terça-feira, 19 de julho de 2016

Kazantzákis

A bonita e expressiva capa da editora Grua


Jesus Cristo talvez seja minha maior fascinação. Sem que seja preciso mencionar aqui o lado religioso, que é muito idiossincrático para que pudesse explicar, o homem Jesus é que me interessa profundamente. Do ponto de vista de todas as religiões que há por aí, eu sou ateu. Não acho que as igrejas são mais benéficas do que maléficas, e nem que funcionam consoladoramente para os mais destituídos. Por muito tempo cultivei o desejo de entrar em um monastério, mas meu ceticismo sempre foi gigantesco demais para isso. Em paralelo, conseguia me manter meio dignamente na contemplação vivendo sozinho. Os verdadeiros amigos da juventude foram cada um para seu lado, como haveria de ser, e, baseado na premissa de que amigos mesmo só compensam o que teriam os mesmos gostos e afinidades que eu, eu ficava plenamente com os livros. Nunca fui assoberbado pela solidão; os amigos sociais, aqueles que fingimos saudavelmente que nos bastam, uma ora e outra preenchiam as zonas de trivialidade da minha vida. Mas meus amigos, sem eufemismos e relativizações ou tristes consolos, sempre são os livros. Ler por anos Faulkner me enchia de alegria. Lembro que um de meus amigos verdadeiros, que cultivei na raridade da vida adulta, o Galheb, em um desses natais em que nós dois poderíamos ter-nos dado a companhia um do outro diante a mesa de jantar, em nossas vidas em que não havia ninguém mais que pudesse fazer esses papéis recíprocos, se despediu de mim nas vésperas da comemoração e me perguntou com quem eu passaria a festa. Eu respondi que com Winston Churchill, e ele, da mesma maneira séria, avaliou a questão e disse que era uma ótima companhia, e concluiu que ele passaria com George Steiner. Nas noites de frio, eu me sentava com Arsene Lupin, e com os para mim sempre acolhedores ensaios de Borges. E não havia felicidade maior do que esta.

De modos que re-conhecer Jesus através da ótica da literatura é-me muito valiosa. Os dois grandes livros para isso são O mestre e Margarida, que tem um dos mais desconcertantes e belos Cristos, e A última tentação, essa obra-prima inigualável escrita por Kazantzákis. Nesta última, o leitor quase sente o resvalo do homem Jesus em sua pele. É tudo profundamente atmosférico e feroz e cheio de ternura, cheio de perigo humano e radiante. Recordo que o final do filme que o Scorsese fez para esse livro foi tão surpreendente quanto, digamos, o final de O sexto sentido. O impacto da inesperada surpresa, aliás, é bem maior. A astúcia usada para explicar a mensagem de Jesus para os homens, através de uma ótica racional e pragmática, utilizando aquele final genial, é apoteótico. Muitos da igreja consideraram aquilo um insulto mancomunado por uma nova coligação do pensamento formador ateu, o que era um disparate. Aquele filme me ganhou para as frentes do cristianismo utópico, em um momento em que o ateísmo em sua mais incomunicável e equivocada vertente me assediava. Meu Cristo seria sempre aquele. Andei atrás do livro, com desespero de leitor obcecado, e o li em uma sentada, atravessando dias e noites e almoços comidos às pressas. O final, a surpresa, o cósmico ensinamento, foram todos retirados do livro, são todos obra da mente generosa de Kazantzákis. O cinema de Scorsese tem por mérito os cortes portentosos, a trilha sonora do Peter Gabriel, a beleza plástica de Willem Dafoe, o Deus que oprimia o homem Jesus a aceitar o encargo descendo como um abutre invisível do céu, as palmas que se fecham uma sobre a outra na invocação magnânima do Lázaro de seu sepulcro. 

Achei minha igreja na minha família. Lembro que propus à Dani que ela viesse morar comigo. Sempre fui avesso a todos os arquétipos do consumo, de modos que por detrás dessa proposta só havia o amor incipiente e verdadeiro talvez em menor grau que a previsão dos auxílios na velhice, e não a necessidade da serva feminil e confortadora na qual se escora o escritor. Ela se recusou, como haveria de se recusar, e, enxergando no fundo do meu coração (onde havia mesmo um vazio sem fim), arranjou de me dar uma filha. Nos casamos, e a Júlia sempre foi uma alegria tão imensa, que arranjamos, já de comum acordo, de termos o Eric. Sei que para muita e muita gente filhos não são a salvação e nem são interessantes. Mas em mim se encaixaram despudoradamente todos os clichês da paternidade redentora. Escrevi certa vez que ver a Júlia no berço da maternidade foi equivalente a tocar o sol. Não há um dia, porém, em que não penso se não fui grotescamente egoísta em trazê-los para esse mundo. Se para poupar-me de um suicídio, eu negociei com duas vidas. Do fundo, um remorso pesado tenta emergir. O Eric, tão contrário à Júlia, passou esses nove meses chorando umas 10 a 20 vezes por noite. A Dani está um bagaço. Eu brinco com ela para prestar sempre atenção ao pegar o Eric para ver se não pegou a gata enganada e está a lhe dar de mamar, tamanho o estado de zumbi em que ela e eu estamos. Eu vejo isso com o orgulho do pai, que atribui à ânsia do filho a vontade de abandonar logo a fase de bebê e poder andar, correr, ser independente, ser dono de seu corpo. Eu falo para a Dani que só a mãe tem essa paciência. Por isso tantas babás agressivas, tantas professoras dispostas ao beliscão e ao chute. Só a mãe tem esse amor, só. Eu, se estivesse sozinho com o Eric, não teria dado conta. Mas também eu nunca perdi a paciência com ele. Sempre o abraço muito e o beijo muito, e às noites, quando a Dani já está esgotada, eu o coloco deitado entre minhas pernas e vou-lhe ninando com o balançar até que ambos dormimos, ao som de Bach e da Mutter. Embora tirar-lhe da mãe seja difícil, o cara é viciado nela. Uma grande nostalgia do útero. Como se fosse um protesto, que aos poucos vai passando ao lhe oferecermos opções de recolhimento convincentes.

Cristo não está nas igrejas, cada vez mais demoníacas. Esses dois assuntos tem muita relação para mim, o que talvez não transpareça no texto.

Três de nós

35 comentários:

  1. Já estive em um seminário. Foram anos agradáveis. Estudei com um finalismo claro - ser um clérigo. No final da jornada, percebi o quanto trilha era estreita para quem sonha em caminhar por caminhos maiores e livres; notei o quanto o teto da religião é baixo para quem não deseja ficar sentado. Abandonei a igreja. Mas aquele senso de espiritualidade continua em mim. Não sei como me definir. Embora esteja voltado para a materialidade, há em mim um grito de eternidade, talvez fazendo ecoar aquilo que, segundo a tradição, Salomão tenha falado: que "a divindade colocou no coração do homem a eternidade". Ou aquela velha sentença de Pascal: "esses espaços infinitos me apavora".

    O fato é que há uma saudade em nós por algo que já foi, que é ou que será. Em sujeitos muito sensíveis, isso aflora com muita facilidade. Acredito que pensar Jesus, seja idealizar aquilo que de mais sublime existe como sonho virtuoso no coração do homem. O Jesus dos evangelhos é uma figura envolvente. Não consigo deixar de me emocionar quando leio o Sermão do Monte ou, simplesmente, as bem-aventuranças. Quando ele afirma: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados"; "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados"; "Bem-aventurados os mansos, pois verão a deus". Esse lado singelo, fraterno, sensível como um halo etéreo, é uma melodia com ressonâncias infinitas.

    Entendo o que você fala, Charlles! Além do filme do Scorcese, há "O evangelho segundo são Mateus", de Pasolini, uma das leituras mais belas sobre Cristo. E, claro, no plano da literatura o Cristo de Saramago. Apesar de ainda não ter lido o Nikos Kazantzákis (apenas vi o filme há muito tempo atrás), penso que esses sujeitos pintaram um Cristo mais belo do que o Cristo inquisidor de Paulo, que é um Cristo protocolar, repleto dos maneirismos jurídicos do farisaísmo típico dos judeus.

    Em Cristo, vemos a face mais bonita da humanidade.

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    1. Carlinus, eu não sei de nada_ nós não sabemos de nada. Todo conhecimento, ou pretensão de conhecimento, é uma balela; a mínima análise desapaixonada já nos aponta a nossa enorme solidão e ignorância. Em que a ciência evoluiu? Não é uma piada debochada ver que a celebração cantada aos gritos dos "benefícios da ciência" são essas apiedantes telinhas coloridas dos celulares e essa comunicação global irrestrita que, no final das contas, não serve para nada? Minha experiência com o Facebook, de um dia, reforça ainda mais o quanto o ser humano é uma criança bestificada, para quem toda sem-significados fração colorida hipnotiza. Acessei algumas vezes meu Face (hehe, posso falar agora "meu Face", que ridículo), e todas as vezes vem dezenas de "solicitação de amizade" de gente que nunca ouvi falar. Só o tempo que se leva para selecionar quem destes avatares terão a honra de "serem meus amigos" já arrancaria uma boa parcela da minha estimativa de vida. E como sempre, a mesma pornografia e tentativa de prejuízo nos spams de robôs e pessoas com sérios distúrbios cerebrais. É só isso que nos trouxe a técnica? Uma maneira de sermos assediados pela psicopatologia cotidiana sentados em nossas cadeiras preferidas? E é isso que vem suplantando a metafísica em nós. Digo metafísica porque os termos sempre serão os errados: sagrado, esoterismo, deus, cristo. Nunca saberemos; se nos fosse oferecido a intuição, provavelmente a usaríamos no sentido errado, como talvez a intuição da internet está sendo usada para tudo o que há de ruim e nefasto.

      Só tive uma "revelação". Essa é a verdade da qual consegui apreender algum sentido. E é a seguinte: nós tendemos a nos lastimar, a achar que tudo está contra nós, que vivemos em um inferno de total desproteção. Toda a filosofia e literatura é fundada na lamentação. No livro Meus prêmios, o Bernhard faz até uma auto-piadinha dele, ao colocar nas palavras de um físico a pergunta de "por que vocês escritores só veem a vida como uma inescapável desgraça?". E eu descobri que isso é uma grande bobagem. Tolstói descobriu a mesma coisa em sua Confissão. Nós fazemos parte do universo, não estamos em oposição a ele. É um dos clichês da intelectualidade canônica mostrar o ser humano como um símio nu e solitário, vítima da todas as investidas violentas da natureza. Só que acontece que nós temos o mesmo direito de sermos observados pelo Acaso quanto as grandes tempestades, os buracos-negros e os furacões. Somos tão legitimamente parte disso tudo quanto as nebulosas, o que põe por terra isso de que somos tão infinitesimais que chegamos a não existirmos para o cosmos. Isso é uma grande mentira. Nós também somos uma força colossal. O que Tolstói resumiu dizendo que só é possível a existência quando vivemos na felicidade de deus, pois o simples fato de existirmos já proclama que estamos em algo, no universo, no absurdo, em deus. Daí a impossibilidade do ateísmo. Me declaro ateu como definição da minha insolvência no sistema primitivo de crenças terrenas, para a qual ainda não nos foi dado uma religião verdadeira, mas só morticínio e estupidez. Sou ateu para todas essas coisas: catolicismo, evangelismo, islamismo, budismo, o que for.

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    2. E nisso, Jesus é a coisa, a invenção, a impostura, o humano enlouquecido, mais perfeita que já surgiu na Terra, seja qual explicação teleológica complexa tiver. Realmente o sermão da montanha é a revolução espiritual mais retumbante e implacável que aconteceu. Nesse livro do Kazantzákis o anjo Gabriel fala a um dos apóstolos que a verdade tem sete níveis, que ele podia muito bem escrever sobre um Jesus hipotético que ainda assim seria verdade. É muito esclarecedor esse livro.

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  2. Charlles, fiquei muito emocionado com seu texto...
    Gostaria que soubesse: o considero um irmão em espírito...

    Também aconteceu comigo:a paternidade foi a minha redenção... Há instantes que vivencio uma tal profundidade, só por estar ao lado de meu filho, que me aproximo de algo que deve ser Deus...
    Num instante,não mensurável, tudo faz sentido:ė como se fosse um flash universal que no instante seguinte se dissipa: deve ser isso o que é denominado milagre...

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  3. TRÊS ANOS
    by Ramiro Conceição


    Quando o meu filho me leva,
    me levanta em seus ombros
    de três anos, creio em Deus.

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  4. Faz uns três anos que acompanho o blog lendo todos os posts. Nunca publiquei qualquer comentário, apesar de boa parte de minha biblioteca ter se formado a partir dos livros mencionados aqui neste blog. Porém hoje senti a necessidade me render. O texto, os comentários, tudo nest post me comoveu demais. Compartilho das mesmas idéias com relação religiosidade, me considerando também ateu por definição.
    Ainda não sou pai, mas pude ter pelo menos uma leve impressão do quão transcendente dever ser a paternidade.
    Que o blog perdure, para o bem de todos!
    Um grande abraço!

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  5. Curiosa essa sua especulação sobre ter sido egoísta ao resolver ter filhos. Pois eu já fui acusado da mesma coisa, mas pela causa contrária: por preferir não tê-los. "Isso é um grande egoísmo", disse-me um amigo certa vez, numa mesa de bar, todos já meio bêbados, mas esse amigo muito querido costuma ser totalmente franco e dizer coisas que variam entre o profundo e o misterioso quando ele está nesse estado. Foi algo que calou fundo em mim, e até hoje ainda penso nisso. No mínimo, é uma idéia bastante poética. Ou uma grande bobagem, não me decidi ainda.

    Ademais, o Charlles é a unica pessoa que num mesmo comentário está permitido dizer que nós seres humanos somos "crianças bestificadas" e, não muitas palavras depois, "forças colossais", e não soar esquizofrênico por essa aparente contradição. É isso aí mesmo, somos as duas coisas. (Tendo filhos ou não.)

    A diatribe contra os celulares e a ciência me lembrou um vídeo que assisti recentemente: o Doc (o cientista do De Volta para o Futuro) reapareceu em 2015, mas não o 2015 fictício do segundo filme da série, e sim o 2015 de verdade, ou seja, o ano passado. Ele encontra uma pessoa com um celular na mão, e fica maravilhado ao saber que aquela coisa mínima é na verdade um pequeno computador que tem uma capacidade de processamento milhões de vezes maior do que qualquer coisa que o Doc tenha usado nos anos 80 para inventar sua máquina do tempo. Ele fica deslumbrado com aquilo e pergunta "então quer dizer que qualquer pessoa hoje em dia tem no bolso um aparelho que pode ser utilizado para estudar genética, para analisar bancos de dados de galáxias, para executar cálculos matemáticos complexos, para ler tratados de física e etc. etc.?", ao que o cara responde, totalmente sem jeito, que "sim, mas nós costumamos usar, na verdade, para trocar mensagens e figurinhas uns com os outros".

    Bem, eu uso o meu para ouvir música em qualquer lugar, ao que sou bastante grato à ciência por essa pequena dádiva. [risos]

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    1. Hahaha. Essa do vídeo é demais. É isso que eu digo sobre crianças bestializadas e forças colossais, e sobre gastarmos a inspiração em nada. Nossos cérebros e nossos espíritos merecem bem mais que essa ração insossa, nos dada por controle social e pelo mercantilismo aos estúpidos. Há uma aparente contradição aí, mas não muita (risos).

      Recordo que, há 15 anos, quando me ingressei na carreira pública, eu aproveitava meu tempo livre lendo livros. Toda brecha eu retirava um livro e me punha a ler, sentado à minha mesa. Algum tempo depois, gerou aquelas conversinhas que em nós humanos é uma característica indissociável, e eu fui informado que não era uma coisa bem visto no trabalho. Eu mandei respeitosamente os preocupados para a puta que pariu e eles me deixaram em paz com minha eficiência nunca contestada e meus livros. Hoje, todos os meus colegas ficam colados em seus celulares, patologicamente incapazes de ficarem um minuto sem consultarem a piadinha pornô e o textinho boçal sobre corrupção petista quando o toquezinho do whatsapp os convoca. Creio que eu nunca vou deixar de achar isso assustador. É a pragmatização de todos aqueles filmes de terror em que marcianos e demônios tomam os corpos dos habitantes de uma cidade. Cada colega meu faz parte de dezenas ou centenas das tais comunidades do whatsapp, e cada uma delas envia não sei quantas dessas idiotices infantiloides por minuto.

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    2. Alguém aí viu a série Black Mirror?

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    3. Ah, eu escrevi sobre ela há alguns anos:
      https://raviere.wordpress.com/2014/05/08/numa-tela-brilhante-black-mirror/

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    4. Li seu texto e fiquei muito curioso. Vou pedir a meu Doctor Robert local para baixar os poucos episódios.

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    5. Vale muito a pena. Não se esqueça que saiu mais um episódio depois de minha postagem.

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    6. Só complementando um pouco mais a resposta para o Fabrício: quando eu disse "força cósmica", não me passava pela cabeça o homem adâmico e divinatório dos poemas do Whitman, o Super Homem renascentista americano, cheio de glória. Eu quis dizer que nós somos da mesma forma um milagre físico indiscutível como tudo o que há no universo, e estamos inseridos nele. Talvez aí esteja uma possibilidade de imortalidade, embora esse seja um assunto mais cabeludo.

      E "crianças bestializadas" é porque meus filhos, como todas as crianças, são gênios. É outro clichê que é a mais pura verdade. E eu aprendi na prática que sim, todos nós nascemos bons; o altruísmo natural de meus filhos é uma coisa belíssima de se ver. Eles são dominados pelo ciúmes, pela gula, pela ganância por uma simples pedrinha, o que é o sistema darwiniano se desenvolvendo, mas o que sobressai é uma bondade inerente, uma cordialidade humana que tem a mesma raiz antropológica.

      Lembro que eu nutria um ódio por um moleque que morava aqui perto de casa. Ele tinha uns cinco anos e era um demônio, passava por aqui sempre fazendo o maior barulho. Um dia, eu estava sentado na calçada, em uma cadeira de fio, e esse moleque me chega com um aviãozinho de brinquedo e do nada se põe a mostrá-lo para mim, com um entusiasmo puro, olha só aqui a asa dele que bonita e tals. Me desarmou por completo. Eu vi o óbvio, que ele nunca fazia das dele para magoar ou perturbar ninguém, ele era ruidoso porque a vida era um êxtase para ele, ele retribuía fielmente em gasto de energia o que a existência lhe dava.

      Há muitas vantagens em uma vida adulta sem crianças. Sossego, talvez maior liberdade para desenvolvimento pessoal, um recolhimento mais eficiente. Para se ter crianças em casa é preciso sim uma série de atributos, senão todos serão infelizes e por isso temos uma sociedade sempre tão carregada de traumas e rejeição. Eu mesmo nunca me imaginava pai, nem sequer me passava pela cabeça a paternidade. De modos que a Dani me deu um golpe da barriga. Eu digo isso para ela e chamava no princípio a Júlia de "Golpe", onde está o Golpe? Para mim, meu desenvolvimento como ser humano foi acionado com a paternidade. Não faço de modo algum propaganda disso. É algo que deve ser pensado, na maioria das vezes é um tiro no pé. Para mim foi ganhar na loteria.

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    7. E como se pode ver, estou acordado desde madrugada graças, mais uma vez, ao Eric. Estava eu deitado no sofá, com ele entre minhas pernas, e liguei o som no que havia no pen drive, o Heaven & Hell do Vangelis. Ele começou a cantar junto nos primeiros compassos, a bater palminhas, e logo estava desmaiado. E vai parecer mais um dos meus exageros de pai, mas ouvir aquela parte, lá pelos 13 minutos da primeira música, que inspirou o Carl Sagan a ponto dele a usar como tema de introdução à sua série Cosmos, com o Eric no colo, foi sensacional (risos).

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    8. Charlles, essa história do seu vizinho de cinco anos e seu pequeno avião, é muito bonita! Adoro esses pequenos causos (como chamamos esse tipo de coisa por aqui, "causo", não faço idéia se é uma palavra provinciana ou o quê), passagens singelas do dia-a-dia, mas das quais vez ou outra tiramos grandes lições ou belezas quaisquer. Você tem um baú dessas e é quase sempre a parte que mais gosto dos seus textos, quando uma delas emerge para ilustrar alguma coisa qualquer que você quer dizer. O olho para registrar e reutilizar isso é o que eu mais admiro em muitos escritores.

      Isso tudo que você diz me é plenamente compreensível sim. Há muitas formas de captar isso -- certas músicas, certos momentos de sossego e observação atenta, e por aí vai. Crianças -- crianças são hipnotizantes! Eu as adoro. Adultos, aliás, são apenas crianças obsoletas, já disse alguém muito perspicaz. Mas música é o meu canal mágico predileto. É do qual mais costumo me servir. Se algum dia eu tiver que dizer o que eu sou, o mais brevemente possível, vou dizer que sou sobretudo um escutador de música! Fico aborrecido às vezes por não conseguir ler tanto quanto gostaria, toda aquela lista enorme de livros que tenho anotada -- a maioria extraída daqui desse logradouro internético -- e que eu sei que em grande parte não terei a chance de ler, mesmo tendo muitos já nas minhas estantes, mas logo esqueço isso quando me dou conta do privilégio que tenho de poder ouvir a tanta música, devido à natureza do meu trabalho e outros aspectos da minha vida, e não é mera música de fundo não -- consigo ouvi-las sempre com boa doses de atenção e regozijo pleno. O que me faz compreender suas especulações sobre sermos crianças bestificadas e forças colossais é principalmente o tanto de música que tenho em minha vida.

      E dessa tela eu saio para procurar por um download desse disco do Vangelis, que nunca ouvi completo.

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    9. Deploro religião, o que não começou quando eu era criança, quando eu era criança eu só não queria comer a tal da hóstia, e não queria porque não queria e pronto. Lembro da minha mãe ligando prum padrinho meu e contando o caso, que ela tinha um filho ateu. Aprendi a palavra e me assumi ateu num pulo. Mas nem fodendo que eu ia comer aquela hóstia.

      Tem quem cole o ateísmo à inteligência, mas isso eu não entendo, que o meu nasceu simplesmente duma teima. Por um quarto da cabeça do Tolstói eu aceitaria ser o catolicão mais insano.

      (Há um enorme exagero no parágrafo acima, soube e não tinha nem terminado de digitar, mas preferi não interromper e deletar tudo. Tô aqui o mais honesto que posso: queria ser alguém que quer ser alguém que acredita em Santa Bárbara. "Querer querer" não sendo uma repetição supérflua, porque estou me referindo ao poema de Caeiro, que começa com Esta tarde a trovoada caiu. Só que não dá pra ser Caeiro, nem Pessoa era Caeiro.)

      Caso ano que vem, e se pudesse já tinha logo filhos, mas não temos um puto no bolso e eu morreria de culpa se pusesse um filho no mundo e um belo dia concluísse (ainda que a conclusão pesasse menos que um miligrama) que não temos como arcar com os custos. Não nos perdoaríamos pela mesquinharia, eu e ela. Fica pra daqui a uns anos...

      Sou dos poucos que conheço que ama crianças. Depois de liberar meus alunos da aula, ir com eles até a recepção, entregar todo mundo pros pais, depois que me dão tchau eu percebo que tenho o melhor emprego do mundo.

      (Ramiro, esse poema é dos meus favoritos seus. Vira e mexe eu me lembro dele.)

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    10. Grato,João.

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  6. Talvez vocês não tenham percebido, mas este conjunto post+comentários aqui, especificamente este aqui, é uma preciosidade.

    Ok, talvez eu esteja dizendo isso apenas pq há tempos não venho e comento, pq não tenho lido os posts há uns 3 meses, coisa rara, e coisa q me propus a começar hj a colocar em dia (lerei todos retroativamente).

    Voltando, o post é simples, mas convidativo. o charlles chamou pra conversar. e o carlinus aceita o convite com um petardo, com a réplica do charlles q me faz lembrar - como sempre - o qto andamos por aí conectados, ainda q desplugados: ontem mesmo vinha ouvindo uma música pro trabalho, e depois ia embora vendo uma lua estupenda, e ficava embasbacado com aquilo e com o triste contraste de pensar nas pessoas q vivem nesse mundo sem qq, vou usar o mesmo termo pra talvez querer dizer outra coisa, sem qq metafísica. ou, dito de outra forma, provavelmente melhor, completamente mergulhadas numa "vida" mecânica, sem espaço pra uma faísca de pensamento libertador, um olhar pro céu.
    nós não sabemos nada, mas a gente supõe q não se trata só de saber.
    aí vem o Ramiro e te abre os braços como, penso, todos aqui gostaríamos, amigo, com a ternura de um poema.
    aí Fabricio e charlles emendam uma conversa louca (de total sentido) e eu me lembro direto de Black Mirror e vejo logo abaixo q o Paulo tbm lembrou (talvez tendo em mente o mesmo capítulo q eu, o 2º da 2ª), e q até tem um texto bem legal sobre a série (entrem no link dele, é aquilo mesmo; e vejam).
    Então o Fabricio fala de música e eu me identifico tanto pq aí está o q quero dizer com metafísica (a minha), eu não quero saber se há deus, há música! Há música! Acho q as pessoas não se dão conta direito do milagre q é a música, da profundidade com q ela nos chega, do lejos a q nos leva, eleva, dos encontros q ela nos proporciona... e ontem (!) foi minha primeira aula de violão, q finalmente tomei vergonha na cara e fui fazer (um professor tão legal). Quero me permitir mais música. Minha metafísica pega um Nietzsche, talvez mto na transversal - q me desculpem os entendidos, a essencialidade do corpo, pq são corpos q vibram, são vibrações q fazem a música, q repercutem na dança. O importante é ter saúde! (se tiver os traços da Dani, são preferíveis aos do charlles!). O importante é ter saúde, digo, agora mais sério, com alguma harmonia entre nosso corpo e a natureza. e por q eu vou duvidar se alguém me dizer q tem sete níveis disto ou daquilo? Acho q tem milhões de maneiras de tentar compreender, e mesmo de vivenciar. entre as conscientes, pior é nenhuma.

    "Tem quem cole o ateísmo à inteligência, mas isso eu não entendo, que o meu nasceu simplesmente duma teima. Por um quarto da cabeça do Tolstói eu aceitaria ser o catolicão mais insano."
    ri muito disso, João Antonio.

    gosto tanto desse blog aqui q, mesmo nesse tempinho q não pude ler os posts, vinha aqui, olhava os títulos, abria uns posts, passava os olhos e voltava às prioridades erradas. abraços a todos vocês, inclusive pra esta pessoa (Juliodito) q comentou pela primeira vez. eu acho o máximo qdo o pessoal sai do silêncio depois de tanto tempo, eu acho massa tanta gente comungando sem hóstia.

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    1. Também fiquei uns meses sem vir aqui, entrando pouco na internet. Meu propósito é muito menos nobre: estava torrando grana com álcool, gasolina e celulose (o último texto do meu blog). Curiosamente, a única pessoa daqui com quem falei foi Arbo, a respeito de Machu Picchu.

      Sim, meu episódio favorito é o segundo da segunda, que revi esses dias com meus alunos. Mesmo tendo visto sem legenda, ficaram embasbacados.

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    2. Eu gosto muito do primeiro episódio, apesar de mais desagradável de se passar para os alunos. Foi a sinopse dele que me convenceu a ver a série.

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    3. A sinopse é genial. Eu acho bom o episódio. Mas acho q está um pouco abaixo dos outros por, sem spoiler, falta de certa verossimilhança no modo como foi construído. Paradoxalmente, a história talvez seja a mais despegada de qq ficção. Enfim, achei meio "fechadinha" tbm, meio q querendo dar uma lição de moral diretaça.

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    4. Vocês assistiram Ex Machina? Lembrei de Black Mirror na hora...

      A série é genial mesmo, a Netflix já confirmou uma 3° temporada, parece que com 12 episódios, aguardemos.

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    5. Vi sim. Depois fiquei viciado na banda Savages. Parece mesmo, inclusive o protagonista é o mesmo ator do primeiro da segunda.

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    6. Vi sim. Depois fiquei viciado na banda Savages. Parece mesmo, inclusive o protagonista é o mesmo ator do primeiro da segunda.

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    7. não vi, mas como já me falaram isso algumas vezes, já estou com esse filme separado pra ver em casa, desde o fim de semana. deste próximo não passa.

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  7. [desculpem o tom altamente destoante e PEGAJOSO do meu post, eu estou muito feliz de ter voltado e lido vcs aqui]

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    1. Destoante é tudo que o seu comentário não foi, Arbo!

      Black Mirror já me foi recomendado mais de uma vez, e agora fiquei definitivamente curioso. Assim que eu terminar de ver Twilight Zone (sim, aquele mesmo, em preto e branco... ah, que invenção, a internet!), vou ver se acordo para o século 21 e baixo esse daí.

      E que história é essa de fazer pouco casos dos traços do Charlles? Nunca viu como ele é bonita?: https://www.blogger.com/profile/12363567899344033584

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    2. retiro o q eu disse
      black mirror só tem o defeito de ser curtíssima temporada. e não fique com a impressão mais ou menos do 1º cap., os outros são melhores, penso eu.

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    3. Hahahaha. Ninguém falava nada da minha beleza quando a foto era do Dickens.

      Rapaz, lendo esses comentários todos, articuladíssimos e inteligentes até falar chega, me fez lembrar de um poema do Ezra Pound em que ele diz "mas que gente letrada da porra!".

      Isso de ser um post em que eu chamo para conversar o Arbo acertou na mosca. Vejo que a audiência do blog é consideravelmente alta, mas em meus posts autorais não sobra muita coisa para as pessoas comentarem: falar o quê? Muitas vezes o blog é egocêntrico: oferece-se os textos e pronto, e o resto é silêncio, como já dizia o outro. Sinto falta dessa conversa, sempre agradável, sempre intimista, terna, sincera e_ deixe eu ver o termo que o Arbo usou_, ah, sim, pegajoso.

      Esses comentários são demais, caras! Me provoca riso o Paulo perguntar se alguma vez eu fui influenciado por ele: não basta o arrombo nas contas com os livros propagandeados por todos aqui, o meu arremedo do que escuto aqui surge quando menos eu espero pelo cotidiano, e continuamente.

      Só uma coisa: numa conversa por email com meu amigo Marcos Messias, ele me consertou sem saber disso, ao afirmar que ele TENTAVA SER CRISTÃO, em resposta a uma afirmativa leviana minha de que EU SOU CRISTÃO. Não tem coisa mais difícil do que ser cristão, e eu também estou na tentativa. Não sou um ser humano exemplar em nada, e nem me preocupo em sê-lo. Me policio, essa é a minha política. Como o Fabrício mencionou o indefinível Whitman, é dele um dos mais verdadeiros versos que li:"o corvo, a serpente e o porco não faltaram em mim". E como me desespera ver que ainda habitam.

      Arbo, só não vale saírem de debaixo se eu fizer um mosh (risos).

      Muitas vezes esse ambiente aqui é muito aquecedor.

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    4. só pra não parecer q a referência ao bolsonaro não foi entendida, tu é mais querido q ele ;)

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  8. "mas que gente letrada da porra!" (risos) Esse espaço é sensacional, Charlles. Sem duvida é um lugar aquecedor...

    É preciso que se diga: Bendito dia que ele virou realidade!

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  9. Leia Maria Valtorta, se possível em ingles. N precisa publicar este.

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