domingo, 10 de julho de 2016

Ricardo Reis



Eu sou um leitor apaixonado de José Saramago. Considero-o um dos maiores e mais inovadores escritores do século XX. O verdadeiro reconhecimento de Saramago está para acontecer; será, quem sabe, daqui uma três décadas, quando o reconhecerão insofismavelmente como um gênio. Mas ele nunca teve motivos para reclamar de sua vida de escritor. Na verdade, no início, havia vários motivos, mas ele não professava esse fado lamuriento que, infelizmente, é tão característico dos escritores brasileiros. Em vez de reclamar do desemprego, da perseguição política, da falta de leitores, características pelas quais o jovem Saramago passara, ele trabalhava. Escrevia continuamente. Enquanto a independência econômica literária não vinha, ele também trabalhava em vários outros ofícios artesanais que lhe garantiam a sobrevivência. Muito semelhante a Saramago é Günter Grass, autor pelo qual da mesma maneira sou apaixonado, e com quem exerceu uma espécie de co-autoria no último livro publicado, postumamente, pelo português. Grass e Saramago, a meu ver, são irmãos literários: escreviam uma prosa absolutamente original, escreviam o que queriam, escreviam contra todas as correntes da escrita comercial, não eram consumíveis e mesmo assim venderam milhões de livros pelo mundo. E nunca reclamavam. E eram escritores não-literários do ponto de vista acadêmico: eram escritores não catedráticos. Escritores que firmaram seus estilos, principalmente, em cima do modelo da tradição oral da narrativa. Eram escritores labutadores, artistas plenos, desses que pouco se importavam com a miséria e com as consequências do seus ofícios alheios aos seus lápis e a seus cadernos de trabalho. Estou por encerrar minha terceira leitura de Anos de cão, de Grass, e, por uma dessas confluências comandadas pelo meu leitor interno, antes de ontem, sem premeditação, peguei o O ano da morte de Ricardo Reis e, quando menos percebi, já estou na metade, também no que equivale à minha terceira leitura desse livro.

Ricardo Reis é uma delícia de livro. Uma das prosas mais envolventes que tenho conhecimento. Identifico o leitor incompleto quando vejo alguém dizendo que Saramago é chato, difícil de ler. Vejo isso com menos raridade que eu esperava, pois Saramago sempre foi best-seller no Brasil_ seus livros atravessam dezenas de reedições e reimpressões. O cara tem humor, sofisticação, ternura, reflexão, aforismos, e a veia do contador de histórias legítimo. É um dos raros escritores completos, para o qual nada falta no campo do virtuosismo exemplar da escrita. E Ricardo Reis, que me perdoem Ensaio sobre a cegueira, Jangada de pedra, O homem duplicado e O evangelho segundo Jesus Cristo, é seu melhor livro. Aquelas primeiras páginas, que falam da chuva torrencial em Lisboa, com o navio que aporta trazendo o exilado Ricardo Reis de volta à sua terra, tenho por mim ser uma das melhores que já li. O romance todo é muito bem escrito; parece um objeto precioso que passou pelo processo de ourivesaria mais detalhado, e ainda assim soa tão espontâneo e tão fluido. E me traz uma enorme felicidade. E também me potencializa ao máximo meu amor pela língua portuguesa: como Saramago faz com que ela soe com toda sua beleza e imprescindibilidade!

5 comentários:

  1. É-me difícil assumir que esta ou aquela obra de Saramago é a melhor, mas O ano da morte de Ricardo Reis está de facto entre as melhores. Sim Saramago é original e não precisou de uma crítica e sistema de promoção do escritor que se vê nos nossos dias onde se publicitam novas obras quase como geniais e depois quando se analisa a frio são mais uma na onda atual sem acrescentar muito à literatura.
    Quanto da Gunter Grass apenas li A Ratazana e deprimiu-me tanto que nunca mais li nada dele, pode ter sido um mau primeiro encontro, mas não posso dizer mais nada.

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    1. Realmente é difícil escolher o melhor de Saramago. Tudo que ele escreveu tem altíssima qualidade. Mas como preferido, tenho esse do Ricardo Reis, que me parece ser o Ulisses português, sem qualquer exagero. Também tenho um carinho todo pessoal por um romance menor dele, o Manual de pintura de caligrafia. Já o Grass é perturbador, inquietante, muitas vezes repulsivo, e por isso me agrada muito. Ratazana não é recomendável como cartão de apresentação dele; um romance adendo à trilogia de Dantzig_ aparece o Oskar já velhinho nele_, e é totalmente translocado. O tambor continua sendo o melhor recurso para quem pretenda gostar de Grass.

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  2. Off Topic: A Cia das Letras lançou outro livro da Wislawa Szymborska, Charlles. Já está disponível para pre-venda.

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  3. acho uma maravilha esses reencontros que ocorrem em nossa própria casa. quando nos damos conta já percorremos metade do livro. taí um critério para identificar bons livros!

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