segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Sobre a possibilidade de se a alma humana possa ainda interessar ao demônio_ uma leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann



Em certo romance de Saul Bellow, o narrador questiona se existem divindades, mesmo que demoníacas, que ainda se importam com o destino humano. Thomas Mann vai mais além jogando com esse ceticismo durante toda a sua última magnum opus, Doutor Fausto, servindo-se para isso de profundos e muitas vezes sutis simbolismos, que vão desde o estilo anacronicamente rebuscado (desamparadamente atrás de um impossível helenismo), até à representação jocosa de um demônio bonachão e alcoviteiro, desinflado de quaisquer atributos de provocar medo. Reler Doutor Fausto no século XXI revolve todo esse peso multifacetado imposto pelo autor dando direito ao leitor de se chocar com o quanto Mann é atual e, recaindo aqui em um clichê não por isso menos verdadeiro, estava à frente de grande parte dos outros escritores de seu tempo. Embora A Montanha Mágica esteja à frente de Doutor Fausto na ordem de grandeza dos romances em alemão do século passado, existe uma enorme distância entre esses livros, de tal forma que os maravilhosos diálogos e monólogos filosóficos de personagens como Lodovico Settembrini, que se vê no primeiro, só às custas de um sarcasmo imoderado poderiam aparecer no último. Doutor Fausto é o elo mais forte do prosseguimento, senão mesmo o fundador, da literatura da brutal mea culpa e do retorno ao primitivismo espiritual depois da destruição de toda herança humanista que passa a acontecer na Alemanha, sendo Günter Grass seu principal continuador. DF é um romance de uma terribilidade que exige do leitor uma experiência real para se poder enxergar a devastação que ele traz. Minhas duas primeiras leituras dele não me tiveram nessas condições, de forma que na minha infância, quando o li pela primeira vez, eu só pude ver a superfície enganadora do humanismo, não percebendo que se tratava de uma angustiada elegia, e em meus trinta anos, em minha segunda leitura, eu ainda estava sob o efeito da propaganda em torno da grandeza de Mann e isso atrapalhou ver o quanto os arquétipos estéticos escondiam a complexidade da mensagem. Tendo-o lido pela terceira vez, em meus 42 anos, a pátina das tantas coisas que o passar da juventude e a admissão das circunstâncias inescapáveis da vida nos vai fazendo, tanto as boas coisas (como a paternidade) quanto as más (a quebra do egoísmo anestesiado que advém com a paternidade, ao enxergar subitamente o mundo como uma casa em processo de destruição na qual se teve como última consequência de tal egoísmo a imprudência de nele se colocar filhos), nos dá a disposição mais aproximada para apreendermos o grande horror do Doutor Fausto.

A começar pela compreensão certa de seu personagem principal, o compositor Adrian Leverkühn. Trata-se, sob amplos aspectos, de um artista medíocre. Não há nele nenhum traço da genialidade da tradição dos grandes compositores alemães e austríacos. Não há nele o ensejo de seguir em um antagonismo reacionário a tais compositores, no estilo revigorante que criadores musicais tanto da Europa quanto da América frentearam no século passado nas tantas experiências com o dodecafonismo, atonalidade, minimalismo, etc. Leverkühn, entretanto, é profundamente interessante como artista por ser, em uma profundidade de mesmo porte e frontalmente original, profundamente humano. Seu humanismo é expresso em uma lucidez tão impactante que se pode ver que o excesso se lhe revela um inferno desde quando ele era criança. Mann aqui começa sua fina catedral com um símbolo: no pressuposto de impossibilidade de que se faça poesia após os horrores de Auschwitz, na célebre frase de Theodor Adorno, Adrian Leverkühn é a encarnação desse silenciar peremptório e dessa impotência voluntária e inexorável à beleza. Não uma impotência, corrijo, mas a atenção veemente em abortar no mundo qualquer mínima expressão que a beleza ouse ter. Leverkühn, por isso, é arredio a todo contato humano, a toda coaptação, a todo pertencimento. Ele é a pragmatização da insofismável verdade de que não há divindades zelando pelo destino humano, de que não existe deus ou o demônio que perca tempo com os interesses do homem, verdade consolidada em definitivo com a perda de qualquer luz especial que o homem acreditou ter pelos horrores cometidos por ele os quais Auschwitz é apenas a ponta do iceberg. Leverkühn é o último homem íntegro, no paradoxo de ser o único que enxerga tão adentro a inocuidade da espécie a que pertence. Em oposição a ele temos esse outro personagem que é mais uma expressão da genialidade dessa obra: o narrador Serenus Zeitblom. Mann vai deixando que o leitor se sinta cativado e tenha completa confiança em Zeitblom, um homem excessivamente modesto quando ressalta a sua desimportância em relação a Leverkühn, de cuja vida ele pretende estar biografando no livro. 

Zeitblom é o reduto de todo o humanismo e grandeza alemã, a representação fiel do detentor da tradição helenista_ de tal forma que, ele confessa, uma das causas principais de ter escolhido sua esposa é ela se chamar Helena. A linguagem que Mann emprega no romance é a linguagem de Zeitblom, proparoxítona, palavrosa, pomposa, ciente de sua suma importância, amplamente digressiva nos estudos extasiados filosóficos das impressões do século. Essa estética retrógrada faz com que os lamentos de Zeitblom pelos avanços da barbárie hitlerista no momento em que compõe o livro em seu refúgio protegido, soem estáticos, redundantes, de um romantismo ao avesso, de uma paixão pelo pieguismo das tribunas. Páginas e páginas são preenchidas com seu canto despropositado às musas quando ele atualiza no livro o avanço do exército de coalizão contra a Alemanha, quando ele oferece no altar do sacrifício da História o espírito corrompido alemão. As relações entre duas figuras tão opostas, Leverkühn e Zeitblom, é o ápice da astúcia e sutileza de Mann. Como podem seres tão extremos ser amigos? Acontece que a amizade alardeada por Zeitblom é, para o leitor atento a todas as refinadas artimanhas do livro, de mão única. Zeitblom realmente parece ter uma adoração por Leverkühn, uma adoração que só tem sentido porque Leverkühn é a pobre representação do que sobrou da cultura teutônica. Zeitblom se obriga a amar Leverkühn quase porque não há outra opção. Esse seu amor é sua arma para justificar diante as evidências contrárias em uma terra devastada de que seu helenismo ainda é possível, mesmo que as composições de seu objeto de culto sejam pavorosas expressões de que ele está errado. Já Leverkühn, em seu exílio do mundo, nutre por Zeitblom uma atitude cordial, uma empatia que parece se adequar a um ato social. Quando ele realiza sua única tentativa de conivência com o mundo, o pedido de apresentação de suas intenções amorosas a uma mulher, ele recorre não a Zeitblom, mas a um violinista amigo. Faltam tantas revelações pessoais a Zeitblom de seu biografado, denotando a ausência reflexa de intimidade, que os lances biográficos são muito poucos no livro. Claro que o livro é escrito por Mann, e não Zeitblom, e Mann ocupa a maior parte de sua obra com reflexões e descrições que estão entre o que há de melhor na prosa. Os espaços de insuficiência na relação desses dois amigos, admitindo o uso de uma palavra tão taxativa, são moldados pela mensagem subliminar do rico simbolismo manniano.

Nos excessos da visão de Zeitblom vemos a realidade em contraprova da versão de Leverkühn. E nada mais exemplar dessa antinomia do que o episódio em que Leverkühn dialoga com o demônio. Essa é a chave do romance e sua cena principal, em que se estabelece a conexão de interpretações da venda da alma de Leverkühn ao diabo. Leverkühn contrai sífilis em uma casa de tolerância (com amplas menções a Nietzsche), o que suas duas tentativas de tratamento recaem em uma comédia de erros que o desestimula e faz com que o quadro da doença evolua para uma manifestação cerebral. Diante essa sentença, o diabo uma bela tarde aparece no bucólico quarto de Leverkühn propondo lhe dar precisos 24 anos a mais de vida afim de que ele possa completar com glória suas obras musicais. Leverkühn narra em uma longa carta tal encontro, carta que cai nas mãos de Zeitblom. E aqui temos um momento pleno de genialidade de Mann: o leitor lê a carta com o olhar contraposto dos dois personagens, com o olhar de uma ironia estoica além da ironia de Mann, e com seu próprio olhar que recebe o encargo de labutar na decifração de qual das leituras é a correta. Mann arma um jogo que enquadra toda a estrutura do livro. Mann coloca todos os seus detratores no chinelo com essa exuberante manifestação do quão longe pode ir a conexão de todas as forças expressivas da literatura no empenho de dar a sua estocada: ele amealha aqui o humor, o terror, a história, o futuro previsto, a nova visão estoica e sem ilusão de si mesmo do homem, o abismo, e, lá longe, na zona das últimas consequências, oferece as fagulhas indefinidas de alguma saída, de algum alento. Ele reverte o jogo e transforma o leitor que não esteja disposto ao uso de toda sua atenção em um conivente ou com o conformismo pueril de Zeitblom, ou com o niilismo perfeitamente retilíneo de Leverkühn. É dessas coisas das quais nunca se terá uma resposta determinada saber se houve mesmo a manifestação do demônio, se houve uma relação de compra, se houve uma promulgação de tempo pago com a punição eterna. Tudo demonstra que não. A leitura de um homem de 42 anos demonstra claramente que não, mas suas duas leituras anteriores teve como quase certo que sim. Pode ser que para o leitor de daqui 50 anos, sob o efeito de uma outra realidade circunstancial, de um outro panorama social, econômico e político, volta-se a acreditar com uma deliberação inteligente que o diabo realmente apareceu para Leverkühn, e Leverkühn realmente tenha aceito seu acordo. Mas eu estou em uma época cínica, em um mundo em que a overdose de informação mostra o quanto o estágio de sofrimento e egoísmo do homem se sustenta em um mesmo patamar de indigência que naqueles pouco distantes anos em que Leverkühn narrou seu encontro, e por isso é impossível crer que uma entidade divina como o demônio se ocupe com essas querelas inofensivas as quais para nós nessa dimensão paupérrima se afiguram de primeira ordem. O demônio de Leverkühn é um ser cômico, que se transmuta na figura de um banqueiro, de um artista menor, de um alcoviteiro, de um acadêmico com histriônica aparência suscitada por sua desproporcional preocupação com sua vestimenta; o diálogo tido com um ser circense destes, incapaz de produzir medo, passa pela baixa gama do psiquismo, não tem um pingo de grandiosidade, de graça, de aviltamento; Mann o insere propositadamente precoce na narrativa, mostrando que nele não há nenhuma comburência para ser o resumo final, a coda, não é o Grande Inquisidor; sob determinados aspectos, se percebe a preguiça bem construída ao se escrever a cena. Para Leverkühn, trata-se de uma alucinação que lhe deu algumas horas de alento em sua composição na escrita contra sua enxaqueca. Mas para Zeitblom, o antiquado, o conformado, o lamentador protegido em sua fortaleza a maior parte do tempo das desgraças da guerra, a carta parece real, parece haver mesmo uma importância no homem para que ele seja a peça principal em um jogo cósmico eterno entre dois deuses plentipotenciários. As grandes obras a preencherem os supostos anos conferidos pelo demônio não são sinfonias, grandes óperas, grandes sequências de quartetos e peças camarísticas, como haveria de ser se o demônio apostasse nos poderes de criação do espírito humano, mas Leverkühn compõe um concerto para violino (o qual mesmo Zeitblom admite ser uma obra menor), pequenas canções e um oratório que quer ser sua maior realização. O verdadeiro discurso bombástico do livro é o que Leverkühn faz a um grupo de convidados, quando da apresentação de sua Lamentação do Doutor Fausto, em que ele se desabafa de toda uma vida de silêncio e visão lúcida e apartidarismo dos ofícios do mundo, em que ele, de frente às sumidades da Alemanha, artistas comprados, aristocratas na iminência de sofrerem as consequências de seus crimes de conivência perpetrados pela nação, representantes da vida corrompida, revela com uma carga severa de sarcasmo seu pacto com o diabo, sua missão em destruir e impossibilitar toda forma de beleza, sua apoteosa do aborto e seu arauto da extinção. Um por um dos convidados vai saindo da sala diante a evidência da loucura do homem que diz esse discurso. Nesse momento, uma revelação fulmina o leitor: quem se manteve íntegro, não-conivente; quem foi detentor do único humanismo e helenismo possível por assumir o grande trabalho de ter que partir novamente de um primitivismo da estaca zero, quem foi o único que não vendeu a alma ao demônio, foi Adrian Leverkühn.

16 comentários:

  1. Está na minha lista a releitura nestas férias.

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  2. Um livro que me custou a digerir... mas que me marcou muito e foi ele que abriu as portas à Montanha e aos Budenbrooks. Não sei se o relerei, mas apenas porque há tantas obras que o merecem também.

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  3. Charlles,felicidades em 2016...
    Estou a ler o Doutor Fausto...

    Ramiro...

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  4. Amigos, Dostoievski, Faulkner, Mann e Bellow são meus escritores fundamentais, e Mann veio primeiro, daí meu modo peculiar de vê-lo. Desses, Mann é o único sobre o qual pode-se afirmar que suas 4 obras primas são absolutamente diferentes uma das outras.

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    1. Belíssimo texto sobre o Doutor Fausto, caro Charlles. Dos autores que citou como fundamentais tenho enorme afeição por Thomas Mann e Dostoievski. Stendhal e Tolstoi são outros dois. Não sei se seria um exagero dizer que depois de Doutor Fausto nada mais foi escrito que se lhe ombreasse.

      Gostaria de aproveitar a ocasião para deixar aqui consignada a grande admiração que tenho pelos seus textos e este blog que é, de longe, o meu favorito.

      Também quero desejar a você e a todos o seus um excelente 2016! Novamente, meus parabéns pelo Eric. Muito singela e bonita a foto de você com os dois pequenos, publicada aqui noutra ocasião!!

      Forte abraço e felicidades,

      Marcos

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    2. Inspiradoras palavras, Marcos. Não sabe o quanto fico feliz com tal reconhecimento. Só tenho a agradecer.

      Por vezes penso que o último livro clássico, na acepção literal da palavra, foi Doutor Fausto. O último a manter aquela nostalgia humanista forte. E fica ainda mais evidente, em negativo, por se ver que, ao menos na literatura alemã, o que se seguiu no mesmo nível foi essa ode à catástrofe e à amargura, à derrota e à mutilação que é O tambor. O salto que existe entre Doutor Fausto e O Tambor (meros 16 anos na conta temporal), é um tratado sobre o reposicionamento do humano nas fraturas do que sobrou de seu amor próprio.

      Muita paz, saúde e felicidade para você, Marcos. Forte abraço.

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  5. Olha, eu tenho lido todos os posts, sem muito tempo de acrescentar qq coisa (na verdade, sem muito conteúdo para tanto também). Charlles, passo aqui pra desejar a ti, família e leitores amigos um feliz 2016. Que o espírito desse blog esteja conosco pelos anos. é um prazer imenso sempre retornar aqui. Um abraço carinhoso a todos.

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    1. e, ah sim, tenho visto citações tuas recorrentes em relação ao facebook. Não sei se tu tem um perfil pessoal, fake ou entra pelo login da Dani, mas se for o caso, me dê as coordenadas pra te achar por email.

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    2. Felicidade e saúde e paz para você, meu amigo.

      Não tenho Facebook e nem fake. Uso o da minha esposa, que praticamente nem é facebook, já que não possui atualizações e é assolado por receitas de bolos que a inércia da rede manda automaticamente os robôs preencherem.

      Forte abraço.

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  6. Amanha começarei a ler Doutor Fausto. Obrigado por este texto e todos os outros, Charlles. Feliz Ano Novo a ti e a todos.

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    1. Matheus, meu amigo, feliz ano novo para você e para sua família. Felicidade e sossego, e muita saúde.

      Vai adorar esse Mann.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Um feliz e gracioso ano novo para você e sua família, nobre Charlles! Um ano estoico de muitas leituras, sabedoria e compartilhamento de felicidades! Abração!

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    1. Obrigado, Carlinus. Um feliz 2016 para você e sua família, muita saúde, sabedoria e paz. Forte abraço.

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  9. texto incrível Charlles, como sempre.

    estou com o Marcos.

    abraço

    Renato

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  10. Charlles, você já leu alguma coisa desse valter hugo mãe que tanto se fala? Busquei no blog e não encontrei.

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