terça-feira, 8 de maio de 2012

Contra o Dia - Diário de Leitura


1088 páginas. 1088 páginas. Minha experiência de um número equivalente de páginas é dupla. Guerra e Paz, que tem mais, é um deleite. Mas A Canção do Carrasco, do Norman Mailer, que consegui enfrentar apenas 300 páginas do milhar do largo volume, ainda é um dos mais enfadonhos projetos literários de todos os tempos que tenho aqui em casa. Quando olho o livro de Mailer, não tenho como reprimir o pensamento de quantas árvores foram abatidas para que tornasse real a ambição equivocada do autor em relatar exaustivamente a vida de um assassino que era mais um delinquente juvenil que um pária legítimo _ o personagem de Mailer matara apenas um frentista de posto de gasolina, estatística insuficiente para gastar-se tanta tinta e vida vegetal com ele. E A Canção do Carrasco é tão falho em todos os sentidos que, a exemplo de seu modelo exemplar A Sangue Frio, deveria ser o único em que Mailer teria que dar livre vazão à acidez de sua escrita, mas não, o Mailer aqui é lacônico (!), bipolarmente conciso (numa reportagem de 1000 páginas!!!); no mais, chato pra caralho!

Outro livro recente que li, que tem a extensão de uma ferrovia, é o 2666, que também lê-se com prazer e assombro de primeira qualidade, apesar de Detetives Selvagens, do mesmo Bolaño, ser um calhamaço cuja prosódia sincopada e o estilo batido por demais do "múltiplo ponto de vista sobre um personagem" (no caso, dois personagens) resvala frequentemente no tédio e no sono.

Mas as 1088 páginas de Contra o Dia, de Thomas Pynchon, trazem muito mais similaridades com o mote que leva grandes autores a apostar que só o genocídio de territórios e territórios de árvores comporta o que eles tem para dizer. Thomas Pynchon, desde seus outros sete romances (apenas dois deles com mais de 600 páginas, para desfazer certa mistificação da imprensa supérflua de que Pynchon é O autor de listas telefônicas), prova que tanto é exímio contador de histórias aos moldes puros de Dumas pai, quanto é um expansor da linguagem aos moldes de Joyce. Não, não! Faço aqui uma outra desmistificação: Pynchon não é o debulhador de palavras joyceano; nenhum livro de Pynchon traz as dificuldades às vezes hercúleas de leitura de Joyce. Pynchon é, apropriadamente, muito mais próximo de Lawrence Sterne, Defoe e Rabelais que de qualquer dadaísta ou seguidor das correntes de pensamento nascidas fermentadas pela influência massiva de Ulisses. Pynchon é, como disse corretamente Harold Bloom, um excepcional escritor faulkneriano, um dos três que pegou o espólio verbal de Faulkner e o conduziu com mérito para o futuro que a espiação biológica natural não permitiu que o autor de Absalão, Absalão! fizesse (os outros dois são Delillo, e o maravilhoso Ralph Ellison). Pynchon também se aproxima da introspecção onisciente e da impactante lucidez formal de Proust, atingindo muitas vezes as mesmas esferas sublimes do francês na exploração de sentimentos, rostos e paisagens, que desencadeia um caleidoscópio de recordações que tem o efeito de tirar o leitor da realidade, lançá-lo em uma profundeza ainda não definível que chega perto a uma apreensão desfolegante da verdade. Pynchon tem, como Proust, esses cantos do discurso através dos quais a observação desfaz qualquer neutralidade e impunidade por parte do leitor; tem esse fator modificante que extrapola a mera ação física e transforma a leitura na aquisição espiritual requisitada nos fundamentos da arte. Vou dar um exemplo da adstringência verbal de Pynchon entre os muitos que sublinhei nas 200 páginas lidas de Contra o Dia:" tatuadores das Ilhas dos Mares do Sul traçavam nos bíceps dos barqueiros imagens hieráticas que algum dia, quando menos se esperasse, ocasionaria atos de magia, pequenos, porém cruciais." Essas frases que falseiam serem objetos da pressa e da trivialidade mas que acionam zonas mais amplas de percepção, que fazem parar a leitura e correr os olhos pelo quarto em busca da singela correlação pessoal por ela desencadeada.

Por isso a verdade posta à prova dessas 1088 páginas de Contra o Dia é que 1088 páginas passam numa velocidade atordoante que já incute a nostalgia das grandes experiências de leitura após terminar-se o livro. O livro é cheio de histórias paralelas deliciosas que Pynchon tem o talento único de interpor no meio de uma descrição de um prédio ou da divagação filosófica de um personagem sem que o leitor perceba que foi enredado de súbito. E tudo é muito natural e espontâneo. Pynchon é incapaz de produzir uma frase matizada, um diálogo programático, de criar um personagem estereotipado. Um de seus grandes trunfos é justamente esse, o de ter criado uma voz e uma independência narrativa que o isenta das críticas de artificialidade que se tornaram comuns contra os atuais romancistas americanos, como Jeffrey Eugenides e Jonathan Franzen.

A leitura segue envolvente, despertando as velhas sensações apaixonadas tidas com O Arco-Íris da Gravidade, O Leilão do Lote 49 e V. De forma que é agora a hora de colocar as outras leituras concomitantes de lado e me ater somente em Contra o Dia.

5 comentários:

  1. Rapaz, terminei ontem As Virgens Suicidas, primeiro livro do Eugenides, e não vi nada de artificial. Pelo contrário, a riqueza de suas descrições chegou a me lembrar de Nabokov, dado a qualidade estilística. Vou até procurar Middlesex. Você já algum livro dele?

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    1. Nunca li nada dele, Paulo. Quero muito ler Virgens Suicidas e Middlesex. O que reproduzi no texto foi a crítica de variada parte da imprensa (estrangeira e, como de praxe, copiada pela imprensa nacional) que está a detonar o último romance dele, em que ele, supostamente, toma emprestado a figura de David Wallace para compor um dos personagens principais.

      Mas sobre Franzen, que li os três livros dele lançados por aqui, antes mesmo de que tomassem coragem de apontar os sérios defeitos do "romance do século XXI", eu já expus aqui o quanto Liberdade é estereotipado e cheio de clichês.

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    2. Ao contrário de "As Correções", que é fantástico!

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  2. Li As Virgens Suicidas sem esperar muita coisa, apenas porque já tinha em casa, pela L&PM, e me surpreendi. Se Middlesex tiver apenas uma porcentagem de sua qualidade (tudo indica que seja até melhor), já vale a leitura. Li uma crítica parecida com isso que você disse sobre o mais novo dele, no blog de Sérgio Rodrigues. De qualquer forma, ainda vou ver se espero a edição econômica de Middlesex, pela Companhia ou se compro a da Rocco mesmo, que está bem barata em alguns sebos. A Trama do Casamento e Liberdade podem esperar. De Franzen só li a entrevista para a Paris Review, que saiu na Serrote, e fiquei com vontade de ler mais. Achei num sebo a edição velha de As Correções, e está na fila. Qual o outro livro dele lançado aqui? Presta?

    Ah, finalmente estou lendo Herzog.

    P.S. Nunca vi você comentando Nabokov. Não gosta, não leu... o que?

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    1. O outro Franzen é um relato biográfico lançado pela Cia das Letras, intitulado A Zona do Desconforto, e é bom. Mas o melhor, disparado, de Franzen, é As Correções, que ombreia os melhores do Philip Roth. (Sobre isso, aliás, tem um bom exemplo de leitura numa entrevista de Bruce Springsteen, em que, perguntado quais livros mais o tinham impactado nos últimos 10 anos, respondeu que era a trilogia da vida americana de Roth, e As Correções).

      Li dois Nabokov: Lolita e Fogo Pálido. O primeiro está entre os melhores, o último foi um tour de force para chegar ao final. O estilo de escrever de Nabokov ensinou muita gente boa. Compartilho a opinião de Bellow, de que poucas companhias estéticas são tão absorventes e deleitosas que a de Humbert Humbert.

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