terça-feira, 26 de maio de 2015

Maravilhamento


Tive que sair de férias por uma semana com as meninas. A Júlia atacou de Blues, do Robert Crumb, claro que inventando deliciosas histórias no lugar do texto que ainda não sabe ler. Eu, além desse volume, comprei no aeroporto o Submissão, do Houellebecq, uma reedição de surpresa bem vinda de Fome, do Knut Hamsun, e O talentoso Ripley, da Patricia Highsmith. Eu parecia essas pessoas que atacam o supermercado antes de um feriado prolongado, como se esperando uma hecatombe de falta de alimentos. Eu previa uma amolação gigantesca, um tédio inumano, e dias de 36 horas na beira da praia. A Dani falou que se eu comprasse mais livros em cada aeroporto, daria excesso de bagagens e eu os perderia todos. Fiquei nestes. Li a metade do Houellebecq; bem prazeroso. Hoje vi uma entrevista dele pela Globo News, ele dizendo que, pela manhã, assistindo a um documentário sobre a Teoria das cordas, foi um desses momentos diários em que ele acredita em deus. É tudo bem organizado e bem feito demais, disse. É como eu digo, a literatura é um caminho, uma vela acesa no meio das trevas (citando Faulkner), mas não é para se levar muito a sério. Aliás, nada é para se levar a sério. Talvez, no meio da experiência religiosa que eu tive na última quarta-feira, só se pode levar a sério a praia maravilhosa, inesperadamente deserta, que eu vi. Surpreendi a todos que estavam comigo ao fazê-los ouvir que eu seria perfeitamente capaz de deixar tudo e morar ali, e eu estava sendo sincero. Senti como Whitman diante as estrelas, eu esqueci de tudo diante aquele mar e aquela noite infinita. Eu quis ficar ali para sempre. Perguntei à Dani que horas eram, temendo que a madrugada estivesse próxima fazendo que tivéssemos que voltar logo para o hotel, mas ela disse, chocada, que eram 5 e meia da tarde. Como a vulgaridade é uma das constâncias físicas infalíveis, no outro dia a mesma praia estava repleta de pessoas, as mais variadas possíveis, com cadeiras e guarda-sóis, pagando altíssimos custos pela mais irrisória ninharia, nesse Brasil lamentável de extorsão que custa mais caro que uma viajem a Paris. Encontrei outro turista, do Paraná, também indignado: em Nova York, ele pagava um real por um sorvete; na praia, o mesmo sorvete era 10 reais. Eu me abstive de criticar, teimando em tentar reviver a visão dos primeiros deportadores que chegaram àquela praia, antes da vulgaridade, antes da ganância desesperada. No tour que fizemos, era inegável que a crítica voltasse com tudo. As praias vistas na mais distante ponta de areia, naquela tarde redencionista, de perto estavam tomadas de resorts e hotéis de luxo suntuoso. As partes ainda prevalecentes de vegetação natural, estavam aos poucos sendo ocupadas por esqueletos de construções, com os tantos pedreiros-formigas queimando em um calor de 40 graus. Em um muro de metal provisório, que limitava uma dessas construções, alguém escreveu a frase "Mais natureza, menos concreto". Não nego que foi muito bom, assim como não nego que foi pavorosa as tantas viagens de avião. Fui uma vez para a Austrália com meu pai, mas a incipiência de meus dez anos me poupou do medo. Mas dessa vez, o pavor tomou conta de mim em silêncio, e foi tão mais terrível pela certeza que eu tinha de que todos ali naquele cano ao deus dará fingiam não se importar com a presença nítida da morte escorada na ponta balouçante das asas. Ao chegarmos em casa, eu disse que não viajaremos de avião pelo menos pelos próximos 4 anos, quando então iremos à Escócia e à Irlanda para o Bloom Day.

Houellebecq foi uma boa companhia no quarto do hotel, com o ar-condicionado ao máximo.

5 comentários:

  1. A Bianca tinha ideia de casar na igreja, o que não entusiasmava tanto, mas tampouco me incomodaria - decidimos fazer, estando casados no papel desde 2008 (namorando desde 2004). Não era só a igreja, era a festa tbm, pra reunir as famílias, o q realmente importava pra nós. Pelo preço da coisa, revisamos, no fim do ano passado, este plano - e então decidimos que colocaríamos a grana em duas ou três viagens.
    Então este ano conhecemos parte do litoral do nordeste, percorrendo 11 dias praias entre Maceió e Recife. Lugares muito bonitos, principalmente em Alagoas. Maceió pareceu muito agradável, as pessoas tranquilas; Recife é vertical demais, aqueles prédios oprimem o mar - e há planos para mais. Só q numa viagem dessas tu pouco conhece senão pelos donos das pousadas e pelos encontros de compra e venda. Porto de Galinhas, q é linda, não se descola quase um minuto desta opressão comercial. Os melhores momentos foram embaixo da água mesmo, com a população colorida dos peixes. É uma viagem para se encontrar mais com a natureza - tendo alugado um carro, conhecemos mil praias, entre desertas e muito visitadas; voltei com saudade de coco, coqueiros, tapioca, aquelas cores, aquelas águas e do tempo q não passava (pensava-se, são dez da noite; eram sete).
    Já estamos fazendo o roteiro da próxima, que será mais longa e passará por chile-bolívia-peru, acabando lá por machu pichu e cuzco. Lá onde, pelo menos a gente pensa, homem e natureza estão mais intimamente próximos.
    Vou marcar uma viagem para a Irlanda, como quem não quer nada, nem cerveja. Abraço!

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    1. Não querendo criar silogismos, mas o melhor da viagem é a saudade de casa e descobrir na verdade que não há a mínima necessidade em se viajar. Serviu para me deixar profundamente feliz com todas as mínimas idiossincrasias de recolhimento que tenho em casa. Apurou a limpidez do meu olhar amoroso até na maneira em que eu vejo as teias de aranha no teto. Essa viagem me serviu não para conhecer as praias mais lindas do país, mas para expurgar qualquer dúvida ou timidez de reconhecimento de que minha casa é, para mim, o melhor lugar do mundo (o único lugar bom).

      O povo de lá é de uma amistosidade tocante. Lembrei bastante do ensaio do Foster Wallace sobre a festa gastronômica em que ele conclui que todo turismo é um erro em que se macula a pureza das paisagens naturais e da tradição do povo local com a presença do turista sedento por ser distraído.

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    2. O engraçado é que nessa semana o Google tem apontado meu blog em resposta à pesquisa "O que é Charlles Charlles?". Não tinha a mínima ideia do que era, até que fiz a mesma pergunta ao oráculo e descobri que há uma nova invocação ao diabo usando-se "Charlie, Charlie". Achei uma graça sutil que o post apresentado mostra minha filha folheando um livro sobre Blues, sobre Charley Patton, Robert Johnson, e tantas encruzilhadas.

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    3. Sem dúvida, vejo verdade no que diz. E, por isso é bom ter ido - sem ter ido não entenderia o q significa o q diz.
      Tu já está mais em casa, enquanto minha busca é mais recente - li nesta viagem As lojas de canela, com q me presenteou. Não é q tenha visto ali tuas letras, mas penetrei num microcosmos muito íntimo, de muita umidade, pude ver como pegadas tuas (o charlles passou por aqui, e sorri. se te regalei com a poesia de mia couto, tua intuição - o teu melhor - me presenteou com uma poesia ainda mais delicada. o livro me colocou numa nova atmosfera). as viagens tbm servem pra isso.
      fica claro q bruno schulz foi um pintor e q tem tinta dele por aqui.

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    4. Pô, fico lisonjeado. Escolhi bem o presente; sabia que Schulz iria tocar você.

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