quinta-feira, 21 de julho de 2016

Futebolândia, tão violentamente doce

A respeito do comercial norueguês das Olimpíadas no Rio de Janeiro.



Um dos contos mais impactantes do Julio Cortázar, que nem chega a ser um conto mas uma diatribe narrativa, é o que começa o livro Nicarágua, tão violentamente doce. Nele, Cortázar sai pela terra do título tirando fotografias das crianças sorridentes, dos prontificados policiais fardados, das barracas vistosas das feiras, das nicaraguenses jovens com véus coloridos, das mães nicaraguenses com seus filhos de colo, das estátuas ufanistas das praças, reativamente prontificado a se fazer de adido cultural para quem os oficiais da pátria mostram o que tem que ser mostrado no cartão postal pelo estrangeiro. Quando Cortázar volta a seu quarto de hotel, com o cansaço agradecido do viajante, esperando que entre pela porta sua namorada ou mulher francesa, não me lembro, só me lembro da frase “que me oferecerá o doce sal dos seus seios”, ele bebe um scotch para relaxar e se senta para conferir o que sua polaroid flagrou. Em vez de tudo o que julgou ter apreendido pelo obturador da câmera, ele vê emplastrado na celuloide fotos de crianças mortas assassinadas, o grito de pânico congelado nos rostos, os coturnos dos policiais enfiados na goela de pobres camponeses de caras desfiguradas, praças em que a presença humana foi excisada e sobraram barracas destruídas pela violenta evasão, rostos de desespero das mães de quem foram arrancados os filhos para nunca mais. Quando a mulher por quem espera o escritor chega, encontra um Cortázar encolhido no chão e com o rosto transfigurado pelo choro.

Esse comercial me lembrou esse conto genial, que pode parecer pedante nas minhas insuficientes palavras, mas é um soco no estômago e uma das melhores páginas do argentino. Um menino branco, diga-se por sinal; policiais halterofilistas modelos (que colar de dentes magnífico o policial negro tem, ao sorrir desarmado pela sacralidade em slow motion ao reconhecer o jogador!); uma favela eufemizada que lembra uma vila grega, em que a ascensão social é tão fácil e aprazível quanto uma queda de asa delta para a qual até o mar se mostra protetor; e a praia e as mulheres hospitaleiras; uma obra, afinal de contas, legitimamente autoral, disso não podemos negar, visto que noruegueses são seus autores e norueguês ficou o Rio de Janeiro, sem mais morticínios, sem mais a gritante disparidade social e a alienação sustentada a ódio da guerra civil iminente, sem praias depredadas pelas indústrias poluentes de um país em que a lei é ditada pelos abutres, e para eles faz acontecer beneficamente, assegurando que o mar não é cancerígeno e não oferece sequer as mínimas desfigurantes doenças de pele para os atletas, que não há epidemias microcefalizantes, de tal modo que ninguém ousaria abdicar do mérito da competição; um país que a polícia sairia em uma perseguição cinematográfica conciliadoramente desarmada despendendo um número tão grande de efetivos, sendo que a verdade vociferada diariamente diz que um tiro só bastaria, ou dois na simulação posterior de que havia uma arma nas mãos do garoto morto. E a salvação, ah, a salvação, sempre vinda do milionário iletrado com ficha na polícia por isenção de cidadania que usa a bola como graal hipnótico para a qual se dirigem os olhares de todos os abandonados: o Ronaldinho Gaúcho, ganhador da medalha Machado de Assis.

4 comentários:

  1. Li, assisti ao comercial (num tinha assistido antes, ficar afastado da internet faz bem pro coração) e agora três coisinhas:

    Primeiro, não há hino honesto, eu ouço aquele espiraladozinho antes do ouviram-do-Ipiranga-às-margens-plácidas e já lembro logo, por exemplo, que estudantes foram ameaçadas de estupro por policiais militares durante uma ocupação duma escola aqui no Rio, e mais uma porrada de outras merdas, com a devida paciência eu ou você ou qualquer outro conseguimos compor aqui a nossa própria Parte dos Crimes igual o Bolaño, e isso antes de chegar no segundo versinho do hino nacional. Comerciais são... comerciais, não se pode esperar que não mintam, mas essa espécie estranha de ufanismo é assustadora -- estranha porque não é só o ufanismo normal de ser otário e achar este país perfeito: no vídeo temos a pobreza carioca e a polícia arbitrária, a princípio não há nada escondido, mas, com a perseverança típica sou-brasileiro-e-não-desisto-nunca e mais a demão de beleza e camaradagem que aplicam insidiosamente e pouco a pouco sobre o filme, a gente acaba quase convencido a ser mais esperançoso, e não há ufanismo mais bovinizante que esse, mais maquiavélico do que o dum hino.

    (Quem escreve coleciona projetinhos abandonados/impossíveis, e dentre os meus tem um dum romance chamado Foda-se ou O Hino Nacional: 2 partes gêmeas-siamesas, 26 capítulos cada uma, um pra cada verso do hino, incluindo conjuntos de capítulos que deveriam dar o efeito dum refrão.)

    Segundo, esse comentário seu foi sim brilhante, e enraivecedor. Tinha esquecido da medalha Machado de Assis do Ronaldinho Gaúcho... esses dias o Gullar foi puxar briga com o Augusto de Campos, e de réplica e tréplica e o escambau comentou que nunca que o Augusto ia ganhar um tal prêmio da ABL com as opiniões políticas dele. Um prêmio de 300 mil reais. A imortalidade emburrece.

    Terceiro, eu preciso ler mais Cortázar, especificamente essa parte mais pro final da carreira dele, que sei lá a razão nunca me interessou. Pela sua descrição o conto é sensacional.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A gente deveria se unir um dia para tentar descobrir por que o ódio no Brasil nunca foi usado eficientemente na literatura; o ódio nos moldes do Thomas Bernhard. O campo é frutífero. Suspeito que o que dá errado é que um ódio associado ao nonsense extremo torna a coisa implosiva, uma característica anula a outra. Mas deixemos pra lá.

      Interessante projeto de romance: Gonçalo Tavares, dadaísmo, um Ítalo Calvino mais despirocado. Interessante!

      Não se deve, realmente, retirar muita subjetividade de comerciais de televisão. Escrevi isso para complementar o comentário no blog do Milton:

      "O comercial é sim muito bonito, sem ironia. Porém já atingimos uma posição no campo do sarcasmo automático de percebermos as coisas desse país que o torna uma desmoralização reversa. Quis dizer que o povo é honesto (o menino devolvendo a carteira), que a polícia é pacificadora (a polícia desarmada! É tão louco que é vedado à graça), que as mulheres são recatadas (na praia não dá nenhuma ênfase ao biquíni), que os ídolos do futebol são altruístas sociais abnegados e avessos à fanfarronice (um Ronaldinho transitando em sua lambretinha, com as mãos estendidas protegendo o menino_ símbolo óbvio do Cristo Redentor_, sem nunca ter participado de festas homéricas de fazer tremer os caixilhos das janelas do vizinhos, e demais proezas penais de maior ou menor grau). É tanto elogio a nós que chega a ser um insulto, como aquele alguém que quer vender um fusca maquiado toscamente afirmando ser uma Ferrari. Um comercial lindo e incentivador ao choro emocionado como os de Bancos, funerárias e seguradoras.

      Não que as mulheres tenham que ser ou não recatadas; o que se põe aqui é uma bandana para não se tocar no tema do turismo sexual."

      Esse livro do Cortázar é uma das peças menores dele, tirando esse conto que está no início_ que realmente é soberbo e já vale o livrinho_, o resto é apenas curioso.

      Bom, preciso me obrigar a dormir agora, devido àquilo tudo que eu disse no post anterior. Estou cambaleando.

      Estava lendo os ótimos textos sobre música do Fabrício Boppré, neste site abaixo, que catei no GPS do blog (por acaso o () é meu álbum preferido também do Sigur Rós):

      http://dyingdays.net/memories/view/ok_computer_fabricio_boppre

      Excluir
    2. Achei o vídeo repulsivo. Perdoem-me a franqueza, mas é isso. E olha que nem estou dentre os odiadores do Brasil -- tenho um grande afeto pelo país. Talvez seja justamente por isso que eu não gostei. É perfeitamente possível mostrar o que há de belíssimo e inspirador nessa terra sem ter que recorrer a uma tramóia hollywoodiana, cheia de maquiagens tão constrangedoras (e até algumas realidades que eu nunca imaginaria que poderiam ser admiradas) para nós que conhecemos como algumas coisas específicas funcionam por aqui. Mas é claro que é uma peça de propaganda, com seus objetivos bem determinados, público-alvo, então seria pedir demais dos publicitários.

      Esse site com textos meus sobre discos (nem todos são meus; a maioria é, pois da galera que se reuniu anos atrás para criá-lo, eu sou praticamente o único que permaneceu na brincadeira, por amor inesgotável à coisa, ou por ser um desocupado, sei lá), é minha tentativa desesperada de aprender a escrever, e a entender o que se passa em minha cabeça, o que em muitos aspectos, pelo menos do meu ponto de vista, é a mesma coisa. Geralmente quando releio algo que publico lá, digamos um ou dois dias depois, eu detesto o resultado, e não raro fico até meio envergonhado. Mas já sou meio resignado com isso. A escrita -- o processo mesmo -- é que me estimula: quando estou escrevendo, é emocionante, é alucinante, é revelador, é um bocado de coisas. Acompanhado de vinho então, é fantástico. Eu diria para ninguém perder seu tempo lá -- ainda mais que há um tanto de coisas legais para se ler na internet -- mas se o amigo e ídolo Charlles diz algo que nem de longe, num esforço que eu fiz aqui lendo e relendo o que ele escreveu acima, nem de longe parece indicar que ele concorda que o site é toxicamente imprestável, então eu fico feliz e estimulado a continuar tentando e saúdo a visita de todos os amigos daqui que quiserem passar por lá.

      Aliás, nem pedi a licença do Arbo, mas creio que ele não vai se importar: http://dyingdays.net/posts/view/2016_07_21_ha_musica_ha_musica

      Excluir
    3. Achei ótimos mesmo seus textos, inclusive eu estava de viagem, indo e vindo de ônibus leito, ouvindo depois de muito tempo o ( ) do Sigur Rós, influenciado pela sua resenha. Isso de vergonha sobre o que se escreve, Mann tratou muito bem em reflexões no Morte em Veneza. Acho que a pessoa está madura e com uma certa mestria a mais para escrever quando suporta bem a sua vergonha textual.

      Não pude comentar antes porque estava só com celular, e digitar naquela coisa é um suplício. E agora, chegado em casa, vejo que a internet da Oi continua uma merda, minutos e minutos aguardando o página abrir, a página cai, o Facebook não acessa...

      Nas compras domésticas de fim de mês, me vi com uma bisnaga de pasta de dentes Colgate Luminous White nas mãos e pensando. Isso porque a bisnaga agora está a metade do tamanho do que era há um mês, e um tanto mais caro. Como é que a gente quer ter consciência política, essa coisa nossa alienígena, se a gente compra essa merda de enganação das pastas de dente, e da internet da Oi?

      Excluir