domingo, 27 de dezembro de 2015

Natal com Cervantes



Garcia Marquez escreveu que só conseguiu ler Dom Quixote atendendo a uma recomendação de um amigo em fazê-lo sempre sentado na privada. Eu, finalmente, intentei a leitura desse grande Cervantes há uma semana, nesse feriado de natal, terminando o primeiro volume hoje, por procuração de que dois amigos também o fariam. Um desses amigos me contou que teve uma séria refrega com a esposa pois esta lhe cobrava igual a uma megera estalajadeira do romance uma viagem de final de ano. Pouco tive por perder o freio da língua e dizer a esse amigo o que me vem no fígado há anos sobre tal assunto, mas me contive diante sua cara de profundo desconsolo. Mas se eu estava viajando para a Espanha do século 16 com o livro, conhecendo a serra Morena e as florestas daquela região da Ibéria! O que ela quer, que eu que só vivo do trabalho para a casa me meta agora com a boemia e volte toda madrugada bêbado?, ele me disse. O fato é que, em meu egoísmo sensual de leitor que está comprometido por dias com a imersão em um livro extraordinário, vi em sua situação nada mais que a confirmação de Cervantes sobre a erraticidade de nossa espécie. Cervantes deveria ter sido uma companhia inigualável, um sujeito engraçadíssimo. Das tantas cenas de seu livro em que eu explodia em gargalhadas, há uma de tal plasticidade cinematográfica que me fez sentir o quanto esse homem de 400 anos atrás é desconcertantemente moderno e atual. Quixote e Sancho chegam a uma estalagem, a mesma que irá aparecer em um terço de todo o livro, e Quixote, como não haveria de deixar de ser, em seus ataques perenes de fantasia cavaleiresca, imagina que está entrando em um castelo, acolhido por um duque e sua família. Acontece uma série de situações impagáveis, mas a mais brilhante delas é Quixote confundir a funcionária beócia da hospedaria com a bela filha do estalajadeiro, uma vez que a primeira se deita com ele atendendo a outras conveniências da comédia de enganos cervantinos. Ao montar no Rocinante ao nascer do dia e partir, Quixote lança à indiferente filha do estalajadeiro um olhar que se desenha em toda sua hilaridade na mente do leitor; Cervantes faz com que eu estivesse lá assistindo ao vivo à tal cena, raiz de um sem número de inspirações de filmes e livros. O leitor em seu deleite constante aponta com uma juvenilidade restaurada a menções de Quixote em El Chavo del 8 na cena em que Sancho Pança rememora para o padre a carta que Quixote escreveu para sua Dulcineia Del Toboso, substituindo de tal maneira a colocação das palavras que transforme por completo o sentido da carta; aponta as semelhanças aprendidas por Monty Python`s Flying Circus da forma em que Cervantes retarda a catarse do humor de um livro para o outro, na escancaradamente exagerada cena de batalha entre Quixote e o galhardo biscainho; vemos as influências em Cem anos de solidão nas cenas do galo capão que remetem às histórias contadas por Sancho Pança que não passam do nonsense de se contar infinitamente o número de cabras que atravessam um rio. O livro é assim leve e fluido, descompromissado e despojado, escrito com a folga da mão para o papel e muitas vezes prescindindo de propósito e juízo, e por isso, fantástico. Na cena em que o padre e o barbeiro selecionam os livros da biblioteca de Quixote para serem queimados, o padre salva da fogueira o Tirant lo Blanc, explicando que neste o leitor almoçava e se deitava com seus personagens, tamanha intimidade se tinha com a humanidade deles. Assim fez Cervantes com seu Quixote. Escrito boa parte do livro quando Cervantes estava preso, o livro é de um humor único, de uma vivacidade e energia, de tal forma que a mim resolveu-se bem ver o que se pode dizer de uma filosofia de Cervantes. Só quem se presentear com a leitura desse monumento do espírito humano vai ver o que há de eternamente bombástico na fábula crítica de um homem alquebrado e seu escudeiro grosseirão à caça de um significado de maior piedosa transcendência que sobressaia ao tédio da existência. Já na metade do livro a gente passa a amar de tal maneira a Quixote e Sancho que quando Cervantes o descreve chocantemente em sua sujeira e "seu rosto de meia légua de comprido, seco e amarelo, a desigualdade de suas armas e seu mesurado jeito", não é pouca nossa raiva protetora de tal triste figura contra quem o tem assim. É um livro de leitura tão envolvente, que passei dias inteiros grudado a ele, não dando tempo para o Philip K. Dick que pretendia entremear, lendo-o em espanhol e português na edição bilíngue da Editora 34 (na excepcional tradução do Sérgio Molina). Bom, a última leitura desse ano será o segundo volume de D. Quixote.


30 comentários:

  1. Uma das cenas que me foram mais memoráveis é essa em que Sancho perde a conta dos Carneiros. Tem o desafio com o leão, e quando Sancho tenta enganar o Quixote, as sacanagens que Cervantes faz com o autor apócrifo do segundo volume. A "ilha" de Sancho. Meu Deus, é mesmo um dos melhores livros. Ah, o padre salva do fogo um livro do próprio Cervantes, Galateia - não é genial?

    Sim, boas festas, Charlles.

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    1. Nesta edição da 34 tem inserções em negrito de partes que aparecem em uma versão do livro e não aparecem em outras, como a do roubo do jumentinho do Sancho (seu jerico) na serra Morena, e um texto de uma página que na nota de final de capítulo cogita-se que talvez não tenha sido escrito por Cervantes, mas aceito por ele. E as notas são todas excelentes. Vou começar amanhã o segundo volume.

      Daqui para a frente temos a obrigação do carnaval, né? Cabe mesmo desejarmos boas festas, com a misericórdia de Deus.

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  2. Charlles, que ostentação é essa? Mas eu nem posso falar muito, pois acabei de me quebrar financeiramente, com a compra dos contos completos do Tolstoi,"ressurreição", "som e a fúria", "absalão,absalão" e "um, nenhum, cem miL"
    A minha parte preferida é aquela briga na estalagem, quando tanto o Sancho como o Dom Quixote levam uma boa surra, é uma romance que de fato merece a fama que tem.

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    1. Sobrou umas economias e eu comprei uma mala de livros da Cosac, inclusive 5 infantis (um deles, que não conhecia, do Checov).

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    2. É incrível, como estão desaparecendo rápido do mercado, alguns títulos só mesmo na estante virtual.

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    3. Você viu que a Companhia das letras anunciou que vai comprar parte do catálogo da Cosac?

      Semana retrasada eles estavam pela metade do preço na Amazon. Comprei os que eu vinha namorando, além de indicações. Acho que você que me perguntou sobre Oblomov, e o Paulo me falou do Outono da idade média (realmente um belo livro, mas ainda estou convicto que os contos do Tolstói vence). Foram o Stendhal, Pais e Filhos, o infantil do Faulkner (que me surpreendeu sobremaneira; achava que era apenas uma curiosidade, o li em uma tarde e é bastante bom). O Absolutamente nada do Walser, pela editora 34. Só não me chegaram ainda os infantis.

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    4. Vi sim, agora é esperar que a cia das letras, continue o bom trabalho que a cosac, fazia, mas creio que o acabamento, não será tão bom quanto, espero estar errado.
      Na verdade eu ainda estou lendo o "Oblomov", então não foi eu que o recomendou, o livro do Stendhal e do Turgueniev, até me interessam, mas eu já os tenho em outros edições, e meu foco vai ficar mesmo nos que eu ainda não tenho, que por sinal ainda são muitos os que faltam para eu adquirir.

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    5. Este comentário foi removido pelo autor.

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    6. É uma curiosidade saber qual linha editorial vai adotar a Cia com esses livros da Cosac. Eles ficaram num impasse: a tentação de lançar alguns dos clássicos no formato de bolso da Penguin deve ser grande, mas a diferença evidente não passaria batido.

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    7. Já eu me quebrei ainda mais: comprei os contos da Flannery O'Connor, todos os livros de Murilo Mendes e Jorge de lima que a Cosac publicou, Oblomóv, O Outono da Idade Média, Ressurreição, 2 do Bioy Casares, Contos reunidos do João Antonio, A cultura do Romance, Refrão da fome, 2 livros do Octavio Paz, 2 do William Kennedy, 1 do Anzanello Carrascoza, Metafísicas canibais, do Viveiros de Castro e o Arqueologia da violência, do Pierre Clastres.

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    8. Detalhe: quero muito esses contos do Tolstói. vale a pena mesmo?

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  3. Eu comprei o Anna Karienina da Cosac. Desejo os contos completos, os Faulkner e o Flannery O'Connor, mas no fim de ano comprei um monte de livros de ensaios em edições estrangeiras que se deixasse passar nunca mais veria. Vocês acreditam que comprei a obra completa de Charles Lamb por apenas R$24?

    Charlles, seu Quixote é releitura ou é a primeira vez?

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    1. Primeira vez que o li. Já havia lido umas 200 páginas umas duas vezes, mas sempre postergava o restante até esquecer. Será que isso ocorre com todos os leitores, em relação a livros incríveis como o Quixote?

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  4. Feliz Natal (atrasado) e um ótimo ano novo (em tempo), Charlles! Estou lendo o Marcovaldo, do Calvino, e o seu personagem principal tem um tanto de Quixote, me parece. Não li o Cervantes ainda, mas é claro que a fama e as características de seu personagem eu as conheço, por isso a associação. Quixote é uma leitura que idealizo para um futuro breve, durante umas férias; tenho uma edição antiga aqui, tenho que ver se ela é boa. Mas voltando ao tempo presente: estou terminando o Calvino e já pensando na próxima leitura, a que provavelmente vai fechar o ano: estou entre Saramago e Modiano; cogitava o Doutor Fausto, que me dei de presente de Natal, mas acho que esse vou deixar pro inverno. O verão vai ser quente, estão dizendo o tempo todo...

    Poxa, morreu o Lemmy... Perdi uma tia dias atrás, perdemos a Cosac, agora perdemos o Lemmy. É, 2015 não vai deixar muitas saudades. Quero dizer, aconteceram muitas coisas boas também. Bem, feliz 2016 a todos, que seja melhor que o ano que vai findando!

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  5. Ah, e eu também mandei às favas a responsabilidade fiscal e comprei umas coisas da Cosac: uns Faulkner, os contos completos do Tolstói e o Stevenson. Pelo menos o meu amigo que trabalha na livraria que frequento me deu os mesmos 20% de desconto que o site da Cosac estava oferecendo. E ontem num sebo achei baratinho o enorme volume de contos da Patricia Highsmith (não da Cosac). A pilha de livros para ler em 2016 está enorme.

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    1. Feliz ano novo para você também, Fabricio. Muita saúde e paz.

      Quase mandei o Montanha Mágica em uma releitura após o Doutor Fausto, mas vou aguardar que a Companhia das Letras cumpra a promessa de relançá-lo, junto ao Buddenbrooks em 2016.

      Modiano eu li o Uma rua em Roma. É estranhamente envolvente. Leve e fugaz, e acaba como se o autor mandasse tudo às favas, mas faz com que se fique pensando no livro. Tenho que ler mais dele.

      Esses descontos de livrarias são incríveis. Por medo de estar ostentando, desisti de fazer um post sobre isso. Mas vou dizer aqui> meu filho Eric nasceu em um domingo de outubro. Próximo à maternidade fica o Goiânia Shopping, que tem a fantástica Livraria Leitura, de dois andares, cheia de livros e de cds e dvds e blu-rays. Fazia algumas semanas que eu vinha paquerando os 6 primeiros cds de luxo e remasterizados do Led que tinham lá. Só olhava eles e os manipulava, mas nunca perguntava o preço pois sabia que era abusivo. De felicidade, no dia do Eric eu, desaforado, e com o álibi consumista de que meu filho precisaria desses cds, juntei os 6 cds e perguntei ao vendedor quanto que seria. Para meu espanto, os 5 primeiros estavam 34 reais, e só o Physical estava a 147 reais. Eu ri e pedi que o vendedor fosse lá na gerência e confirmasse os preços, pois cada um daqueles cds, em qualquer site de vendas, estava mais de 100 reais, sendo que o Led III estava a 114 reais. Eu tinha visto eles nos outros shoppings, e estavam com esses preços. Meu temor era que eu chegasse no caixa e a funcionária me dissesse que estava tudo errado. O vendedor voltou e disse que era isso mesmo. Resultado: o Eric entrou na turma zeppeliana com glória.

      O Lemmy morreu! Só soube agora. Lamentável.

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    2. Do Facebook do Nelson Moraes:

      "Diz a lenda que o apelido era Lemmy porque, quando criança, ele tinha a mania de ficar pedindo £5 emprestadas a quem quer que fosse: "Lemmy (lend me) five". Aí descubro que ele nasceu em 24 de dezembro pra morrer cinco dias depois.
      Claro, nada a ver. Mas, né. "

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    3. Puxa, que sorte, Charlles! Pagou mesmo muito barato nesses discos. Teu filho vai crescer em meio a um fantástico mundo de música e literatura, assim como a irmã!

      (Ter filhos, além de todas as óbvias maravilhas, ainda por cima aumenta consideravelmente as possibilidades de justificativas para a aquisição de discos e livros, não é mesmo? Vou começar a cogitar sinceramente um bebê aqui em casa, já que estou começando a ficar sem desculpas para minhas idas semanais às lojas de livros e discos... [risos])

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    4. Hahahaha. Rolando aqui com seu comentário. Você vai ver que é justamente isso mesmo.

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    5. Esse marmanjo aqui comprou 4 livros infantis da Cosac pra filha porque achou que não sobreviveria bem sem conferir as ilustrações surrealistas e o texto do Checov de um deles.

      A nossa sorte são os preços inacreditavelmente baixos da Amazon.

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  6. Charlles, fui eu que te perguntei sobe Oblomov.
    Sobre a Cosac também fiz minha loucura de fim de ano, fui na feira de livros da USP e me acabei por lá...

    E a edição caprichadíssima da autobiografia do Górki? Nunca mais veremos isso...
    http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11112/Caixa-G%C3%B3rki---trilogia-autobiogr%C3%A1fica.aspx

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    1. Fico mais aliviado vendo que tais loucuras são bastante comuns. Essa caixa é linda. Fiquei um pouco desmotivado com o Górki depois que li A busca pela imortalidade, do Gray.

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    2. Ganhei este livro do Gray de presente, me foi dado pelo amigo que trabalha na livraria, esse que citei acima! É que o livro chegou à loja com um pequeno defeito de corte lateral, nada que afete a leitura, mas o suficiente para que eles não pudessem vendê-lo, e daí dia desses conversando com este meu amigo Léo, ele citou este livro como uma de suas últimas leituras (não gostou muito), e eu me lembrei de seus comentários elogiosos aqui, Charlles, e falei que tinha curiosidade de ler; ele me pediu licença e voltou com esta cópia defeituosa para me dar. É outro da pilha para ler em 2016!

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    3. Esse Gray é muitíssimo bom. Uma das melhores leituras desses últimos dez anos (ah, Charlles, sempre hiperbólico...). Das seis pessoas que ouvi que o leram, esse seu amigo é o único que vejo não ter gostado. Pergunte ao Paulo.

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    4. Eu fiz isso (ler várias páginas e depois parar, até esquecer) com o Celine, uma vez só. E até hoje não terminei Auto de Fé, cujo começo já li duas vezes.

      Gray foi a descoberta do ano em que finalmente li Celine e Virgílio. De lá pra cá estou sempre relendo alguns trechos.

      "Em qualquer cenário realista, a Terra durará muito mais que o efêmero animal humano. Inúmeras espécies pereceram como resultado da expansão humana; incontáveis mais morrerão como consequência da mudança climática causada pelos humanos. Mas o planeta se recuperará, como o fez no passado, e a vida florescerá por centenas de milhões de anos, muito depois que os seres humanos tenham desaparecido para sempre".

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    5. Esse livro do Gray é para se ter na cabeceira da cama, como dizem.

      A propósito, para quem ainda não sabe, o Paulo publicou um ótimo texto sobre um personagem tipicamente naipauliano na revista Piauí, número de dezembro. Aqui:

      http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/professor-de-ludopedismo/

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    6. Muito obrigado, Charlles! Como disse antes, fico felicíssimo que tenha gostado. Nunca li nada de Naipaul, mas penso em comprar A Casa do Sr. Biswas.

      Semana passada emprestei uma pilha de livros para um primo e ele foi de cara em A Busca pela Imortalidade. Por agora dei uma pausa (estou lendo somente quadrinhos), mas A Anatomia de Gray estará entre os primeiros do próximo ano.

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    7. O Biswas é maravilhoso. Recomendo muito como porta de entrada para o autor. Depois, O enigma da chegada, Os mímicos, e Uma curva no rio. Os loucos apaixonantes, idealista e fodidos na vida por causa dos sonhos, estão mais em Os mímicos e nesse livro inclassificável e extraordinário que é Um caminho no mundo.

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  7. Islamist terror, security and the Hobbesian question of order

    Liberals often worry about the need to protect citizens from the state. Yet in the age of global terror, the risk posed by failed states is by far the greater danger.

    By John Gray

    http://www.newstatesman.com/2015/11/coming-anarchy-john-gray-isis-secrurity-hobbes

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