domingo, 8 de fevereiro de 2015

Um insulto a Leonardo Padura



Que a wikipédia é um propagador de mentiras e sérios erros de informação é o tipo de conhecimento que se tornou um clichê, e como todo clichê se beneficia do estado anestésico em que não se analisa sua verdade prática. Ontem, pesquisando sobre as possibilidades de adquirir os excertos não traduzidos no Brasil de O homem sem qualidades, em inglês e espanhol, me deparei com a página da wikipédia referente a esse romance do Musil. Por mais que não deveria ficar surpreso, confesso que vi pela primeira vez o que existe no fundo da tautologia aceita inercialmente mas não analisada sobre a estupidez desse site. Todas as informações sobre o livro estão erradas, fruto de pessoas que não o leram ou de uma terrível tradução. Cito apenas dois exemplos colossais:

- "A falta de qualquer profundidade e a flexibilidade como guia à vida (de Ulrich, o personagem principal) são suas principais características." Diz a wikipédia. Digo eu: pois se Ulrich é um dos mais profundos e inteligentes personagens da literatura do século XX! E sua "flexibilidade" é justo o oposto, já que sua convicção inabalável em não se enquadrar aos esquemas sociais, políticos e intelectuais do mundo, é um sério posicionamento diante a vida.

- "e a esposa neurótica de seu amigo Walter, Clarisse, cuja recusa em ter uma existência comum leva Walter à insanidade. " Diz a wikipédia. Digo eu: um dos aspectos mais difundidos desse romance é o progressivo enlouquecimento de Clarisse; um amigo me mostrou textos de uma socióloga brasileira_ que não recordo o nome_ que fala sobre Clarisse, e há um ensaio em Alfabetos em que Magris cita a loucura de Clarisse. Quem fica louco no livro é Clarisse, não Walter.

Me assombra quando vejo escritores como Michel Houellebecq agradecendo a wikipédia por ser uma das fontes de pesquisa de seu livro O mapa e o território (e não é ironia da parte dele), e quando vejo trabalhos acadêmicos citando a wikipédia em suas bibliografias. Nem falo dos diversos sites, em diversos graus de sofisticação cultural, que usam links em seus textos que remetem a páginas dessa grande enciclopédia virtual dos tolos, esse grande exercício de epicurismo da ralé.

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Não vi ninguém falando sobre isso, e tentei passar batido. Mas não dá, lá vai. Fiquei muito incomodado com a tolice que a Boitempo fez em sua edição de O homem que amava os cachorros. Não dá para não sentir a obtusa hipocrisia da Boitempo, sua gritante estupidez e brutal falta de respeito pelo enorme sofrimento do livro, durante os tantos dias que se leva para ler um livro de quase 600 páginas. Cada vez que apoiava o volume para retornar à leitura, o desassossego voltava. O livro físico é uma apologia a Trótski e a Lenin, em oposição grotesca ao que o grande livro de Leonardo Padura representa em mostrar quantas vidas, quantas histórias pessoais, foram extirpadas graças a Trótski e a Lenin. O livro que empacota a terrível história contada é uma franca traição a ela. Não sei os tramites que levaram à publicação de O homem que amava os cachorros pela Boitempo, já que a editora que publicou outros livros de Padura é a Companhia das Letras. Foi erro de visão da Companhia em dispensar de seu catálogo o melhor livro do autor e um best-seller mundial? Foi uma jogada inconscientemente inteligente da Boitempo ao ver que o tema do romance se encaixava em sua visão esquerdista anacrônica de fazer certa apologia aos heróis de 1917? Digo "inconscientemente inteligente" porque a estratégia de edição usada é, como já disse, uma contradição total ao conteúdo do livro. Padura fala do sofrimento do narrador do romance, purgando uma vida miserável em Cuba, passando por privações perenes de alimentos, medicamentos e a mínima dignidade humana. O primeiro capítulo começa com o enterro da mulher do narrador, morta de um câncer ósseo originário da doença da falta de nutrientes básicos na dieta de toda uma vida passada na Cuba de Fidel, a mesma doença reportada nos prisioneiros de Auschwitz (diz o narrador). Padura não adoça a pílula ao falar dos outros personagens do livro: Tróstki é apontado como um assassino, responsável pelo primeiro massacre, o ponto zero dos crimes soviéticos, ao dizimar um motim de mineiros em Kronstadt ordenando matar mais de mil homens, mulheres e crianças; e Ramón Mercader, o assassino de Trótski, é mostrado com um homem esvaziado pelo partido e transformado em um tolo útil, um homem que no final da vida tem uma amarga consciência de ter vivido em função de nada. Padura, obviamente, enxerga os poderes intelectuais de Trótski e o fascínio que exercia, mas põe o ponto final em qualquer especulação de empatia afora do meramente funcional com a parte final da narrativa, em que um segundo narrador olha o manuscrito e se pergunta qual o propósito de gastar tanto tempo e paciência com um franco e desapiedado assassino. Quem lê O homem que amava os cachorros tem que ter mais que um simples jogo de cintura para defender Cuba, para defender Trótski, para defender Lenin, para defender qualquer sistema de socialismo aplicado até hoje. Padura é a voz de um inimigo claro de tudo isso. Mas, frente a um conteúdo e um ódio tão comburente, o que faz a Boitempo? Panfleteia o volume com fotos de Tróstki jovem vestido com seu uniforme de comandante do Exército Vermelho, de Trótski ternamente com sua criação de coelhos (que no livro ele fala que são animais estúpidos), com Trótski em sua vida doméstica sentado junto à sua esposa; coloca na capa um Trótski simpático, com uma enxada nos ombros, à busca de seus cactos nas planícies do México. Chama um doutor de uma das faculdades brasileiras para, adivinhem o quê?, escrever um panegírico sobre Trótski como estudo introdutório. E, cúmulo dos cúmulos, inventa de colocar em uma folha final uma foto de Lenin abraçado a um gatinho, com os seguintes dizeres embaixo: "Publicado em dezembro de 2013, às vésperas dos 90 anos da morte do líder bolchevique V. I. Lenin (um homem que amava os gatos)." A edição da Boitempo é um desrespeito aos leitores inteligentes e um insulto a Leonardo Padura, que cada vez mais está certo em sua declaração de que gostaria, simplesmente, de ser o Paul Auster de Cuba.

10 comentários:

  1. O capitalismo é generoso, pois enriquece até aqueles que o difamam, né Boitempo?

    Wikipédia é a maior fonte de pesquisa dos universitários brasileiros, seguido por sites 'especializados', depois blogues e por fim as bibliotecas.

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  2. Por curiosidade fui olhar o catálogo da editora e me senti em 1917 na Rússia. Que coisa doentia essa ideologia.

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    1. E a orelha do livro é do Frei Betto.

      A Boitempo tem alguns excelentes livros, Rituais de sofrimento, os livros do Zizék, alguns outros estudos sérios e importantes feitos do ponto de vista de uma esquerda lúcida e crítica. Mas o trabalho que fizeram para esse Padura é tétrico.

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  3. Ué, é a Boitempo, o que deveríamos esperar além disso? Esquerda lúcida no Brasil? Poxa, Charlie, o esquerdista mais lúcido deste país foi e continua a ser chamado de direitista neoliberal entreguista etc., ainda mais após seu artigo publicado dias atrás.

    A Paz e Terra ficou menos nauseante após ser comprada pela Record.

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    1. Não falei que era do Brasil. Tem alguns bons títulos de autores estrangeiros. E um lançamento prometido do Zizek defendendo a importância do cristianismo hoje.

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    2. E o excepcional livro da Silvia Viana é um estudo frankfurtiano que prescinde de rotulos políticos.

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  4. Tudo verdade. E a tradução não é das melhores. Se tivessem, por exemplo, pegado o Ssó, seria muito melhor.

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  5. http://www.leparisien.fr/politique/departementales-un-parti-des-musulmans-se-presente-aux-elections-12-02-2015-4527545.php

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  6. Insulto a Padura!? - Li a sua crítica inteira para descobrir qual era o grande insulto ao escritor! Imaginei que a tradução, talvez, fosse tendenciosa, ou que haveria supressão de textos, etc. Aí, descubro, que na sua opinião, o insulto são as fotos ilustrativas. Insulto ao escritor comete você ao não citar que Padura também faz menção ao sentimento de culpa de Trotski pelos seus atos e pelo caminho ditatorial seguido pela revolução russa. Você gostaria que o livro fosse ilustrado com imagens de Liev Davidovitch cortando cabeças ou fuzilando camponeses? As fotos simplesmente mostram o homem Trotski, e nada mais. Na minha opinião sua crítica foi totalmente fora de propósito. Sem graça

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