domingo, 31 de julho de 2016

O caderno de capa vermelha



Entrementes, não começou assim. Desde que me internaram e os sintomas do meu mal foram diminuídos até que tudo fosse expressivo demais ou visível demais a um nível pouco elegante, o doutor Toledo arranjou de elogiar meu ego me pondo a escrever. Digo elogiou-me porque por detrás de sua boa estampa de cavalheiro para o qual o mundo se curva em amenidades solenes, há a astúcia fria e um tanto perversa do homem da ciência. Trouxe-me da primeira vez um desses cadernos vulgares, cujo vermelho berrante da capa provocava a angústia de se lembrar que além dos muros da clínica a bestialidade continuava a bruxulear à toda força lá do lado de fora. Justo quando concluía-se o segundo mês de meu confinamento onde se firmara que é voluntário, que a qualquer hora que me faça desejável eu posso muito bem deixar a clínica e voltar para casa, e eu estava me acostumando com as vantagens recolhidas da falta de liberdade, aparece-me de frente esse vermelho de verniz explosivo, esse eloquente corte de verbas de um produto feito para a alienação dos estúpidos cumpridores de regras. Não foi por menos que o doutor Toledo percebeu no ato a minha profunda decepção quanto à sua falta de sutileza. Pelo canto dos olhos, em nossos estudos mútuos de nossas humanidades recíprocas_ pois o centro dos olhos prostrava-se naquele objeto pueril que era o caderno de vermelho berrante_, foi-me possível apreender sua impavidez marcial titubeando diante a consciência de seu lastimável passo em falso. Ele já não podia voltar atrás e admitir que havia quebrado alguns dos preceitos de nosso pacto de confiança, de forma que recorreu a toda força de sua ortodoxia profissional para se fazer de correto. Disse-me para escrever sobre minha vida, o que me passasse pela cabeça; que eu caçasse a fundo a raiz do que desencadeara esse estágio no tempo em que singularidades de comportamento e de íntimas contenções define o Halperin Sás que agora desvanece seus dias nessa clínica, se contrai em aquiescente deleite à condição de vigiado para quem eufemizam sua realidade de prisioneiro. Com sua voz acalentadora, uma voz que é uma dimensão em si mesma onde meus ouvidos sentem os vastos campos de papoula florescendo, o doutor Toledo me instiga a depositar naquelas folhas o que eu sou. Depois vai embora porta afora e me deixa com essa excrescência rubra no colo; propósito: tornar meu espólio espiritual tão empobrecido quanto esse caderno. Por pura raiva, na verdade uma raiva também progressivamente aquiescente, começo a escrever. O lápis que ele pôs em minha mão, como não haveria de deixar de ser nesse sistema de confluências lógicas, é da mesma vulgaridade de trinta centavos, encontrados nos balcões dos armazéns de esquina como troco complementar às moedas faltantes no começo do expediente; pelo menos é negro; analisando-o com certa resignação, neste a indústria dos rebanhos pacificados não achou a matemática de retorno de lucros que autorizasse um azul diatomáceo ou um vermelho acrílico encegante. Um negro comportado, de alguma forma digno se meu cérebro não trabalhasse para desfilar as tantas imagens em que homens de ternos baratos tem exemplares dele em mãos para fazer toscas contas de despesas de final de mês. É tudo de uma vulgaridade tão brutal que sinto na garganta um grito subindo, que eu engulo com a força de todos os músculos do pescoço, e me admoesto: "Sua nova regra, Halp: aceitar as coisas como são: inserir-se no tempo, não mais o recusar. Foi-se a época do Pequeno Nero. Agora te pegaram. Envenenaram-te com estudada parcimônia para que todos os excessos fossem desbastados." Sinto minhas mãos em uma situação de plenitude afásica, estendidas nas minhas coxas como se não fossem mais minhas. Pequenas mãos enodoadas pelo derrame de melanina, dedos infantis tortos, juntas grossas deformadas, a dupla materialidade do anúncio da velhice, uma moldura engordurada em torno. Mãos do tipo físico clínico que indicam a ausência da ganância. Mãos cujo único desejo foi nunca possuírem. Lembro então que as mãos de meus tios eram enormes, como aranhas subaquáticas surgidas na rede pesqueira com uma surpresa terrorífica, vindas lá do fundo, loucas para adivinharem a luz e embriagadas o suficiente para substituírem o êxtase para as quais sabem incapazes pela compulsão da posse. Mãos abissais, fartas da escuridão mas intimamente definidas por ela. Sempre que uma dessas tomavam as minhas em seus centros ásperos e quentes, o poder de sua imensidão me apequenava ainda mais. "Que mãozinhas delicadas tem o Halp", diziam, com aqueles animais hipertrofiados regurgitando com um carinho seco os ossinhos das minhas mãos, devolvendo-mas depois com gentileza. Sentia a estrutura rígida de seus músculos, suas inteligências maquinais carregadas de vaidade por saberem as preciosidades anatômicas que eram. Pensando nisso tudo, me levando por essa desalentadora corrente de sugestões, baixo meus olhos e esfrego uma nas outras as minhas mãos indispostas a novos começos. Mesmo assim, minha mão direita pega o lápis e começa a escrever na primeira página do caderno vermelho.

4 comentários:

  1. O grande começo da great brazilian novel?

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    1. Não começaria um romance com um advérbio. Esta seria a quinta página.

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  2. E começar com uma conjunção? Gosto bastante da primeira frase de "Viva o Povo Brasileiro" do João Ubaldo, que começa com uma. O livro, aliás, me rendeu muitas risadas e tem um personagem memorável, o Nego Leléu. Mas se perde lá pelo meio.
    Sobre teu trecho aqui, gostei muito. Fiquei curioso.

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    1. Lembro de uma crônica engraçadíssima do Ubaldo, em que ele conta como perseguia os amigos para quem tinha entregue seu grande romance finalizado, perguntando o que eles acharam do livro. Ligava para eles todas as horas e ouvia: "Mas Ubaldo, ainda não tive tempo de lê-lo, a coisa tem 600 páginas".

      Também gosto muito daquele começo de Viva o povo brasileiro, apesar de não ter lido a obra toda.

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