. Ele tinha algumas lembranças assim, que por mais que se esforçasse jamais saberia se eram registros de acontecimentos reais ou meras alucinações. Havia uma, a de uma mulher simplória, uma morena calipigiana, faxineira, cabelos crespos pela cintura, um sorriso afável, uma espécie de sacerdotisa recém-liberta, que um antigo patrão lhe comprara a liberdade e a partir de então ela se assumira livre diante o mundo, e que ele, Timos, havia tido uma série de encontros em um albergue em uma das ruas no centro da cidade. Ele se lembrava com impactante lucidez do quarto, detalhes da rua de frente, e tinha uma recordação de como eles se consumiram um ao outro durante horas, mas era-lhe impossível saber se aquilo realmente ocorrera. Talvez o aspecto de que havia um limite a que seu esforço por averiguar se batia e insuflava, para se tornar apenas um adiamento, fosse parte do recurso sináptico, que talvez já houvesse sido catalogado pela neurologia_ ou pelo esoterismo, ou pela ciência dos sonhos e das lembranças das vidas passadas, ou pela intersecção de ondas de dimensões alternativas paralelas_, ou um dia seria, quem sabe. Assia seria mais uma “morena de frente ao mundo”, ela e sua irmã, se eles não tivessem mais duas semanas pela frente, só que a liberdade comprada dessa vez apareceria como tendo sido a dele.

       Foram para Madri, para Bruxelas, para as ilhas gregas, conheceram inúmeras pessoas, a maioria jovens mas tendo também aventureiros de meia idade e senhores e senhoras que faziam aquele percurso de autodescoberta pela duodécima vez, confrontadas pela finalização dos anos que a suavidade do olhar adquiria um agradecimento ancestral, uma melancolia que emitia uma crisálida na forma de seus corpos enrugados, os ombros enlanguescidos pelas sucessivas despedidas da juventude em todos seus variados graus, e que se justificava por ser o rastro que deixava do retorno ao cosmo em suas matérias finitas. Depois daquela noite ele transara com Assia em locais reservados, ou que era possível que soubesse que Kiria não estava presente. Mas havia acabado. Em Creta, diante os campos decíduos onde Odisseu a Eros revoluteavam nas pupilas ébrias, ele se sentara ao lado dela, na comunidade de viajantes sentada em seus mantos e toalhas e com suas cestas de piquenique, e a olhou longamente, abaixando os olhos não por timidez, enquanto aqueles olhos dela, que antes lhe inspiravam noções mefistofélicas suspeitas, o viam da mesma maneira com ela o vira desde que se conheceram no restaurante da faculdade. Um casal muito velho estava sentados no declínio um pouco abaixo deles, ele com uma camisa com uma estampa de uma cerveja black ale onde se via um hippie octogenário sorrindo em cima de uma Harley Davidson, e com uma bermuda folgada com bolsos laterais muito amarrotada, e ela com um vestido floral que não se cansava em emitir uma cauda lateral expandida pelo vento, e um chapéu de palha que ela segurava toda vez que a faceirice do vento serrano tentava como uma cãozinho lhe arrematá-lo de cima dos cabelos, se olhavam conversavam molemente, com muita atenção recíproca, como se um histórico de sobrevivência individual que trançava-se em um muito vigiado sistema de cuidados recíprocos lhes mostrassem que precisavam ser plenamente cordiais e cuidadosos um com o outro. E Timos e Assia os olhavam, mudos, sorriam depois um encarando o outro, como se a dizerem o que as palavras que se lhes aumentava no vocabulário nas experiências daquele momento ainda não lhes autorizassem a matizarem a apreensão do inefável que exigia silêncio. Quantas lembranças o casal de idosos teria, que espécie terrível de felicidade que suplantara tanta imaginável corrupção e acusações recíprocas havia enterrado abaixo de toda aquela leveza. Não era para eles, nunca seria para eles.

              Não voltaram a ser ver, além dos cruzamentos rotineiros de dois ex-conhecidos pelos corredores da faculdade. Timos se demitira do estágio, voltara às suas aulas (por muito pouco tempo, porque pedira demissão delas também quando concluíra a grade no final do ano). Estudara com moderado afinco sobre política e filosofia, o brilhantismo de seu regime mental sendo transparente mesmo com todo o muro anárquico de sua dissenção natural. Anos depois, vinte anos para ser exato, Timos e Assia voltaram a se encontrar.  Ela tinha se tornado funcionária pública do ministério de agricultura, sua paixão pela China a alçara do doutorado para o comércio mundial e ela se estabelecera como uma senhora redimida com a solidão, morando agora em um apartamento despretensioso de alto nível numa rua que atendia a todas suas necessidades perfeitamente acomodadas de divorciada que come croque monsieur à noite com uma taça de vinho assistindo algum talk-show em que presta atenção como uma criança hipnotizada por uma versão atual dos Muppets. Um casamento com um colega de trabalho que não durou um ano e que não gerara filhos ficara pelo meio. Três lances de escadas era a distância que tinha que atravessar para chegar à rosa dos ventos de sua independência estabelecida, com uma praça com bistrô e quatro postes de luz de sódio e alguns bancos de ferro ornado sobre os quais não era uma mera casualidade do destino que a fizessem lembrar-se de Paris, de certo ar em que transitavam em suas acomodações mnemônicas um quarto pequeno diante um cinema desvalido, porque sua fixações da juventude a fizeram ter pleno domínio de sua vida para ter escolhido aquele local para morar, a China e as noites de leitura sobre o costume da obscura geração Mu Guiying a fizeram senhora de si, gestora de seu dinheiro, dona de seus sentidos, de suas manhas, de seus pequenos e incontornáveis vícios advindos de pertencer à espécie humana; a banca de jornais onde um senhor magro, de bigode que lembrava um teutônico de alguma imprecisa e para sempre inatingível suspeita de que era uma estampa em algum cartaz de festa da cerveja que vira em alguma representação de um povoado na Baviera, e até ele poderia ser um detalhe que ela quis que estivesse ali, para que, na volta do prédio do ministério, que ficava a cinquenta passos de sua casa, pudesse fazer um cafuné em suas vistas observá-lo com seus suspensórios perfazendo o enfeixe sensorial devido do clichê de sua boina xadreza limpa e perfumada arrumados os jornais do mundo todo nas estantes da banca de paredes de treliças e flores em vasos na entrada. Timos a encontrara na padaria em que ela comprava seu brie, ele tendo ido ali por alguma distração, pois sua vida não tinha ganho a áurea de ser perfeitamente manejável por uma vontade pessoal. Ela quem o reconhecera, embora ele mais tarde pensasse sobre isso e achasse que era mais uma manifestação de sua profunda inteligência tê-lo escavado de todo aquele inchamento e maceramento corporal.

           Ela fez uma festa, o abraçou, falava alto o deixando sem jeito diante o assombro inesperado daquilo, chamando os funcionários do local pelo nome e o apresentando como se ele fosse alguém cuja importância em sua vida era restaurada naquele momento de extrema felicidade. Em seu modo de existência no exílio qualquer mudança no termômetro emotivo, vinda com a quebra da harmonia de decibéis, deixava-o muito incomodado, o equilíbrio de sua percepção racional ficava em frangalhos e era substituído por uma excessiva misoginia. Por isso achou que aquela garota estabelecida em sua história, em um local glorioso, ressurgira como uma mulher de meia idade louca e histérica para destruir a honrada herança da outra. Ela tinha perdido a beleza, era óbvio, uma beleza fulgurante como a que havia tido era um milagre que só se perpetuaria se a Assia tivesse sido devolvida ao princípio criador junto a ela numa morte na juventude. Ela fez questão de leva-lo a seu apartamento, preparou-lhe um chá de ervas que correspondia milimetricamente com o avatar de velha solitária com deliciosas manias domésticas remetendo à jovem que era tão afeita a seus cheiros pessoais e à suas umidades quando a tirania de Timos a fazia chorar.

             Enquanto tomavam vinho, ela lhe perguntou se achava que tinha realmente transado com Kiria em Paris, naquela noite. Ele lhe olhara firmemente, um meio sorriso surgindo, à procura de onde estava a artimanha na pergunta. Depois, como se um pensamento muito antigo, cujo adiamento distante por analisa-lo despertasse um sentimento de ameaça, disse que achava que sim. Assia tombara a cabeça por sobre o escoro do sofá, suas pernas cobertas por uma calça comprida que lembrava vagamente uma influência chinesa dobradas na almofada e a taça sustentada por sua mão equilibrista dançando de frente ao seu rosto, abriu a boca mostrando os dentes fortes e brancos, com o rosáceo da mucosa úmida pelo vinho aparecendo num gesto sem alacridade ou crítica, apenas que ela reavaliava uma verdade sempre renitente mas também adiada. Era como se, naquele mundo simplificado e sem gastos desnecessários de energia, aquela questão tivesse um exotismo estimulante de uma era que se perdeu no passado; como se descobrisse em um manual de uso de um brinquedo, subitamente reencontrado, uma finalidade do brinquedo desaparecido que ela talvez um dia tivesse intuído mas que não levara a sério.

        _ Até o momento eu achava que isso fosse uma das poucas certezas da minha vida_ Timos respondeu, com a presença espiritual de não deixar que o humor do encontro se desfizesse.

       Ela se voltou para ele e o observou com uma seriedade que realmente nada tinha muito a ver com a seriedade taciturna e intelectualmente fanatizada de quando era uma garota. Timos notou através do novo movimento calmo e descontraído dela para mudar as pernas de posição os tornozelos roliços, imaginou ou viu uma pintas negras do pelo depilado crescendo novamente. Seria mesmo a piada das piadas se um tom sexual surgisse de um portal que os ligassem a duas décadas atrás, ela tinha a faceirice agora da terna mulher que já alcançara a plenitude de toda a sua confiança feminina. Não desmereceu sua ilusão, não zombou dele_ se o fizesse, teriam ido de maneira mais fácil para o nível que a conversa exigia, mas existia uma educação superior naquele avatar dela.

         _ Você não a viu mais, não é? Nunca mais depois que chegamos de Paris. Ela foi para as Filipinas, quis se formar em administração de empresas depois que conhecesse o mercado por dentro, era avessa a teorizações, tinha energia demais para ficar apenas com os estudos.

         Atendendo a certa premonição, ele ficou em silêncio, mas ela percebeu a delicadeza da suspeita e negou: Não, não. Não foi isso, ela ficou bem por vários anos e ainda está viva. Chegamos a uma idade em que se tem que apontar esse detalhes primeiro no discurso.

   _ Mas então, transei com ela ou não?_ Timos perguntou, sorrindo.

_ Naquela noite fomos apenas nós dois. Ela nem sequer estava na sala. Foi para o quarto do lado, deitou-se em um sofá ferrugem tipicamente francês, retirado de um filme de Agnès Varda.

_ Eu me lembro do sofá_ Timos respondeu, querendo disfarçar que não sentia uma perda com o fato daquela experiência ter-lhe sido retirada. Quando se importava com essas caras tolices da vaidade, saber que tinha tido Kiria em suas mãos era uma de suas lembranças mais valiosas. Sentiu a masculinidade viciada em quantificações totêmicas, as tantas cabeças de mulheres dependuradas na sala de coleção de sua mansão interna. Mas Kiria era diferente; não só pela aventura lubricamente incorreta, mas pela beleza inalcançável dela, sua força afiada como um machado, o modo de sua inteligência em ser cruamente direta, sem os subterfúgios das reflexões e das pausas metafísicas. Não era a mulher perfeita; aliás, quem tivesse se casado com ela deveria ter sofrido, não era feita para esse tipo de união normativa.

2 comentários:

  1. Acabei de ler o conto e achei maravilhosamente bem escrito, Charlles.

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  2. Lendo o "Augie March", meu primeiro Saul Bellow, muito por sua influência. Já é um dos meus autores favoritos. Que delícia de livro. Um abraço. Eduardo.

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