domingo, 31 de julho de 2016

O tradutor cleptomaníaco



O conto O presidente,  de Dezsö Kosztolányi, contido em O tradutor cleptomaníaco, da Editora 34, é um dos cinco melhores que já li. Está no mesmo patamar que Bartleby e O alienista _ trata do mesmo tema destes, a alienação voluntária à grotesca realidade terrena, a "fuga da história". No conto do húngaro, o alto humor pontua a visão fortemente niilista quanto às instituições culturais e científicas; dei gargalhadas ao mesmo tempo em que tive a certeza de que estava lendo uma das críticas mais ácidas contra a estupidez humana. Aqui reproduzo uma das partes mais hilariantes do conto, em que o personagem Kornél Esti descreve a singularidade dos alemães:


"Um mundo novo se abriu diante de mim. Assim que meu trem rolou em trilhos alemães, passava de uma surpresa para a outra. Pode-se dizer que estava sempre de boca aberta, a partir do que meus companheiros de viagem deduziram que eu era um débil mental. Ordem e limpeza em todo canto, nos objetos e até nas pessoas.
        Desci a primeira vez num pequeno balneário, para lavar a poeira. Não precisei perguntar para ninguém onde era o mar. Nas limpas e varridas ruazinhas, precisamente a cada dez metros, havia um elegante poste, nele uma placa branca esmaltada, com uma mão que aponta, embaixo a inscrição: Caminho para o mar. Seria impossível guiar melhor um turista. Cheguei ao mar. Lá, fiquei um pouco pasmado. Na areia, a um metro da água, um poste um pouco mais alto, mas totalmente parecido com os anteriores despertou minha atenção, e nele, uma placa branca esmaltada, um pouco maior, mas totalmente parecida com as outras, com esta inscrição: O mar.
          Para mim, proveniente de um lugar latino, parecia-me a princípio totalmente desnecessário. Pois uma agitada imensidão espumava diante de mim, e era óbvio que ninguém poderia confundir o Mar do Norte com uma escarradeira, ou com uma lavanderia. Mais tarde reconheci que me enganara na minha superficialidade juvenil. Era justamente nisso que estava a verdadeira grandeza dos alemães. Isso era a própria perfeição. A inclinação dos alemães para a filosofia exigia que concluíssem a tese e apontassem o resultado, como muitas vezes um matemático escreve numa demonstração que 1 = 1, ou na argumentação lógica, em que muitas vezes se constata que Pedro = Pedro (e não a Paulo).”

4 comentários:

  1. Tou me sentindo erudito. Vi hoje que a palavra "Kosztolányi" se incorporou ao vocabulário de meu celular.

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    1. Procevê que a tecnologia ultrapassou o homem: eu não consigo decorar o nome desses húngaros. Vai ver é por isso que eles estão sendo descobertos só agora, com a expansão da gramática cibernética. Chegava-se em uma livraria, lá pelos anos 80, e perguntava se tinha lá um "kztyiii"...., a deixa pra lá.

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  2. E as placas continuam as mesmas - logo, os alemães também.

    Inicialmente, o que eu mais notava de diferente no transito daqui era a calma e o cuidado com que se conduz, pois todos esperam sem irritação o motorista da frente a estacionar (e aqui se pode atravessar o cruzamento à esquerda sim, sem problemas); e as buzinas mudas, as bocas caladas, os policiais gentis e solícitos.

    MAS PUTA QUE PARIU: AS PLACAS! É MUITA PLACA. PLACA PARA EXPLICAR A PLACA. É sério. Por vezes fico sem saber qual sinalização é a que VALE. As placas brasileiras são simples, diretas, destoando de nossas características trapaceiras de jogar verde. Mas as alemãs, contrariando o povo ultra direto destas terras, são meio filosóficas, meio enigmas, envernizadas com redundância - um sábio místico a(na)lfabetizado por Paulo Freire deve te-las feito. E algumas tem informações demais. O horror, o horror.

    E acho que passei por esse placa no Nordsee semana passada.

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  3. esse conto é excelente. ele falando de como os médicos alemães são competentes me levou às gargalhadas. "Os médicos alemães não tem igual. O menos experiente deles vale por um professor universitário no exterior. Seus olhos azuis fitam compreensivelmente a testa febril, com uma inexprimível objetividade e carinho. Com seus remédios, que as mais importantes indústrias químicas do mundo fabricam em milhares de versões, curam-nos imediatamente só de o mirarmos. Frequentemente dizia comigo mesmo que só entre os alemães quero ficar doente e morrer. Mas para viver, prefiro outro lugar: minha casa, e, em férias, a França."

    não consigo parar de rir

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