sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Sobre nada


um antro já por si loteado por tudo que havia de criminosos defensores do direito de perpetrarem todo tipo de abominações autorizadas pelo costume. Aqueles que acreditam em sensibilidades do espírito não sabem a força que tem esses ambientes para tornarem fortes os estômagos; foi preciso duas visitas apenas a uma casa modelo do comportamento da região para que minhas ideias humanistas da universidade começassem a ser apagadas. Da primeira delas ainda permanece nítido em minha memória o olhar da menina rejeitada dirigido a mim do canto da distante porta da cozinha, enquanto seu pai, cujo conhecimento geral das barbaridades que impunha a ela me chegaria no trajeto de volta por meu assistente, falava com educação puritana o quanto vacinava seus bezerros e organizava primorosamente seus documentos oficiais com o estado. Era de uma assepsia de maneiras exemplar, os movimentos ponderados das mãos, encostadas gentilmente uma sobre a outra, remetendo a algum indeterminado manual de etiqueta do justo patriarcado czarista, hipótese que se dissolvia quando a sequência lógica do olhar do visitante procurava algum nobiliárquico brasão de família e só encontrava as paredes do casarão calcinadas pelo tédio das existências muradas pela bestialidade e concupiscência.
         Daí em diante, como por uma espécie de concessão à dureza paulatina a que somos promovidos, a providência vai nos ensinando sobre todo tipo de excrescências por fora da casca rompida, e se desfaz rapidamente nossa capacidade de asco. A segunda vez eu nem estava a serviço, atendendo ao pedido distraído de um oficial meu conhecido com o qual alimentava o ocioso hábito de discutir questões religiosas como a carnalidade de Cristo ou a virgindade de Maria, e lá fui eu assistir a uma ocorrência de suicídio. O corpo estava convictamente pendurado em uma trave de madeira, as pernas estendidas até o chão com uma prontidão que em vida não tiveram diante as mazelas do trabalho escravo na fazenda, como se a morte exigisse aquela disciplina marcial em agradecimento por tamanho alívio alcançado. A rósea luz do sol poente espraiava-se por entre as calmas folhagens das árvores em torno, e o pequeno telhado da cisterna resguardava o corpo de toda comoção alheia abraçando-o com uma indiferença que conferia à cena algo de uma serenidade enlouquecida. O oficial me narrava sobre os efeitos fisiológicos do enforcamento, apontando do alto de sua estatura rapínica o azul dos músculos do pescoço tentando enodar a corda; observava o rosto pendido em um surrealístico ângulo de 45 graus com uma deliciada curiosidade que lembrava um desenho antigo do Sherlock Holmes, e falava com uma mansidão que estava a um passo do canto, técnica que adivinhei ter sido desenvolvida para exercer suas pretensões de pastor de uma igreja assembleiana.
                 Essas coisas na verdade não chegavam a me tocar, senão eram uma espécie de nova alegria da minha estendida experiência cuja insinuação de desmazelo moral não era suficiente para me levar a analisa-las com seriedade. O que tinha eu a ver com incestos e com impossibilidades tais de suportar o sofrimento a ponto da opção se voltar voluntariamente para a não existência como única redenção requerida? Eu não era insensível, era antes o oposto disso. O olhar da menina atocaiada na cozinha me despertava nostalgias de justiça que me levava a ceder a um dos prazeres contra os quais eu me mantinha afastado, que era a tentativa de esquecimento pelo álcool, embora eu bebesse sozinho em minha casa e caindo muitas vezes no batismo renovado toda madrugada na poça do meu próprio vômito

5 comentários:

  1. Ei Charlles, seu blog é sensacional!
    Quero muito ler um post descontraído em que você disserte sobre os "clássicos" brasileiros de baixa qualidade(O Cortiço, Iracema, etc...)
    Já leu "Uma Fábula" do William "homão-da-porra" Faulkner?

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    1. Obrigado, Johann.
      Li esses clássicos a que se refere, mas confesso que não sinto motivação de escrever sobre eles.
      Li "Uma Fábula", grande livro. Faulkner é um dos melhores de sempre.
      Abraço.

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    2. Faulkner é meu autor preferido, olha que só li "Absalão, Absalão!"; "Luz em Agosto" e "O Som e a Fúria".
      Os três praticamente só nesse ano. Eu não me interessava pelos clássicos modernistas dessa maneira(li "A Montanha Mágica" no natal do ano passado). Faulkner é uma mina de conhecimento e estilo prosístico. Achei "Uma Fábula" por 40 reais na estante virtual, aaaaaaaa vou pedir para meus pais em breve... sou menor de idade e não tenho cartão de crédito ;-;
      O "Enquanto Agonizo" está indisponível infelizmente.
      Quero ter a coleção completa desse autor. :)
      Mas não entendo sua birra com "O Som e a Fúria", acho que é junto com "Absalão, Absalão!" o ápice da decadência(hihi) moral estadunidense, mas com uma beleza e gratificância que valem demais.

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    3. Não tenho mais birra após ter lido O som e a fúria. É um livro sublime. Faz muito bem a si mesmo já ter esse gosto e essa disposição nessa idade. Parabéns!

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    4. Obrigado.
      "O som e a fúria" foi aquele livro que reli uns três meses depois de ler pela primeira vez. Que livro!
      O pior é que eu tenho afeto demais pelo Quentin.

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