Foi uma jornada da imolação e a pior demonstração de abandono
que Timos teve. Nem antes nem depois sentira-se tão alvo do desinteresse do
mundo, com todas as suas antigas sensações de insegurança despertadas. Sabia
que seria assim e antes de se dispor a ir poderia ter escutado sua consciência
e abandonado o plano. Em seu apartamento solitário, onde o frio já não lhe
provocava temor e a chuva de contra a janela se tornara uma forma de paraíso,
lembrava-se desse ano e sentia a tendência de se lamentar por ter sido tão
burro, por tudo estar na sua cara, por ter caído naquela armadilha da aflição
que o destino armara para ele. Mas o Timos de agora, vinte anos mais velho,
seguro de suas faculdade mentais e conhecedor de tudo que o mundo permitia que a
instável inteligência humana conhecesse, sabe que é inútil analisar desse ponto
de salvaguarda a sua história. Sabia que era impossível não ir. Teria que
passar por aquilo. Não deixaria Assia ir sozinha, não se pouparia de que ele
fosse testemunha da vingança cuja estrutura já estava montada contra ele.
Partiram da capital, 12 horas de voo sobre o Atlântico, luzes internas de
luminária de escritório de mogno, como do escritório do tio, amareladas, exalando
a ausência de ternura que marcaria aquelas duas semanas cheias de ruídos. Toda
a conversa, desde que os 3 ocuparam suas poltronas, se afunilara, se tornando
em murmúrios, onomatopeias, resmungos citadinos de raiva e tolerância mal
feita. Não havia voado antes e um pavor vindo de uma inapropriada lucidez por
se reconhecer entregue à sorte de um cilindro que testava pela milionésima vez
o absurdo de afrontar a um deus que havia produzido sem retóricas um bípede
terrestre tomou-lhe conta. Ele sabia que sua situação era desafortunada demais
depois das tantas brigas pra cobrar algum consolo a Assia sobre esse pavor, era
inimaginável que demonstrasse o pouco que fosse que alguma coisa em seu
organismo não estava nada bem. A imagem do violinista, com seu onipresente
cabelo de crina selvagem, não lhe saía da cabeça; um músico de orquestra deve
pegar um avião como aquele por semana, e ele ali em sua desproteção pueril.
Assia iria confirmar que era um frouxo, se para tal ela ainda precisasse de
confirmações. A questão era apenas essa: a tábula onde se auferia a sua vocação
pelo fracasso em tudo que fazia, sendo que o rancor surgido em seu peito não
passava de uma variante do tema. Kiria apareceu para lhe dar uma esmola de
piedade ao ver que ele suava em bicas e tinha uma cor nada boa. Chamou a
aeromoça, e ele não a impediu. Quem sabe poderia render uma cena a seu favor,
uma moça de pernas longas, o rosto de uma niilista sexual que dispensava provar
para algum deus que a vaidade humana realizara a contento aquilo que a falta
das asas de sua miserável condição havia lhe privado e aquele cilindro podia
investir contra céus e tempestades sem dramas metafísicos e com a pureza sem
moção da ciência; quem sabe surgisse entre esse quadro ilógico uma insinuação
de interesse dessa bela mulher por ele, uma vez ele entregue em seu colo para
algum processo de cura que iria muito além dos males do enjoo.
Mas essa
forma de provocar ciúmes em Assia se mostrou mais uma vez falha. A aeromoça mal
lhe destinara um olhar, disse-lhe algumas palavras cordiais, alguns vaticínios
militares da profissão, explicando-lhe a função do saco de vômito, que na
verdade se revelara algo não tão óbvio de se usar, as posições necessárias de
se ficar no caso de um ataque de ânsia, e lhe passou dois comprimidos não propriamente
especificados a não ser que “o senhor vai ficar muito melhor depois de tomá-los”.
E Timos não teve tempo de examinar se se tratava de uma beldade e não lhe
pareceu que a maneira como ela lhe enfiara os comprimidos na boca tivesse
alguma mensagem subliminar sobre libido. Tudo em sua cabeça se atentava à
absoluta falta de conhecimento de como um objeto tão pesado e de geometria
ridiculamente não natural poderia estar levando todos eles a onze quilômetros
acima do mar escuro e frio. Esqueceu-se de Assia, refugiou-se em seu canto
esperando que as drogas fizessem efeito e duvidando que o fariam, e chorou, não
sabe se baixinho, algo lhe dizia que o fez em um volume inapropriado para
aquele ambiente de eclético silêncio zimbório que reinava.
A primeira
cidade que conheceram foi Paris. Na imaginação dos três a única forma válida
emocionalmente de abordarem uma cidade como aquela era através de hotéis
baratos e viagens de carona. Não tinham contratado guias turísticos e nem
tinham qualquer contato na cidade, apenas a proficiência em francês das duas
irmãs e seu poder de comunicação aprendido em uma maçonaria acadêmica em que se
pesava a frieza exigida pelos parisienses e uma limítrofe simpatia em que
ninguém desprezaria duas mulheres com tal transbordamento de saúde juvenil.
Timos tinha um domínio do francês bem peculiar, tinha lido Lacan e Foucault, e
descobrira que não havia se atribuído tempo de ver que não entendia nada quando
a comunicação era falada. Dormiram no mesmo quarto, um pequeno cômodo charmoso
na Gare de l´Est, com sacada para um cinema desvalido e uma parede dupla de
prédios populares do tempo antes da revolução, e que eles juraram que tinha
sido alvo de registro das fotos de Charles Marville.
Tudo melhorou
substancialmente com o frio primaveril; por um longo momento Timos aceitou que
a cultura e a radiância da liberdade eram verdades eternas maiores que os
banais trambiques da paixão, a viagem era uma reeducação de tudo que ele lia nos
livros e nisso o automatismo da juventude em conhecer o mundo antes de se
entregarem de vez ao aborto da idade madura estava certo. Se pensasse muito
enquanto andavam juntos pela cidade, veria a melancolia daquela ação, a triste
aceitação de que aqueles dias eram tudo que restava de uma vida realmente feliz
que a efemeridade de suas obrigações sem sentido com o obituário cotidiano os
esperavam quando voltassem, era uma lucidez que sua própria razão de ser era se
entregar ao engano, que aquele sorriso convulsivo mas natural dividido entre
eles, na bagunça do quarto e no senso de adversidade ainda latente de seus
meros problemas de casal. Era a última instância tardia de uma icônica beleza
da infância.
Haviam aqueles
momentos proporcionados pelo esclarecimento do álcool, sentado à uma das mesas
diante as fontes e a matéria humana inexaurível dos casais e crianças e
artistas solitários, em que o olhar dos três se cruzavam em silêncio e a
consciência de que aquilo não iria durar, estava com seu efêmero tempo contado,
e que eles saboreavam juntos os efeitos colaterais dessa amarga descoberta que
era que nenhuma dor que eles tinham até ali era válida, todas eram risíveis,
pueris, fruto de alguma distorcida má criação mimada da classe que eles
advinham (qualquer delas, isso não era marxismo, mas a existência pura). Na
certa havia muitos gêneros de olhares silenciosos como esse, mas nenhum deles
com uma ação tão aliviante.
Nessa
noite aconteceu algo que ele poderia colocar a culpa no cabernet, todos estavam
altos pelas garrafas de vinho e sucumbiram a um desmaio paulatino,
contraditoriamente que os levavam a profundas instâncias de sono ao mesmo tempo
em que os sentidos vindos das paixões mais à flor da pele e nascidas do moto
contínuo da exortação sensorial das propagandas e do romantismo residual
continuavam rumorejando uma letargia quebradiça e prontificada para a autoafirmação
desses pequenos demônios. De forma que Timos sentiu a pele fresca, aquecida
pelos cobertores roçando-lhe a região do ventre, sentindo primeiro aquele
chamado distante, agindo como por um misto de movimento infantil e resposta
pessoal a algum sonho, e depois os sinais se firmando, verbalizando-se com
irrecusável nitidez na mensagem progressiva, e ele ciente de que era inevitável
ceder à sua exigência, na névoa do cansaço, do álcool e das fragmentadas
iluminações que tiveram durante o dia, e ele abaixou sua calça e consumiu o ato
com vagareza, sentindo o calor de uma atmosfera muito conhecida mas
surpreendentemente nova o acolhendo da desproteção daquele quarto em uma
capital com sua incisividade suplantando todos os artifícios da civilidade.
Quando acabou, parecia que o ato tinha vindo como complemento lógico à intuição
filosófica que Assia demonstrara que compreendera muito acima da fragmentação
que as emoções de Timos conseguira vislumbra-la, e Timos caiu em uma paz
profunda embalada por esse perdão que ela lhe dava sobre todas as brutalidades
que ele havia cometido contra ela. Mais tarde, em uma frequência horária que
ele não poderia medir naquela noite que parecia ser uma abdução suspensiva na
eternidade, ele sentiu o mesmo aceno vindo de uma farol longínquo, do meio do
oceano negro e impalpável, mas que seus instintos de libido e prazer, menos que
o de ser autorizado por um novo conhecimento, responderam com prontificação,
agora com mais empenho muscular, com o animal liberado de dentro dele, um
animal que passara pelas provas de toda racionalização e se provara com direito
de se externar sem qualquer peso de consciência ou culpa ou teorizações. Mais
tarde, na infinita noite, ele quem procurou, enviando aquela ordem dominante e
sendo respondido da mesma forma. Sempre novos aprendizados. Quando acordaram,
em uma manhã radiante, com a luz do sol instalada por entre as cortinas beges,
a translúcida impressão de que a vida estava zerada para um novo começo em que
haveria um novo mundo de coisas inéditas a explorar lá fora, as circunstâncias
daquele despertar para um novo dia trouxe uma certeza muda entre os três.
Era notório a
descomplicação dos bretões quanto aos corpos, como eles haviam resolvido em
alguma imprecisa época histórica de luta contra carências reais aquela vergonha
ignóbil de seus corpos nus que tanto fazia perder tempo com restolhos inúteis o
resto do mundo. Pois eles estavam assim, a atmosfera de liberdade os havia
contaminado. No uso coletivo do banheiro para as abluções da manhã, enquanto
escovava os dentes e Assia se sentava na privada para esvaziar um tanto
soniferamente sua bexiga_ e Kiria escolhia uma nova calcinha com a porta aberta
do banheiro_, Timos deixou que a certeza do que havia acontecido à noite
alargasse o ponto em seu cérebro e tomasse-lhe conta por inteiro. Enquanto
cuspia a espuma da pasta dental na pia, sorvendo entre os incisivos o gosto
mentolado que tão bem condizia com aquele céu pleno de riquezas que por um luxo
adâmico ele atrasava de propósito para se deleitar, o discurso que estava
pronto lá no fundo o interpolava sobre a necessidade de que ainda tivesse
validade, e a resposta que a nova instância de um Timos aquilino e alegremente
pouco cerebral era de que aquela voz podia se calar para sempre, numa
seguridade de que o silêncio era a única solução que se poderia dar para ela
que seria feito sem rancor, sem medo, sem ecos das agora antigas abstrações.
Ele havia sim dormido com as duas, biblicamente, sorriu ao usar essa palavra
tosca que lembrava-lhe da fonte de repressão sexual que cobria todos os
assuntos cotidianos. Assia deu um muxoxo distraído carregado de uma preguiça
infantil cheia de incognoscível energia, puxou um pedaço de papel higiênico e
limpou sua vagina com uma falta de pudor ainda mais rusticamente brilhante, e
lhe perguntou de que ele ria. Seria o primeiro assunto do dia, e ele balançou a
cabeça e disse que não era nada, uma das piadas vestigiais que nos assolam
quando a mente é deixada por si mesma para realizar os movimentos maquinais de
sobrevivência e um pensamento ou outro escondido por alguma misteriosa
assimilação no sistema de acondicionamentos aflora, ele não tendo dito isso, ou
antes o fato de tê-lo pensado servindo como frequência para o diálogo de que
ele estava protegido por uma banalidade, que estava longe e imune ao tipo de
dúvidas que poderia tê-lo assaltado se aquela luz parisiense cheia de presenças
dos grandes libertadores amorais não o tivesse resgatado.
Timos cogitava,
anos depois, que se tivessem se despedido naquela tarde, aquilo faria parte das
memórias não protocolares de sua vida, aquelas que a maturidade da fisiologia
da mente iria duvidar se teria mesmo acontecido, se não fora uma ilusão criada
por uma costura de múltiplas experiências, sonhos, distrações, a forma como a
alma exsuda o tóxico de sentimentos represados e sem utilidade. Ele tinha
algumas lembranças assim, que por mais que se esforçasse jamais saberia se eram
registros de acontecimentos reais ou meras alucinações. Havia uma, a de uma
mulher simplória, uma morena calipigiana, faxineira, cabelos crespos pela
cintura, um sorriso afável, uma espécie de sacerdotisa recém-liberta, que um
antigo patrão lhe comprara a liberdade e a partir de então ela se assumira
livre diante o mundo, e que ele, Timos, havia tido uma série de encontros em um
albergue em uma das ruas no centro da cidade. Ele se lembrava com impactante
lucidez do quarto, detalhes da rua de frente, e tinha uma recordação de como
eles se consumiram um ao outro durante horas, mas era-lhe impossível saber se
aquilo realmente ocorrera. Talvez o aspecto de que havia um limite a que seu
esforço por averiguar se batia e insuflava, para se tornar apenas um adiamento,
fosse parte do recurso sináptico, que talvez já houvesse sido catalogado pela
neurologia_ ou pelo esoterismo, ou pela ciência dos sonhos e das lembranças das
vidas passadas, ou pela intersecção de ondas de dimensões alternativas
paralelas_, ou um dia seria, quem sabe. Assia seria mais uma “morena de frente
ao mundo”, ela e sua irmã, se eles não tivessem mais duas semanas pela frente,
só que a liberdade comprada dessa vez apareceria como tendo sido a dele.
Foram para Madri,
para Bruxelas, para as ilhas gregas, conheceram inúmeras pessoas, a maioria
jovens mas tendo também aventureiros de meia idade e senhores e senhoras que
faziam aquele percurso de autodescoberta pela duodécima vez, confrontadas pela
finalização dos anos que a suavidade do olhar adquiria um agradecimento
ancestral, uma melancolia que emitia uma crisálida na forma de seus corpos
enrugados, os ombros enlanguescidos pelas sucessivas despedidas da juventude em
todos seus variados graus, e que se justificava por ser o rastro que deixava do
retorno ao cosmo em suas matérias finitas. Depois daquela noite ele transara
com Assia em locais reservados, ou que era possível que soubesse que Kiria não
estava presente. Mas havia acabado. Em Creta, diante os campos decíduos onde
Odisseu a Eros revoluteavam nas pupilas ébrias, ele se sentara ao lado dela, na
comunidade de viajantes sentada em seus mantos e toalhas e com suas cestas de piquenique,
e a olhou longamente, abaixando os olhos não por timidez, enquanto aqueles
olhos dela, que antes lhe inspiravam noções mefistofélicas suspeitas, o viam da
mesma maneira com ela o vira desde que se conheceram no restaurante da
faculdade. Um casal muito velho estava sentados no declínio um pouco abaixo
deles, ele com uma camisa com uma estampa de uma cerveja black ale onde se via
um hippie octogenário sorrindo em cima de uma Harley Davidson, e com uma
bermuda folgada com bolsos laterais muito amarrotada, e ela com um vestido
floral que não se cansava em emitir uma cauda lateral expandida pelo vento, e
um chapéu de palha que ela segurava toda vez que a faceirice do vento serrano
tentava como uma cãozinho lhe arrematá-lo de cima dos cabelos, se olhavam
conversavam molemente, com muita atenção recíproca, como se um histórico de
sobrevivência individual que trançava-se em um muito vigiado sistema de cuidados
recíprocos lhes mostrassem que precisavam ser plenamente cordiais e cuidadosos
um com o outro. E Timos e Assia os olhavam, mudos, sorriam depois um encarando
o outro, como se a dizerem o que as palavras que se lhes aumentava no
vocabulário nas experiências daquele momento ainda não lhes autorizassem a
matizarem a apreensão do inefável que exigia silêncio. Quantas lembranças o
casal de idosos teria, que espécie terrível de felicidade que suplantara tanta
imaginável corrupção e acusações recíprocas havia enterrado abaixo de toda
aquela leveza. Não era para eles, nunca seria para eles.
Não
voltaram a ser ver, além dos cruzamentos rotineiros de dois ex-conhecidos pelos
corredores da faculdade. Timos se demitira do estágio, voltara às suas aulas
(por muito pouco tempo, porque pedira demissão delas também quando concluíra a
grade no final do ano). Estudara com moderado afinco sobre política e
filosofia, o brilhantismo de seu regime mental sendo transparente mesmo com
todo o muro anárquico de sua dissenção natural. Anos depois, vinte anos para
ser exato, Timos e Assia voltaram a se encontrar. Ela tinha se tornado funcionária pública do
ministério de agricultura, sua paixão pela China a alçara do doutorado para o
comércio mundial e ela se estabelecera como uma senhora redimida com a solidão,
morando agora em um apartamento despretensioso de alto nível numa rua que
atendia a todas suas necessidades perfeitamente acomodadas de divorciada que
come croque monsieur à noite com uma taça de vinho assistindo algum talk-show
em que presta atenção como uma criança hipnotizada por uma versão atual dos
Muppets. Um casamento com um colega de trabalho que não durou um ano e que não
gerara filhos ficara pelo meio. Três lances de escadas era a distância que
tinha que atravessar para chegar à rosa dos ventos de sua independência
estabelecida, com uma praça com bistrô e quatro postes de luz de sódio e alguns
bancos de ferro ornado sobre os quais não era uma mera casualidade do destino
que a fizessem lembrar-se de Paris, de certo ar em que transitavam em suas
acomodações mnemônicas um quarto pequeno diante um cinema desvalido, porque sua
fixações da juventude a fizeram ter pleno domínio de sua vida para ter
escolhido aquele local para morar, a China e as noites de leitura sobre o
costume da obscura geração Mu Guiying a fizeram senhora de si, gestora de seu
dinheiro, dona de seus sentidos, de suas manhas, de seus pequenos e
incontornáveis vícios advindos de pertencer à espécie humana; a banca de
jornais onde um senhor magro, de bigode que lembrava um teutônico de alguma
imprecisa e para sempre inatingível suspeita de que era uma estampa em algum
cartaz de festa da cerveja que vira em alguma representação de um povoado na
Baviera, e até ele poderia ser um detalhe que ela quis que estivesse ali, para
que, na volta do prédio do ministério, que ficava a cinquenta passos de sua
casa, pudesse fazer um cafuné em suas vistas observá-lo com seus suspensórios
perfazendo o enfeixe sensorial devido do clichê de sua boina xadreza limpa e
perfumada arrumados os jornais do mundo todo nas estantes da banca de paredes
de treliças e flores em vasos na entrada. Timos a encontrara na padaria em que
ela comprava seu brie, ele tendo ido ali por alguma distração, pois sua vida
não tinha ganho a áurea de ser perfeitamente manejável por uma vontade pessoal.
Ela quem o reconhecera, embora ele mais tarde pensasse sobre isso e achasse que
era mais uma manifestação de sua profunda inteligência tê-lo escavado de todo
aquele inchamento e maceramento corporal.
Ela fez uma
festa, o abraçou, falava alto o deixando sem jeito diante o assombro inesperado
daquilo, chamando os funcionários do local pelo nome e o apresentando como se
ele fosse alguém cuja importância em sua vida era restaurada naquele momento de
extrema felicidade. Em seu modo de existência no exílio qualquer mudança no
termômetro emotivo, vinda com a quebra da harmonia de decibéis, deixava-o muito
incomodado, o equilíbrio de sua percepção racional ficava em frangalhos e era
substituído por uma excessiva misoginia. Por isso achou que aquela garota
estabelecida em sua história, em um local glorioso, ressurgira como uma mulher
de meia idade louca e histérica para destruir a honrada herança da outra. Ela
tinha perdido a beleza, era óbvio, uma beleza fulgurante como a que havia tido
era um milagre que só se perpetuaria se a Assia tivesse sido devolvida ao
princípio criador junto a ela numa morte na juventude. Ela fez questão de
leva-lo a seu apartamento, preparou-lhe um chá de ervas que correspondia
milimetricamente com o avatar de velha solitária com deliciosas manias
domésticas remetendo à jovem que era tão afeita a seus cheiros pessoais e à
suas umidades quando a tirania de Timos a fazia chorar.
Enquanto
tomavam vinho, ela lhe perguntou se achava que tinha realmente transado com Kiria
em Paris, naquela noite. Ele lhe olhara firmemente, um meio sorriso surgindo, à
procura de onde estava a artimanha na pergunta. Depois, como se um pensamento
muito antigo, cujo adiamento distante por analisa-lo despertasse um sentimento
de ameaça, disse que achava que sim. Assia tombara a cabeça por sobre o escoro
do sofá, suas pernas cobertas por uma calça comprida que lembrava vagamente uma
influência chinesa dobradas na almofada e a taça sustentada por sua mão
equilibrista dançando de frente ao seu rosto, abriu a boca mostrando os dentes
fortes e brancos, com o rosáceo da mucosa úmida pelo vinho aparecendo num gesto
sem alacridade ou crítica, apenas que ela reavaliava uma verdade sempre renitente
mas também adiada. Era como se, naquele mundo simplificado e sem gastos
desnecessários de energia, aquela questão tivesse um exotismo estimulante de
uma era que se perdeu no passado; como se descobrisse em um manual de uso de um
brinquedo, subitamente reencontrado, uma finalidade do brinquedo desaparecido
que ela talvez um dia tivesse intuído mas que não levara a sério.
_ Até o momento
eu achava que isso fosse uma das poucas certezas da minha vida_ Timos
respondeu, com a presença espiritual de não deixar que o humor do encontro se desfizesse.
Ela se voltou
para ele e o observou com uma seriedade que realmente nada tinha muito a ver
com a seriedade taciturna e intelectualmente fanatizada de quando era uma
garota. Timos notou através do novo movimento calmo e descontraído dela para
mudar as pernas de posição os tornozelos roliços, imaginou ou viu uma pintas
negras do pelo depilado crescendo novamente. Seria mesmo a piada das piadas se
um tom sexual surgisse de um portal que os ligassem a duas décadas atrás, ela
tinha a faceirice agora da terna mulher que já alcançara a plenitude de toda a
sua confiança feminina. Não desmereceu sua ilusão, não zombou dele_ se o
fizesse, teriam ido de maneira mais fácil para o nível que a conversa exigia,
mas existia uma educação superior naquele avatar dela.
_ Você não a
viu mais, não é? Nunca mais depois que chegamos de Paris. Ela foi para as
Filipinas, quis se formar em administração de empresas depois que conhecesse o
mercado por dentro, era avessa a teorizações, tinha energia demais para ficar
apenas com os estudos.
Atendendo a
certa premonição, ele ficou em silêncio, mas ela percebeu a delicadeza da
suspeita e negou: Não, não. Não foi isso, ela ficou bem por vários anos e ainda
está viva. Chegamos a uma idade em que se tem que apontar esse detalhes
primeiro no discurso.
_ Mas então, transei
com ela ou não?_ Timos perguntou, sorrindo.
_ Naquela noite fomos apenas nós dois. Ela nem sequer estava
na sala. Foi para o quarto do lado, deitou-se em um sofá ferrugem tipicamente
francês, retirado de um filme de Agnès Varda.
_ Eu me lembro do sofá_ Timos respondeu, querendo disfarçar que não sentia uma perda com o fato daquela experiência ter-lhe sido retirada. Quando se importava com essas caras tolices da vaidade, saber que tinha tido Kiria em suas mãos era uma de suas lembranças mais valiosas. Sentiu a masculinidade viciada em quantificações totêmicas, as tantas cabeças de mulheres dependuradas na sala de coleção de sua mansão interna. Mas Kiria era diferente; não só pela aventura lubricamente incorreta, mas pela beleza inalcançável dela, sua força afiada como um machado, o modo de sua inteligência em ser cruamente direta, sem os subterfúgios das reflexões e das pausas metafísicas. Não era a mulher perfeita; aliás, quem tivesse se casado com ela deveria ter sofrido, não era feita para esse tipo de união normativa.
Acabei de ler o conto e achei maravilhosamente bem escrito, Charlles.
ResponderExcluirLendo o "Augie March", meu primeiro Saul Bellow, muito por sua influência. Já é um dos meus autores favoritos. Que delícia de livro. Um abraço. Eduardo.
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