Emmanuel Carrère está no calor sufocante da ilha grega de Leros, hospedado na casa de uma amiga. A amiga oferece o chuveiro para que ele tome um banho, mas ele recusa. Está há uns bons dias sem tomar banho, e sente um "prazer sombrio em marinar no meu suor nervoso e nas minhas roupas rançosas". Eles saem à noite para beber. Carrère toma incontáveis garrafas de vinho. Volta para a casa da amiga, dança com ela ao som da Polonaise "heróica" de Chopin, tocada por Vladimir Horowitz. Depois, ele e a amiga não fazem amor, o que ele não se lembra "graças a quem de nós dois esse erro foi evitado", o que fica a suspeita que para o sensualista exacerbado e dedicado cultor erótico que ele é, na certa a recusa foi da mulher. O que não é de se espantar, visto a sua roupa que há dias não troca, a sua cueca que há dias não troca. Essa cena é narrada em Ioga, depois de Carrère tratar dos jovens médio orientais refugiados num abrigo grego, numa tentativa desaforada de ser um escritor com preocupações sociais e senso histórico. É desconcertante para o leitor ver na recusa de Carrère em tomar banho o limite clínico real de sua capacidade em ser altruísta, em pensar fora de si, em realmente ser "um grande escritor". E o mais desconcertante é que o nojo que eu, pelo menos, senti, ao imaginar o odor que um corpo europeu masculino de sessenta anos despende privado da mínima higienização por dias, aumenta por saber que Carrère mesmo não percebeu isso ao escrever o texto. Ele não dá dicas morais ou metafóricas a serem retiradas dessa porquidão, ele escreve isso sem a mínima autocrítica, desmerecendo todo esforço anterior empregado na obra por ser uma pessoa melhor, menos egoísta.
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Cavalgada pela Masúria
"Cavalgada pela Masúria", um dos capítulos de "Minha infância na Prússia", entra fácil na minha lista de melhores contos. Trata-se de uma parte do diário da condessa Marion Dönhoff. Com uma prosa que lembra Hemingway, mas de forma superior_ sem nenhuma necessidade tão tipicamente masculina de dizer "olha como escrevo maravilhosamente bem"_, o texto narra uma viagem que a escritora, quando jovem, faz pelo interior rural da Alemanha, a cavalo, e acompanhada por uma amiga. É uma obra idílica, pastoral, cheia de sol, florestas e a densidade humana de povoados com camponeses laconicamente gentis. Só que o ano é 1941, e a presença da guerra é um incômodo generalizado. Marion cita os prisioneiros pelos campos de forma pictórica, um detalhe indispensável que se tem de colocar no quadro mas que teria sido muito bom se pudesse desconsiderá-lo. Só que a autora não é uma poeta, mas uma jornalista ativista, o que torna impossível qualquer grau voluntário de alienação. Ao mesmo tempo que fala da exuberante simplicidade daquela vida, em que nem sempre encontram estábulos para pernoitar os animais e uma só vez, depois de muitos dias, tem a chance de tomar um banho quente, perfaz pelas páginas o exército de jovens se arregimentando pelas estradas, as sopas de leite na mesa carente dos camponeses à noite e a desnutrição da onipresença da batata. É um texto que rescende uma dolorosa saudade, uma saudade de tudo, da paz, da harmonia, da modéstia. Como são belas as mulheres escritoras, em sua modéstia sábia, cientes de sua superioridade sobre seus pares masculinos; enquanto minha outra leitura, o Emmanuel Carrère, fala apenas "eu", "eu! eu! eu!", a "minha dor", o "meu desespero", a condessa quase não se coloca em cena, uma impessoalidade transparente para mostrar a história e a impermanência fruto da ganância do "eu". E quando essas reminiscências terminam, vem aquela lucidez que só a literatura mais elevada provoca, uma espécie de amplitude iletrada paradoxalmente feita pelas letras, uma fagulha de consciência universal que não é para menos que um outro escritor tenha conceituado como "esotérica". Sabemos que essa educada e serena senhora que escreve essas palavras é a mesma que fez parte de um complô fracassado para matar Hitler, foi presa e libertada, enquanto outros de seu grupo receberam a pena de morte. De forma que esse conto é auto-explicativo em última instância. É uma nostalgia por uma época e uma disposição de espírito que foram varridas pela história, mas não vinda de uma intelectual isenta, não vinda de alguém que se deleita ao som lisergiado por drogas pesadas do "eu", como é Carrère. Debaixo desse tom ameno dessa mulher de oitenta anos há a adaga escondida de quem lutou para salvar esse mundo da estupidez e da veneração por idiotas sanguinários. E é só uma ilusão achar que ela saiu de todo derrotada. A possibilidade de que seja lida por longos e longos anos atesta que sua força verdadeira está acima da violência, está na restituição da comunhão do entendimento. Como diz Sêneca, que pego de uma lembrança do Carrère em O Reino, os maus não vencem, os que praticam a injustiça não levam a melhor. É um engano se entregar a essa resignação derrotista. "Pensas que quero dizer: um ingrato será infeliz. Mas não falo no futuro: ele já é".
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Emmanuel Carrère
Emmanuel Carrère é ótimo. Mas quando fala o quanto é o fodão, com suas mulheres que transou, e com a grana que tem, que é rico e inteligentíssimo, a gente percebe o quanto a futilidade moderna impregnou a literatura. Não se vê isso, seria um absurdo inenarrável, nos russos pré-revolução, nem nos norte-americanos do século XX (nestes últimos eles não alardeavam seu classemediaaltismo, mas a usavam para a crítica profunda da perda da alma). Carrère faz como Seinfeld e outros alicerces da anedota elevada (porque, por mais que seja brilhante, o que ele escreve não passa disso): o culto da discriminação elegante, da condolência burguesa pelos desassistidos, desde que se mantenha sempre à vista o fato deles estarem por cima, com suas preocupações espirituais cosméticas e suas angústias metafísicas de vitrine. Mas há nisso uma grandeza. Não quero renegar o imenso deleite e aprendizado que um livro como O Reino me provocou. E o poder de Carrère está em reconhecer isso, de que ele é um escritor que atende à metamorfose do que hoje pode ser conceituado como "um grande escritor". Alguém que escreve algo que exorbita o cânone, que traz para o proscênio a tralha que antes era repudiada e hoje se adequa aos novos interesses de uma classe abastada de leitores: a auto ajuda refinada, temperada com filosofia e conhecimento social, o anseio pela redenção, pelo esclarecimento. Os russos o faziam se retirando para mosteiros, no exílio, ou de dentro de prisões, ou abraçando o campesinato; eles não, Carrère não. Carrère diz que não tem a amplitude moral de uma montanha, mas a mornidão dos que só tangenciam os grandes temas. Ele mesmo se define como "morno". Ele é uma "colina". Ele escreve em sua casa luxuosa na ilha de Patmos, a mesma onde o suposto evangelista escreveu o Apocalipse. É esse fetiche da coisa autêntica vendável que motiva Carrère, estar onde aconteceu o milagre, mas não se imiscuir nele. A aquisição do gostinho espiritual apenas, e não do Espírito. Sem sofrimento, tomando seu café com nome chique em um barzinho cool numa cidade de altíssimo custo de vida num lugar idílico na Europa. Mas ele é um escritor honesto e verdadeiro, não escondendo esses detalhes significativos de sua mornidão, de ser reflexo firmado no fetiche da sua impressão de profundidade. Seinfeld em um episódio pergunta ao George o que pode ter na América do Sul. Carrère, assim como todos os intelectuais franceses, deixa transparecer nitidamente seu prazer em ser europeu, intocável, em volta com suas marcas empresariais poderosas, suas grifes (em Ioga ele fala da maciez de seus sapatos finos), sua cultura restrita a seu direito de sangue. Em O reino ele abruptamente interrompe o tema do livro para falar sobre um vídeo pornô chamado "Brunette mourant de plaisir et jouissant deux fois", que ele achou pelo Google, e descreve a tristeza contemplativa da morena do título com todo o potencial de suas tintas superiormente reflexivas, pintando-a de maneira rembrandtiana, descrevendo sua entrega às duas explosões de orgasmos com a máxima sutileza insinuante à imolação interior dos primeiros cristãos, ou algo assim que ecoe elegantes dissociações perceptivas. Ele, Carrère, chega a mandar esse seu texto sobre o vídeo para sua esposa, pedindo que ela lhe traga mais informações sobre a morena. E a esposa dele, com o sorriso descolado da cônjuge culta, pergunta se ele entende as possibilidades terríveis que se escondem nesse vídeo, que pode muito bem ter sido postado de forma não autorizada por um ex-namorado vingativo, ou a própria mulher o publicou por uma situação de necessidade econômica, etc. E a única coisa que o morno Carrère escreve, em conclusão a essa aula sobre as torpes motivações políticas por detrás da mídia pornográfica, é como ele tem sorte em ter uma esposa assim. O que não impediu que Carrère fizesse a mesma coisa que o ex-namorado do vídeo, falando em seu livro Ioga sobre detalhes depreciativos não consentidos sobre seu casamento que levou essa sua ex-esposa a lhe processar. Mas essa cena não é um deslize autodepreciativo de Carrère, ele a descreve para, como Montagne (muito citado por ele), ressaltar que o assunto de seus livros é pura e simplesmente ele mesmo, com todos seus pecados, suas indiferenças, seus filistinismos, hipocrisia, carnalidade, preconceitos. Essa alfinetada gentil que sua esposa lhe dá para que ele se cientize um pouco ao menos sobre sua leviandade é um fato corrente de tantas outras partes em que a verdade lhe é mostrada por quem está de fora, dando pequenas marteladas em sua casca de proteção. Talvez toda obra de Carrère consista em suas respostas a essas marteladas. Seu amigo Hervé Clerc, como outro exemplo, é o homem espiritual, despojado, que vê a existência como uma luta da alma por sair das sombras e alcançar a consciência libertadora, enquanto ele mesmo se regala satisfeito de ser sua oposição, o homem feliz com sua riqueza, com suas bebedeiras diárias, sua sexualidade, sua agradecida limitação hedonista na carne. Carrère se descreve como uma repaginação moderna de Sêneca, esse filósofo best-seller mesmo em sua época que pregava o estoicismo da simplicidade mas que era um milionário banqueiro enfunado em seus palácios de prazer. E Carrère é ardiloso: ele conhece como ninguém seus leitores e o mercado do que sobrou do livro. Para uma geração de símiles globais dele, Carrère é uma amostra ainda bastante elevada do que a literatura vestigial pode oferecer.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Não intrometa!
Um dos efeitos da diminuição global da inteligência é essa ingenuidade vazia, algo satânica, dos vídeos feitos pela IA de velhinhos marinheiros salvando baleias árticas. É de um artificialismo tão flagrante que só uma percepção profundamente corrompida pelo sentimentalismo tolo e pela depravação mental julga verdadeiro. O animal cibernético adiposo em toda sua preguiça simula se encher de ternura por algo que não está só além do real como além do definhamento de sua sensibilidade. O próximo passo cotidiano é enxugar as lágrimas pelo salvamento do filhote da baleia e entrar no vídeo do sexo sadomasoquista, para calibrar as outras cordas de seus nervos viciados. E qualquer sinal de dissidência da opinião religiosamente corrente das redes sociais, o alarme é acionado: o que esse estúpido está criticando no facebook? o que esse esnobe arrogante está querendo reivindicar fora das regras? ou se adapte ao meme, à corrente de julgamentos da semana, à adoração ou ao cancelamento, ou caia fora. Ou faça o self do seu rabo, ou vá ser a estranha aberração que é na solidão. Não intrometa!
domingo, 8 de dezembro de 2024
Abrigo
Dos 17 até os trinta eu tinha só dois livros. Lord Jim, do Joseph Conrad, e O jogo da amarelinha, do Júlio Cortázar. Claro que eu lia como um louco, mas eu comprava, trocava, ou simplesmente me desfazia dos livros sem a menor consideração. Meu primeiro emprego era de veterinário em uma cooperativa, que eu exerci por cinco anos. Eu chegava exausto do campo à minúscula pensão na minúscula e esquecida cidade onde eu morava, tomava um banho, jantava, e me lançava à releitura infinita dos meus dois livros. Eu ainda hoje sei um capítulo de cor de Amarelinha, e trechos inteiros do Lord Jim. Tirei deste último o título da minha monografia de história, "As encarnações imprevistas". Daí conheci a Dani, e ela me deu os dois primeiros livros que eu iria guardar pra sempre, além das eternidades condensadas pelo outro argentino e pelo polaco que eu levava no alforje, os volumes três e quatro da obra completa de Borges. Nesse astucioso presente, veio decretado meu duplo destino, que era o de ter propósito para constituir um lar e formar uma biblioteca. (Lembro do espanto absoluto na cara da senhora minha vizinha, quando viu aquela moça e o bebê de colo_ a Dani e a Júlia_ entrando pela primeira vez na casa onde ela julgava morar apenas o triste psicopata solitário e inofensivo com o seu cão.) Daí a Dani me disse, quando eu lia a dedicatória em completo maravilhamento que ela escreveu naquele presente perfeito que em trinta anos ninguém jamais havia tido a sensibilidade ou o interesse em me dar: "Nós podemos reservar um dos quartos da casa e começarmos a montar uma biblioteca, o que você acha?". E hoje aqui estão, os meus primeiros livros de homem assentado, enquanto as crianças correm pela casa, elas mesmas se regalando por horas com a biblioteca. E a Dani, como sempre, com sua humildade política, por detrás de tudo.
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Rimbaud
Sempre tive um forte preconceito contra Rimbaud. O que um adolescente pode escrever de legítimo? Desde então meu desprezo total por ele. Afora o magistral romance do Le Clézio, Quarentena, em que ele é um dos personagens, eu não tinha nenhum rastro dele na minha biblioteca. Então me chegou esse volume de suas obras completas, por obrigação contratual, e, por puro enfado, peguei-o para dar uma olhada essa manhã e comecei a ler Uma estação no inferno. Li todas as 40 páginas com os olhos cheios de lágrimas e o espírito cheio da euforia contestatória diante uma entidade antiga, que nada tinha de adolescente e nem tampouco de francesismos. Então isso é Rimbaud? Então esse "negro", esse "filho de Cam", como ele se define em uma das passagens, esse "ser de uma raça inferior", como ele de novo se mostra criticamente agregado aos excluídos da Terra, é o Rimbaud que por meio século eu ignorei? Essa alma transbordante de ternura, ódio celestial e amor humano!
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
O gene, uma história íntima, de Siddhartha Mukherjee
Toda a humanidade veio de uma tribo de sete mil negros que morava na costa oeste africana há 200 mil anos.
Nós só pudemos nascer e estarmos vivos graças à mitocôndria, uma organela que habita as células e é responsável por minuciosas funções indispensáveis, e que só existe na embriogênese pelo óvulo, nunca pelo espermatozóide. Ela é trasmitida única e exclusivamente pela mulher.
A fibrose cística, uma doença devastadora e fatal, é uma herança genética restrita a europeus e seus descendentes. Ela só se manifesta como doença se pai e mãe forem possuidores do gene correspondente, caso contrário, foi a sua presença recessiva no dna que fez com que milhares, ou talvez milhões de pessoas, sobrevivessem à peste negra. Seu comando genético determina a retenção de sais no corpo, o que impediu que o sintoma de diarréia intensa advindo com a peste matasse seus portadores.
Sendo simploriamente conciso nas conclusões suscitadas por esses dados, todos nós somos negros, somos femininos, e temos milhares de doenças escondidas em nosso genoma que tanto podem ser nosso holocausto quanto nossa salvação. E mesmo assim, estão disseminados pela sociedade, na história, nas religiões, no comportamento, na política e no pensamento midiático o preconceito contra negros e outras discriminações "raciais" estúpidas, o ódio contra as mulheres e a eugenia contra os fragilizados e "diferentes".
Por isso eu disse para a Júlia, quando nós iniciamos a leitura do soberbo O gene, do Siddhartha Mukherjee, de onde vem os dados acima, que este é um dos livros verdadeiramente religiosos. Se houver um propósito maior e mais sublime na nossa espécie tão combalida pelo ódio e pela ignorância, está aqui, na simplicidade chocante do nosso genoma (que é quase idêntico ao do verme), nessas zonas de silêncio e nesses espaços vagos na catedral genética. Tudo o mais é a procura e a ânsia por saírmos do atraso milenar, do estarrecimento da existência que ainda compreendemos de modo tão errado. Mukherjee está repetindo o que vem sendo dito desde os profetas judaicos, desde Platão, Kafka, Einstein, etc.
Solenoide, de Mircea Castarescu
quinta-feira, 19 de setembro de 2024
O salto
Anselm voltou para sua mesa. Sentou-se, olhando a paisagem dos prédios de frente. Queria restaurar os movimentos alarmistas com que iniciara o dia anterior, mas seu corpo não achava justificativas. Janete estava sentada na mesa ao lado e olhava pela janela, os olhos que sempre se pareciam com dois botões de uma flor exótica postados atrás dos óculos grandes para algum detalhe nos encaixes quadrangulares além. Anselm olhou caçando algo entusiasmante, sabendo que se houvesse qual seria a reação dela? Se houvesse um homem nu se enxugando displicentemente, o que o espírito feminista daquela renegada dos padrões da sociedade faria? Por um momento ele julgou que sua predição iria por uma sorte maluca se confirmar, pois resolvendo-se no ajuste de contração de sua pupila os reflexos de luz em uma janela se abriram para um rapaz parado olhando para baixo, no prédio de frente. Anselm se encolheu na cadeira, aceitando que aquele detalhe pueril viera para lhe manter por mais uns minutos ali, longe dos distúrbios sensoriais de Esvertina. Pos-se a olhar o homem, cruzando os braços e tossindo, como se estivesse em um cinema. Por uma degradação ligeira, que ainda mantinha o rapaz em foco, ele confirmava que Janete se ocupava com afinco com a cena.
O rapaz, olhando bem, tinha traços médio
orientais. Tinha uma barba muito incipiente, que se via mesmo daquela distância tracejando o alto de sua boca e o queixo com a falta de estilo de certas
juventudes. Anselm pensou: não vai fazer diferença ele ter barba, com um rosto
tão delicado e moreno. A biologia mesmo sem ser seu propósito acerta na
estética. Os cabelos, pelo contrário, eram fartos e muito negros, como é típico
às pessoas como ele. Estava tão concentrado em algum pensamento que parecia não
ver nada a seu redor. Na certa, uma janela tão grande, recortada no centro de
uma parede de outras janelas do mesmo porte, não poderia lhe passar
despercebido. E dois rostos incomumente embrenhados na intromissão de repará-lo
ao máximo seria mais que silhuetas em uma perspectiva reta que se finalizava
onde o rapaz estava. Contudo, que distração sublime. Ou ele se negava a
participar de um conluio anônimo que o tinha como alvo, que a perspicácia de
ondas curtas das interações humanas já devia ter-lhe aventado que estava sendo
visto, ou estava mesmo em uma estágio de alheamento tão profundo que se alguém
pusesse a tocar um trompete a seu lado não interferiria. Anselm pensou que
excelente oportunidade perdida para um fotógrafo registrar aquele enquadro de
dor oriental segregada nas mediocrizações saudáveis da arquitetura proletária.
Até o jogo de sombra e luz vinha de graça, perpetrada com generosa distração
pela natureza daquelas paredes descascadas e aquela fremulação do ar que por
mais que fosse flagrada pelo olhar estava sempre num passado de sépia,
saudosista, de amplas sugestões esotéricas inapreensíveis. E aquele semblante
de mil e uma noites, sherazadesco, transliterado para uma masculinidade
delicada, não poderia ser mais condizentemente sensitivo com sua erraticidade e
inadequação à crueza esbravejante daquilo tudo, daquelas janelas pobres,
daqueles pombos canibais, daqueles dois rostos do outro lado, que deveriam
parecer-lhe, se ele tivesse a mesquinharia sem sentido de se importar em
vê-los, com os enfatuados rostos dos mortos em vida seguindo como todo mundo
seu destino cegamente até o desaparecimento. Mas no jornal não havia
fotógrafos, não profissionais, os registros do cotidiano sendo feitos para
chamar a atenção nas bancas para as manchetes com os celulares comuns. Não
cabia o uso de um instrumento tão estúpido para emplastrar aquele flagrante da
eternidade, aquele momento desterrado do infinito, para parafrasear uma acertada
expressão de Baudelaire.
Então aconteceu. Anselm pensou por tanto
tempo como iria descrever a abrupta e grosseiramente efêmera cena na coluna no
jornal, e teve que se exigir um esforço sobrehumano para fugir à tautologia
vazia dessa frase “então aconteceu”. Mas a frase retornava com todo seu poder
de concisão em instigar o iminente anúncio de que algo realmente acontecera, porque é nisso, nessa
pressuposição absurda que se ampara o significado da frase, de que algo novo
possa acontecer na sensaboria previsível da existência, algo que vá abalar
mesmo que nas mínimas instâncias essa coesão instransponível, essa rigidez
dentro da qual o número medido de alternativas já está ajustado, mesmo que
bilhões de combinações sejam possíveis, mas serão sempre só as que o cosmos
estudou colocar no início dos tempos. Pois o que poderia acontecer? Ou o rapaz
voltava para o interior daquela saleta incognoscível para cumprir os
itinerários de seu dia, ou faria o que então ele fez. Diante os olhares cada
vez mais aturdidos de Anselm e Janete, o rapaz saiu de sua imobilidade pictórica,
de seu congelado instante eterno rembrandtiano. A mágica opalescente se
quebrou, aqueles olhos enfunados no interior de si mesmo acordaram, não havia
outra palavras menos fiel mas ao mesmo tempo mais cabível à situação. Se ele
estava em um reino interior de sensações solipsistas, quem sabe trazidas da
infância (que não muito o separava no tempo, talvez uns dez anos, visto ele ser
bem jovem), sentado em inadmoestável solidão dentro da caverna onde dormia o
urso hibernante de sua consciência, não seria acordar a expressão correta. Pois onde melhor se empregaria a
vigília senão para essas idiossincrasias valiosas, para esses mundões seculares
da personalidade contra a qual o sujo olhar alheio não tinha poder? Mas ao
mesmo tempo, a atitude inédita daqueles olhos de uma renascença orientalista (e
o historiador Anselm sabia que não era de todo um oximoro) terem retornado às
evocações empobrecidas do seu entorno só seria descrito como um acordar, o que
trouxe os aspectos pueris do rapaz. Dele evanesceu-se a postura sonhadora e
viera um acúmulo de meneios empobrecidos de significados. Se via o interesse
mais imediatista dele em abrir a janela, se fazer livre de uma vez daquela
missão a qual se impunha. Seus olhos se reviravam ora para o encaixe da janela na
linha cinética de baixo, empurrando a janela o mais fundo possível para que ela
desse o devido espaço para o abismo de fora. Depois, com uma segurança técnica
impressionante, como se o que o impulsionasse não fossem os resultados de
sinapses musculares e o sistema ósseo de guindaste biológico, mas fios
invisíveis que o erguiam do alto, com total convencimento por parte dos dois
expectadores do outro lado de que nenhuma lei física estava sendo
desrespeitada, ele subiu no peitoril da janela com um pulo conciso. Justiça
seja feita em dizer que por um microssegundo seu corpo tombou para trás, para o
interior do cômodo, mas ele se ajeitou com a mesma instantânea quantidade de
tempo, ganhando enfim uma imobilidade com o corpo dobrado no quadrângulo que
bem poderia compor um outro registro pictórico. (Dessa vez com os componentes
de atenção já em suave início de alerta, piscando diante a cobrança racional do
porquê um rapaz como ele estaria dobrado dentro de uma caixa aberta como se
fosse um homem de borracha de um circo em duas dimensões.)
Nisso, Janete deu um pulo e correu para a
janela. Anselm já se punha a fazer o mesmo, movido mais pelo instinto de
repetição diante uma abrupta quebra de imobilidade, quando, a meio caminho de
se erguer, olhando fixamente a cena, o rapaz se lançou. Anselm iria repassar
aquele momento durante meses, iria se silenciar e guardá-lo no núcleo de sua
análise velada a título de crer que um enigma de tal porte só poderia se
abrandar com aplicada seriedade introvertida, e depois iria descrevê-la por
escrito. Lembraria, enquanto durasse sua vida, que acontecimentos assim tendem
a ter uma simplicidade impossível, uma superfície diante a qual se tem que
recuar para que os tentáculos do que nunca se conseguirá dizer puxem junto para
a destruição. São atos que foram feitos na forja universal para ocorrerem
sozinhos, sem testemunhas, e talvez sendo recorrentemente vistos por
observadores intrometidos é que confere ao suicídio um tom sagrado. Pois como
Anselm poderia explicar, por exemplo, o segundo inicial da queda, em que,
estando o rapaz ao mesmo tempo ainda seguro no equilíbrio do limiar da janela, não o estava seguro, mas já em um
estágio flutuante, naquela fugacidade enlouquecedoramente inepta de ser
apreendida pela realidade em que parece que a gravidade se põe a ponderar:
“Puxo-o, conforme faço por bilhões de anos, ou o poupo, o recolocando em
segurança de volta?” Quem sabe o milagre existiria se não fossem Janete e ele
estarem o presenciando, dando assim total liberdade para a potestade-caos
refazer aquele lapso de vetores eventuais de modo que só sobraria o rapaz com
sua mente para dobrá-la e fazê-la esquecer rapidamente que fora poupado, que
todo o universo deteve por um momento só leis inexoráveis por meras questões
morais que envolviam seu sofrimento insignificante. Se havia tanto poder nas
mãos desse deus incriado, por que ele não poderia infligir alguma regras muito
de vez em quando, para provar a si mesmo o gosto de sua onipotência? E o rapaz,
nesse fugaz instante, olhou para Anselm. Foi um olhar direto, em que Anselm
pode sentir com veemente força os vestígios da ternura que havia dentro do
rapaz. E ele sorrira, era um sorriso. Claro que uma contração fagulhar, mas
prenhe de um significado que não era outra coisa que uma disposição sincera
para a possível alegria que lhe esperava. Ele subscrevia o momento de dor com o
contato de toneladas da calçada, que as pesquisas que na certa havia feito
mostrava que não teria um sofrimento significativo, e nutria a expectativa de
um deleite final_ ou um deleite aduaneiro, da fronteira instalada na entrada de
um país desconhecido.
Janete dera um grito, tampando a boca logo
em seguida. Anselm emitira um “Meu deus do céu” e recuara. Janete olhou pela
pontinha dos pés lá embaixo, mas Anselm saíra para a cozinha, completamente
abalado. Só então notara que estavam apenas os dois, Políbio e Afrânio haviam
saído. Na mesma hora, uma buzina se fez ouvir disparada na rua, sem cessar.
Talvez o incidente vitimara um carro, era uma nova gama de possibilidades que o
leque fractal da vida com sua calma força imponderável produzia para contornar
aquele elemento desistente e seguir adiante, como um regato cobrindo uma pedra
atirada por alguém. Não se poderia interromper o fluxo por nada, e era por isso
que não haviam milagres. Uma lei violada despenderia uma quantidade monstruosa
de energia, e talvez já houvesse sido testado antes, há muitos anos, com
resultados terríveis. Sons de vozes de todos os tipos e em todas as modulações
subiam até os dois. No limiar havia como que por congruência crescente as vozes
de mulheres que teciam calmos mas indistintos comentários, cheios de uma quase
musical interjeição, e sons de crianças. Talvez fosse a alucinação técnica que
todo acontecimento provoca, arregimentando as paletas da orquestra para o scherzo
atonal. Janete chorava, e se voltou para ele, os óculos tortos por sobre o
nariz embaçados.
_ Anselm! Anselm.
Anselm piscava, sua mente disparava
pirotécnicos exames eruditos sem significado algum. Era a forma de sua mente se
proteger dentro dos arquétipos sonoros de uma compreensão que ela mesma sabia
terem apenas fins terapêuticos. Ele foi até Janete, abriu os braços e ela
entrou dentro deles, encolhida.
O último componente daquele cenário em
proporções reais enfim apareceu: a sirene do carro de polícia nitidamente
exigindo passagem com uma quase inapreensível delicadeza diante o que se
reconhecia não ter o caráter emergencial de um crime comum.
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
A Vítima
Era bem provável que aquela nuvem
gigante que cobria a cidade viera do Polo Sul. O clima andava tão louco há
tanto tempo que não se precisava ver a meteorologia para supor isso. Era fácil
cogitar que também havia algo além, que dava uma atmosfera espiritual às
pessoas andando atarefadas sob as sombras e o frio. Por um momento seus dramas
megalomaníacos, as intuições de antigas memórias tribais, eram postos em
suspensão para que elas observassem aquele manto cinza metálico, inflado de umidade
elétrica, tomando toda a amplidão do céu.
Foi em uma noite dessas que Anselm Dulabonde
desceu do ônibus na avenida próxima duas quadras ao prédio onde sua
irmã morava. Havia apertado o botão para avisar o motorista, mas este pareceu
querer avançar além do ponto. Como em uma sincronia urbana, ele apertou
novamente com nova ênfase ao mesmo tempo que o motorista moveu o volante com
impetuosidade e freou o veículo a poucos centímetros da calçada. Um movimento
de outros freios e buzinas rascantes atrás denotou a falta de cuidados, o que
Anselm acabou sendo receptor da ira do homem, representada pela violência com
que a porta foi aberta.
Pulando para fora, com a estimativa de
acidentes provocados nessas circunstâncias na cabeça, Anselm não procurou
conferir o que o sujeito lhe gritara. Nada lhe desgostava mais do que esses
embates urbanos que estavam mais para clichês físicos. Movimentos de
acondicionamento dos dentes das velhas engrenagens sociais. Talvez o homem lhe
dirigisse apenas um olhar compungido se ele o enfrentasse, raramente ia além.
As pessoas tinham muito medo de se enquadrarem às estatísticas. Uma educação
vestigial à prova de tudo as mantinham longe das colunas policiais dos jornais.
Anselm sabia disso pois trabalhava de dia em um jornal de imprensa marrom, como
se dizia nos bons tempos. E era o responsável por dourar a pílula dos
incidentes de crimes e morticínios da cidade. Tinha um “infiltrado” na polícia,
que lhe passava com a voz ensonada o material colhido nos boletins de
ocorrência. Quando Anselm entrava no serviço, às cinco da madrugada, o
informante se preparava para sair. Quanto mais sua voz era extenuada, mais
tinha coisas picantes para contar. Maridos bêbados, delinquentes juvenis,
arrombadores de panificadoras. Uma vez ou outra um tema real, que ele tinha que
digitalizar às pressas antes que a imprensa cibernética dos grandes portais de
notícias as lançassem.
Eram sete e meia da manhã e o movimento de
pedestres era moroso ainda. A cidade estava representada por homens de
semblantes sorumbáticos carregando garrafas térmicas e mulheres magras de
uniforme. Só Anselm, em sua roupa de flaneur, com a gola levantada como fazia
nos tempos da universidade, era um ponto desviante da curva. Não recebia
olhares averiguadores. Havia um exército de gente como ele, subempregados sem
definição certa, com sinais inarredáveis de uma juventude tardia.
Misturando-se a elas ele desceu pela rua que
levava ao apartamento de sua irmã. Ela lhe telefonara às seis e meia. Disse que
o filho dela, Marcus, de seis meses, ardia em febre. Não havia muito o que
fazer do que deixar tudo em suspenso e ir socorrê-la. Não havia ninguém menos
preparado para isso do que Anselm, mas o fato é que não havia mais ninguém... O
pai do garoto era o que se definia nos anais jurídicos como pai ausente.
_ E onde está Edgar, Tina?_ ele perguntou à
irmã pelo telefone.
_ Ele está em uma tarefa do escritório na
cidade de L. Por favor, venha rápido.
Tina, Esvertina, sua irmã, sempre poupava
Edgar. Ela tinha muita pena que o marido fosse o único provedor da casa, e o
escritório de advocacia onde trabalhava o sugasse tanto. Era parte do arranjo
que ela teve que aceitar para não virar uma solteirona. Tinha sido uma mulher
linda até os trinta anos, e aos trinta e sete a hidrostática corporal era uma
realidade incontornável. Fizera três namorados arrastarem a seus pés, mas agora
tudo o que lhe restara para uma promessa conjugal moderada era Edgar, e ela não
podia mais se dar ao luxo. Anselm se distraía imaginando a cara de desforra dos
namorados desprezados ao saber que ela se rendera a um sujeito divorciado, com
dois filhos. Ele nunca tinha suportado a prepotência aristocrática de sua irmã,
mas aquele terror da solidão clássica o deixava compungido. Era como ver um ovo
Fabergé consertado com peças de segunda mão por um artífice farsante. Ser um
estepe insuficiente era o máximo que podia fazer pela irmã para atenuar a ação
daquela sorte inadequada, francamente injusta.
_ Por que você não levou Marcus para o
hospital, Tina?
_ Eu o estava medicando com dipirona e
amoxilina, que foi o que o médico passou a última vez. É tudo muito difícil,
Anselm. Estamos em um regime de contenção de despesas e sair à noite com o
Marcus seria um custo que não tenho como arcar.
Ele pensou em quanto teria no bolso e não lhe
pareceu ser muito. Aqueles choques entre sua vivência com a da sua irmã lhe
entregava aspectos desconcertantes de seu pouco caso com o dinheiro. Sacolejou
algumas moedas que pelo peso indicavam dar pelo valor de uma passagem de ônibus
e pegou seu casaco. Miguel, seu chefe, o olhou aturdido. Estava com a cara
inchada, demonstrando que havia passado a noite em claro em seu artigo sobre as
formas globais de dominação. Abaixo do olho esquerdo uma mancha líquida, que
parecia se segurar imobilizada para não escorrer.
_ É a Tina. Volto
depois do almoço.
Ele não disse nada.
Quando colocou sua pasta abaixo de sua mesa, ao lado da cesta de lixo, ouviu
ele conversando com Januário, o responsável pelas colunas sobre movimentos
emancipacionistas.
_ A falta de
compromisso está cada vez mais marcante. Para um jornal progressista isso é uma
falta de fé tremenda.
Anselm fingiu que não tinha ouvido, embora a
acústica da pequena sala ventilada amarelecida pelo sol recortado da manhã
espalhasse o som de maneira nítida. No corredor ele fechou a porta com o ar
absorto, pensando nessas intermediações menores da realidade. Era quase um
trabalho voluntário, que só lhe dava para pagar o aluguel e as despesas com a
luz. Em plena época que estavam, falar sobre antigas ideias abortadas mantinha
a mente afiada. Ele sabia que Miguel estava certo, a baixa expectativa de que
aquele jornal aumentasse sua circularidade fazia a permanência ali um ato de
fé. Mas o que ele poderia fazer diante um inconveniente de saúde? Ele se
condoía de que um bom homem pensasse assim, e mesmo sabendo que havia muito de
mimo nisso ele descera as escadas com pesar.
Do lado de fora ele estacou de súbito diante
aquele céu. Vagas de nuvens de chumbo. Tinha algo de segunda guerra mundial, de
operações militares sobre cidades devastadas. E o frio corria num movimento
contínuo cuja aplicação fanatizada tentava entrar pelas abas dos casacos dos
transeuntes. Ele teve a impressão de que flagrava uma ação orquestrada por
alguma força maléfica, como uma organização sideral de ladrões de carteira.
Faria o possível para voltar antes do almoço,
talvez convencendo Tina a chamar uma ambulância. Tinha que ver com cuidado a
situação do menino, que justificasse uma ambulância. Pensando assim, parecia um
milagre preservado que numa cidade tão grande houvesse possibilidade de que um
assistencialismo hospitalar tomasse conta de uma simples criança. Viver longe
da região visível fazia Anselm pensar na grandiosidade que eram os poderes da
instituição social. Se ele ficasse doente, o que raramente acontecia, ele nunca
cogitava no recolhimento dessa ortodoxia. Da última vez que teve um ataque estomacal,
ingeriu dois comprimidos e se encolheu em posição fetal, até que a fagulha
dourada de dor sumisse. Talvez essa ideia tomasse conta de Tina, e ela achasse
que um aparato não poderia ser tão intrincado a ponto de seu filho merecer
atenção.
O prédio de Tina tinha cinco andares e ela
morava no terceiro. Era um bairro popular, de renda média. Usualmente acolhidos
por casais jovens que acreditavam ainda que tudo era positivamente transitável.
Tinham uma autocritica estética de não colocarem roupas em varais e serem
adeptos do silêncio. As forças se estabeleciam na capacidade de contratarem
serviços de limpeza doméstica, o que muito servia para darem uma dimensão das
coisas. Anselm achava que o advento da revolução virtual havia trazido um
grande alívio para aqueles casais, pois as distrações ficaram mais baratas do
que irem a museus, ou jantarem fora, ou em parques com as crianças. E enquanto
tivessem aquele pequeno arremedo de feudo particular com seus serviçais pagos
por hora, o próximo passo necessário ficaria sempre protelado. Mas era
interessante, pois nunca ficara sabendo de permanências exageradas nesse
estágio. O que ele pensava que só poderia se resolver mesmo pela ascensão. Era
um dos efeitos da persistência intuitiva ao senso comum que desbaratava todas
as críticas filosóficas sofisticadas.
A porta estava entreaberta, deixando ver o
amarelo do corredor estreito das escadas. A tranca estava quebrada, e Anselm
olhou para o painel de chamada afixado à parede. Leu o nome do terceiro andar,
Edgar, o que o fez soltar um muxoxo de ironia. A placa de metal estava
enferrujada, o que denotava ter décadas de idade. Subiu os degraus procurando
não se segurar nas paredes. Do alto veio um eco vazio de significados, como se
fosse um ar represado que ele liberara com a descompressão da porta. Uma luz
automática acendia a cada andar. No terceiro, ele empurrou a porta de metal
pesada. Entrando no corredor que dava acesso aos quatro apartamentos, ele se
posicionou diante a porta da irmã. Apurou os ouvidos, na expectativa de que os
dramas espirituais condensados lá dentro fossem ouvidos, talvez algum sinal de
melhora. Mas o silêncio era total, como se fosse uma das ilustrações típicas
dos romances russos clássicos. Tocou a campainha. Ela funcionou, com uma
limpeza que mudava por um curto segundo as apreensões metais.
O filho mais velho de Edgar abriu a porta.
Anselm nunca sabia qual era o nome dele, se ele era o Victor ou o Tomas. Eram
uma espécie peculiar de gêmeos de idades diferentes para ele, sendo muito
parecidos. Apenas que o mais velho não tinha o vestígio de doçura infantil do
outro, tendo as feições irritantemente pragmáticas para um menino de 12 anos.
Era como se ele já estivesse se acondicionando para sua vida ativa, como se
antecipasse a cara do burocrata que estava destinado a ser. Anselm procurava
não nutrir nenhuma tipo de sentimento crítico em relação a ele. Não era seu
problema.
_ Posso entrar..._ ele perguntou, se
lembrando de súbito que ele se chamava Victor_ ...Victor?
_ O, é você! Entre.
Ele deu um passo
cauteloso, olhando para o interior escuro. Fechou a porta atrás de si, pensando
se não era pouco preventivo não girar a chave, e ficou parado. O menino o olhou
de volta, com um ar interrogativo, mas não disse nada. Estava entranhado o
suficiente no ambiente para achar todas as formas de desconexão lógicas
corriqueiras.
_ Chame sua mãe, Victor._ ele disse.
Falara baixinho sem entender muito bem por
quê. O apartamento era tão minúsculo que mesmo esse tom deveria ter sido
apreendido por sua irmã lá de dentro. Só poderia estar no quarto, com Marcos. O
menino entrou pelo corredor escuro e tudo voltou ao silêncio tirânico e
aflitivo que aliás não chegara a ser interrompido.
Havia uma poltrona velha ao lado da janela,
e um saco de imitação de couro que ele não sabia o nome, mas que servia para se
sentar. Em uma cesta no chão, haviam muitas revistas sobre assuntos triviais.
Os assuntos triviais que o horizonte espiritual sempre limitado de sua irmã
comportava. Moda, conselhos adolescentes, a vida das subcelebridades da
internet e da música. Olhando por aquela perspectiva da doença, eram temas francamente
encerrados, afasicamente obsoletos. Provocava certo constrangimento nele por a
irmã conservar aquelas coisas. Qual o propósito? Apostava em algum tipo de
esperança nelas? Como se algo pudesse ser reavido através daquelas folhas
amarfanhadas e sebosas?
Esvertina apareceu. Viera a passo comedido,
como se devesse aquela mínima polidez a ele. No meio do corredor ela tropeçou
em algum objeto que estava no chão, talvez um brinquedo de Marcos.
_ Oi, Anselm. A febre
dele passou e ele está finalmente dormindo. Eu dei um banho em água fria nele,
na bacia de metal.
Ela tinha marcas profundas no rosto. Seu cabelo
era um misto de cores baças das tantas tinturas que se sobrepunham, um filete
ralo dele caindo-lhe para a frente por sobre a testa. Usava uma camisola branca
encardida, e seus pés grandes e protuberantes mal haviam se ajustados a uma
chinela. Estava dormindo também, o que deveria ter conseguido em uma batalha
conjunta com o menino. Vai ver aquele comedimento era para disfarçar sua má
escolha precipitada de trazê-lo ali justo quando enfim poderia descansar. A
comunicação entre os dois sempre tivera esse mérito irritante de se fazer de
forma imediata, sem subterfúgios, deixando os dois perdidos na impossibilidade
seguinte de perpetrarem outra palavra. Seria impossível para os dois desfazerem
o engano, com ele se retirando do apartamento. Iria se desenvolver para um
problema inóspito e imprevisível, e por isso eles sabiam que teriam que
tolerar.
_ Que bom! Lembro da mamãe me dando banhos
gelados quando eu tinha febre. Uma vez ela me estendeu na banheira e eu achava
espetacular não sentir o frio dos tantos cubos de gelo que ela havia colocado
sobre mim _ ele disse.
Ela saiu de sua imobilidade e foi até uma
cômoda pequena ao lado da estante onde estava a tv e alguns livros de
autoajuda. Anselm imaginou que ela iria pegar um cigarro, mas se lembrou que
ela tinha dito ter parado de fumar já fazia dois anos. Mas a coreografia do
movimento era o mesmo e ele apostaria que se a abstinência não estivesse de
todo resolvida havia acendido alguns sinais na cabeça dela. Ela vasculhou em um
pequeno pote de cerâmica barato, que servia para guardar moedas e chaves, e
retirou uma nota de dez. Entregou para Victor, que estava um pouco atrás, e
mandou que ele descesse e fosse até a padaria trazer uma cerveja.
_ Vá e volte rápido, Victor.
Daí retirou um livro didático infantil de
sobre a poltrona e mandou que ele se sentasse. Ele enfiou a mão por um momento
no bolso traseiro do jeans e avançou. Em sua mente surgiu de forma repentina o
texto que teria de escrever sobre os efeitos climáticos provocados pelo
capitalismo que acometiam as regiões do nordeste do país. Sentiu uma vontade
louca de ir para o escritório.
_ Ainda acho que deveria levar Marcos ao
médico, Tina. Essa febre pode voltar, as febres sempre voltam se a causa delas
não for tratadas.
_ Eu vou leva-lo hoje.
Eu não consigo falar com o Edgar. Ele esta em uma cidade interiorana e o sinal
é péssimo. Vive caíndo. E dessa vez não há sinal algum.
Anselm não queria entrar nessa parte da
história. A situação da irmã era terrível, ele sabia. Os dois filhos de Edgar
passando aqueles dias sozinho com ela e o Marcos deveria tornar tudo mais
difícil. Era até um prodígio de autocontrole que ela aceitasse eles ali, o
Edgar não estando. A mãe deles, a primeira mulher de Edgar, era um assunto
proibido. Ninguém nunca falava o nome dela, quando os dois oficializaram o
namoro ninguém nunca poderia fazer perguntas sobre o passado. Mas havia o
arranjo dos dois meninos ficarem com eles aos finais de semana, e isso deveria
ter sido uma das abdicações que Esvertina tivera que fazer. Era impensável
tamanha paciência quando estava no completo controle dos seus poderes. Crianças
para ela eram animais perturbadores que para suas seguranças deveriam manter a
distância dela. Ele sempre tinha o receio de que ela falasse algo além da
legalidade em restaurantes com meninos turbulentos, e uma vez viu uma mãe em um
parque envergar a nuca em uma posição florestal de ataque e retroagir diante a
razão restabelecida. E ele não sabia onde estaria o outro menino, o gêmeo cindo
anos mais novo.
_ Se precisar eu tiro o resto do dia de folga.
Eu prometi finalizar algumas pautas para o Osmar hoje, mas eu poderia dar um
jeito.
Ela o olhou com antigas arestas de cogitações misantrópicas
e então seu olhar desanuviou. Ele entendia bem o que queria dizer aquilo. No
momento ele sentiu uma aversão pálida, desinflada, pela irmã, que antes era
poderosa a ponto de manter a distância recíproca entre os dois. Ela nunca
aceitara o que ele fazia como uma profissão, como um trabalho digno. Escrever
abobrinhas para um jornal sobre anacrônicas causas perdidas não era nem de
longe algo que justificava o martírio da sobrevivência cotidiana como eram suas
sessões de fisioterapia. Mas isso ficara no passado, antes do fracasso, quando
ela pesava dez quilos a menos e tomava banho todos os dias. O cheiro que ela
expelia agora, junto com as profundas rugas que lhe apareceram no rosto, não
lhe davam mais a segurança dos preconceitos de pertencer a um nicho. O repúdio
ainda estava lá, como uma reação pavloviana. Bastava ele invocar as mesas
palavras e a ridicularia se manifestava em um grau bem menor dentro dela
Equilibrado pelo que o senso comum adepto a desforras morais dizia ser a
lucidez do sofrimento, mas havia apenas a desistência. Para ela agora tudo se
nivelava por baixo, nada tinha ganho uma natureza redentora de admiração. O
máximo que se poderia dizer sobre um caráter de justiça era que ela fora
trazida para a mesma zona rebaixada dele, aceitava com a mesma resignação o que
achava que cabia como distinção de baixa classe a todos nesse estágio da
derrota.
_ Não é preciso, Anselm. Eu não quero
prejudicar você. E a Marta veio aqui e disse que me ajuda a levar o Marcos. O
hospital fica perto daqui.
Ela disse isso olhando para baixo,
compungida. Essas facilitações todas lhe davam a consciência de que seu atraso
em levar Marcos ao médico era cada vez mais injustificável. Ela ergueu os olhos
e neles havia um pedido claro para que ele não a julgasse por isso.
_ A vida anda muito difícil, Anselm. Eu não
pensava que seria desse jeito. O dinheiro parece não entrar, o tempo parece
parar e tudo ficar enrolado em um âmbar_ ela não sorria. Sua boca tremera
nitidamente, como se a expressão de todo esse pensamento em palavras lhe
revelasse uma dor inconveniente.
Ela sempre se limitou confortavelmente às
áreas pragmáticas do discurso. Ao contrário dele, ela nunca fora dado aos
livros. Via a propensão do irmão à leitura como uma espécie de aberração que
explicava algumas coisas. Essa pobreza metafísica voluntária a salvava de uma
interpretação mais sofisticada do sofrimento. Os homens cultos poderiam achar
bonito dizer que essa imolação lhes causam inveja, mas para ele era
aterrorizante purgar todo aquele inferno ainda mais subdimensionando-o. Havia
um grau de conforto em reconhecer a extensão da desesperança que sua irmã
sempre seria mutilada para perceber.
_ Onde você disse que está Edgar mesmo?_ ele
perguntou.
_ Ele está viajando para recolher assinaturas
em alguns processos de aposentadoria. Tem que cobrir várias aldeias que não
chegam a ter cinco mil habitantes. Você sabe como é, todos aqueles doces casais
de senhorzinhos dependendo da ação do escritório o mais imediatamente possível
para terem do que viver.
Aquela era a diferença entre os dois. Se ele
tivesse gasto seu tutano de devorador de livros com aquela frase o tom seria
outro, cheio de sarcasmo e crítica à extorsão da advocacia. Mas tendo sido dito
por Tina, representava um retrato absolutamente oposto, com um humor fremindo
de uma leve tensão que no final se resolvia pela descrição carinhosa de
“senhorzinhos”. Havia o reflexo da rançosa ternura filistina das revistas
adolescentes da cesta no chão.
_ Bom..._ ele espaçou as mãos como se fosse
brincar de cama de gato, sem ter o que dizer. Se fosse falar as cansativas
coisas que lhe vinham à mente seria uma vaidade fútil, mostrar acidez para uma
mulher que já estava derrotada.
A porta se abriu e Victor entrou, empurrando-a
com o corpo como se a garrafa de cerveja média que levava lhe reduzisse a
automaticidade. Entregou a cerveja à Esvertina, que a pegou sem agradecer.
Havia uma certa intimidade entre os dois, dura, sem necessidade de carinho, que
dispensava esses atos sociais. O menino deveria ter algum senso de obrigação
que lhe garantia a permanência ali. Não se podia mais chamá-lo de criança,
tendo a infância sido excisada dele minuciosamente como uma unha encravada
retirada de um organismo que agora tinha a liberdade de exercer sua plena eficiência.
Tina passou a cerveja para Anselm, com a naturalidade concisa de algo
essencial, como se estivesse lhe entregando um guardanapo para limpar o sangue
do nariz. Um dos indicativos do quanto eram irmãos mutuamente desatentos era
ela não saber que ele odiava cervejas. Em um programa de perguntas intimas
entre candidatos eles fariam uma dupla destinada a uma derrota fatal, quando o
apresentador lhes passasse a questionar sobre suas comidas preferidas e seus
hobbies favoritos. O que sua irmã gostava mais de fazer nos tempos livres? Ele
só conseguiria responder que ficava parada esperando o tempo passar. Mesmo que
ela atravessasse dez quilômetros a pé, o fundamento de sua vida era apenas o de
esperar o tempo passar.
Ele não levou a garrafa à boca. Talvez ela
assistisse demais a séries da tv patrocinadas por marcas de cerveja, que fazia
os personagens tomarem aquela agua choça a cada virada de cena. Quem na vida
real tomava aquilo àquela hora? Num gradiente menos responsável pela digestão
de tanta sinestesia acumulada, aquilo seria de uma comicidade terna. Mas só
havia o cansaço e a desesperança.
_ Victor, volte para o quarto e fique com
Marcos_ ela disse.
O menino demorou alguns
segundos, talvez de propósito para marcar que só ia quando lhe desse vontade, e
fez o que ela mandou. As coisas talvez fossem bem mais fluídas do que ele
imaginava, e tudo não passasse de impressões de sua mente extenuada.
_ Quando você volta à rotina normal na
clínica, Tina?_ ele perguntou sem nenhum interesse.
_ Talvez nunca. Venho
fazendo o possível para manter a clínica, mas a taxa de aluguel me parece agora
muito grande. Eu venho realugando para uma outra fisioterapeuta e quase não me
sobra nada. E olhe para mim.
Ela estendeu os braços e por um momento algo
na linha do corpo dela a fez semelhante à adolescente de outrora, uma certa
graça e leveza que se dissipou rapidamente. Anselm acentuou sua curiosidade a
olhando detidamente para tentar apreender aquilo, mas os contornos oblongos
suscitados pelo excesso de peso destituiu de uma vez a insinuação. Havia um
descompasso que não oferecia muita esperança de um dia vir a ser consertado
entre aquele corpo carregado de morosidade e o rosto de Tina, que estava
chupado, cadavérico. Era como se ele, o rosto, tentasse afirmar algo à marra,
de forma violentamente maníaca. Como a presciência de uma verdade que era um
ato absurdo atestar nas condições materiais que o apreendiam à frente daquele
organismo.
_ Eu estou dez quilos mais gorda. O Marcos não
para de mamar em meu peito, que está deteriorado. Um peito caído e murcho. Meu
peito se estendeu de maneira brutal, como se minha pele tivesse virado uma
borracha extremamente flexível. Ele não vai voltar para o que era antes, nunca mais.
E o mais ridículo é que esse inchaço todo é em vão, pois não produzo leite nem
a metade do requerido. Se Marcos fosse um bebê normal a metade já seria muito
baixo, mas ele sendo um mastodonte insaciável, a metade é um estado de fome
perpétuo. Daí que eu tenho de comprar um leite em pó rico em proteínas e
vitaminas, destinado a esses casos, mas cada lata custa o olho da cara. A que
eu comprei há três dias está por duas colheres.
Ela parou de simular o riso que a fazia supor
ser um atenuante para a revolta daquelas deliberações todas. À medida que
falava, sua voz ia ficando pastosa, seu rosto ia se desfazendo. Ela encolheu os
braços e olhava em uma parte do círculo de meia luz que constelava aquele
cosmos caseiro que era a escura sala de estar, como se a falta de um alívio
cômico àquela prisão fosse de uma crueldade pesada demais.
Anselm conteve um suspiro, mas foi movido por
uma inconformidade insuportável a se inclinar para a frente. Colocou a garrafa
por sobre a mesinha de centro, sobre a qual estava um brinquedo de montar
pueril_ um campo de férias com árvores de plástico e bonecos de pinguins, algo
que se eviscerava de um atestado de bugiganga barata. Olhou aquele brinquedo por
um momento, julgando que os significados foram organizados ali com uma feroz
intenção de desmotivar, algo que a aleatoriedade se mostrava soberanamente
virtuosa em fazer em ambientes como aqueles. Ele teve um daqueles pensamentos
incapazes de se verbalizar, fulminantes de realidade, de que a cerveja era a
única tentativa de transcendência que Estertina fazia quanto a ele, a única
maneira sem sucesso dela em trazer algo de dignidade alheia para aquele seu
mundo hermético.
_ Tina, o que Edgar diz disso tudo? Digo, eu
tento não interferir em nada em seus projetos familiares, e quem seria eu para
fazer isso. Eu não sou casado e tão pouco tenho filhos. Mas como irmão, como
tio, eu talvez tenha a liberdade de perguntar isso. O que Edgar acha disso
tudo?
Ela o olhava fixamente,
com uma atenção intensa. Ele associava aquele olhar a digressões que ela usava
antigamente, quando eram jovens, para ou fugir de um assunto espinhoso ou para
contra-atacá-lo. Quando ele executou o primeiro laboratório de suas experiências
de opiniões que poderiam dizer a ela, sobre a nova roupagem adulta que ela
usava na adolescência, essas palavras eram sempre ásperas. Ásperas a um ponto
que chegavam a ser ingênuas, mostrando que ela superdimensionava sua capacidade
solitária de lidar com seus namorados. Ela nunca aceitou que ele desse um
pitaco sequer, e a primeira frase tinha sido que ele não era pai dela. Isso o
abalou, sem saber como se comportar diante pequenos crimes sexuais contra uma
moral fantasmagórica que ele mesmo tinha cumprido seu papel biológico etário em
cometer, e depois se calou, aliviado. Foi muito fácil. Ele vinha levando os
anos que a via crescer, deixando as bonecas e passando para as maquiagens,
eliminando automaticamente todo o vestígio de cumplicidade que eles tiveram um
dia, pensando como lidaria com isso. Se teria o grau de severidade
deslocadamente paterna para usar com aquela menina desassistida na hora certa.
E a hora certa chegara e ela resolvera tudo dizendo que ele não tinha nada para
se intrometer na vida dela. Ele seguiu seu caminho, prenhe de uma plenitude
rara da isenção consentida, da indiferença requisitada. E lá estava aquele
olhar de novo, renascido depois de tantas modificações em que ele nunca mais
fora reclamado, colocado no rosto dela como uma peça de quebra cabeça indevida,
não encaixável. Suspenso num aparato temático já escoado de toda autenticidade,
ele paradoxalmente parecia mendigar o contrário do que havia exigido de
liberdade e não intromissão, cheio do saudosismo de um direcionamento afrontoso
que agora considerava como uma perda valiosa. Naquele apartamento frio,
rescendendo a odores de exsudações corporais de todos os tipos, de roupas não
lavadas, da poltrona que tudo indicava aquelas manchas eram de vômito e urina,
com as almofadas marrons rasgadas e afundadas em formas eternas de posições de
glúteos avolumados e engordurados, naquele silêncio tumular irredimível e
absoluto, havia acontecido tudo o que um irmão zeloso da concepção clássica
tivera o dever de alertar e empurrá-la mesmo contra sua vontade para o caminho
oposto.
_ Ele trabalha demais, Anselm, e é para nosso
bem, o meu e do Marcos e dos dois outros meninos.
Aí ela desabou. Levou as mãos para o rosto e,
na posição em pé em que estava, se pôs a chorar. Por um instante ele ficou
imóvel, averiguando se aquilo consistia no que estava evidente que era, se não
era uma tramoia não da irmã mas de outros movimentos condicionados que haviam
vicejado naquele lugar vicioso como fungos. Alguma sistemática contração do
corpo que só se parecia ao choro mas era algo mais solene no sentido de uma
segurança postural de não recair em maneirismos sentimentais. O choro foi se
alteando, até que o fiapo que era a nascente calma se tornou em uma explosão
mucal no centro dos braços dela. Foi aumentando ainda mais até que Esvertina
deu um grito e seu corpo tremeu, como se fosse desabar para o lado.
_ Por favor..., por favor... Anselm...
Ele se levantou com um movimento lento,
comedido. Não saberia como abordar uma figura emblemática como sua irmã naquele
estágio em que a via desalojada de tudo que a fazia peculiar. Naquele vão em
que se suspendia por um momento todas as compulsões de sua personalidade. Se
aproximou dela e colocou uma mão em seu ombro. Isso pareceu explicitamente
insuficiente para os dois, a ponto de se não fizesse nada mais veemente, mais
caloroso e humano, iria agravar a coisa. Então ele a abraçou e ela deitou a
cabeça no ombro dele. Eram ambos altos, a estatura sendo uma característica
estética que sempre favorecera ela em seu domínio feminil sobre as
circunstâncias do cotidiano, mas ele era dez centímetros mais alto. O topo dos
cabelos dela ficaram rente à sua boca e ele sentiu fragmentos brancos das
células mortas do couro cabeludo nos lábios. Tinha um cheiro amorfo, em
negativo, o nível mais elevado da decantação natural a que podia chegar aquela
minuciosa química fisiológica, algo próximo à assepsia. Ele se lembrou das
cascas de ferida do joelho dela, quando os dois ainda eram ligados um ao outro,
antes que a mãe os tivessem distanciados pelo medo doentio do incesto. De como
elas surgiam em decorrência das quedas que a exultação diante a fluidez sem limites
da infância e sua pouca apetência técnica com a vida lhe causava. Anselm sentiu
no fundo de si algo, não chegava a ser amor, uma condolência de uma ternura em
estado primitivo pela irmã. Havia uma quantidade perniciosa de registros
memorialísticos sobre ela em sua mente para que ele pudesse considerar apenas
aquela garota imaculadamente sem erros que ela fora. No fim daquelas lágrimas,
ele sabia que ela voltaria a ser a mesma mulher cheia de reservas e compulsões
peculiares com a qual dividia muitas reservas.
Ele nunca culpara a mãe por essa
desconfiança fanatizada, aceitava as ações retaliativas que vinham dela sem
cerimônia, como as leis da natureza aceitam sem drama o repúdio e o morticínio.
A mãe tinha sofrido muito mais do que qualquer um dos dois, e Estertina estava
em um segundo lugar vantajoso. De certa forma elas tinham uma recriminação
rancorosa incrustrada numa região oclusa de suas feminilidades por ele ter tido
a sorte de nascer homem. Ele cogitara em segredo que essa inveja, essa consciência
resignada de que fora deixada em um plano inferior de benefícios pela potestade
embriogênica que lhe fizera ter uma fenda entre as pernas e uma porção de
hormônios que especificavam o crescimento de glândulas com o pueril objetivo de
atrair o macho incubador ególatra, tinha revertido nela em uma condição
homossexual. O excesso de ódio que ela sentira por aqueles dois namorados, a
exultação que ela sentia ao ver que tinha o poder de fazê-los rastejar e se
sujeitarem, que aquelas efusivas protuberâncias, ridículas curvaturas, abjetas
umidades atrativas que expediam daquele corpo que ela habitava, poderia ser
usadas como armas, evidenciava que ela assumira um projeto esotérico vingativo.
_ Lembra da mamãe dizendo que a infância é o
laboratório de todas as doenças, e que é por causa disso que as crianças passam
tanto tempo febris? É o corpo depurando as mazelas, incubando em si mesmo os
vírus e bactérias para criar uma memória imunológica. É bom olharmos a doença
de Marcos com calma_ ele disse.
_ É que é tudo muito difícil. Se pelo menos
Marcos voltasse a ser o monstrinho sugador que costumava ser. Ele não está se
alimentando desde dois dias atrás.
_ Talvez seja a
economia natural do corpo, Tina.
_ Eu fico pensando
nisso. Ele treme de febre mas há algo nele que não é de todo debilitante. Me
vem à cabeça exemplos extremos, que são inconvenientes usar. Como de
prisioneiros. Um homem famélico em um campo de concentração. E observo se
Marcos está adquirindo aquela aparência mumificada.
_ E o que você acha?
_ Talvez seja minha
visão de mãe, mas ele não está de todo mal.
_ Quando Marta virá
para te ajudar a leva-lo ao hospital?
_ Ela veio aqui em casa
mais cedo. Está de licença desemprego e marcamos de ir após o almoço. Ela já
trabalhou na faxina do pronto socorro e sabe que a parta da tarde é menos
movimentada. Ela diz que as pessoas não imaginam o quanto que existem doentes
sofrendo nas madrugadas, o que resulta em internações urgentes pela manhã.
Ela já tinha se afastado dele à medida que
falava, de modo que pareceu a ambos natural. Por estranho que parecesse, não
ficara nenhuma sensação de embaraço neles, como se o gesto abrupto de carinho
fosse sublimado pela manifestação maior do choro. O rosto dela ficou iluminado
pela lâmina das lágrimas. À medida que ia se evaporando ou sendo reabsorvida
pela pele, um rubor se firmava junto à sombra da sala e as marcas da idade
retornavam com uma fidelidade tranquila. Ela era dessas pessoas que não choram
sozinhas, que o choro é associado em suas convicções a uma explosão catártica
que necessitada a ter alguém como testemunha. Tinha servido para deixa-la
inequivocamente mais tranquila.
_ Você quer vê-lo?
Se deixou levar pela repentina surpresa de
que poderia muito bem prescindir de ver o sobrinho, que fazia parte da sua
tenaz economia de sentimentos não se submeter a isso. Concordou em silêncio e
ela se virou e seguiu pelo corredor. Como ela havia se desabafado_ aquela pobre
consumação de dias e noites de desespero, que se agrupava também à sua política
de baixas expectativas_, até o seu andar era novo, podendo ser definido como
mais centrado. Com um movimento do pé, ela afastou para o canto o brinquedo no
qual havia tropeçado. Andava de seu jeito largado, que a Anselm sempre era um
traço marcante de sua personalidade, um tanto masculino. Um jeito de andar que
nunca trabalhava no realçamento de seus glúteos bem torneados e sua cintura
fina na juventude.
Ela abriu a porta com delicadeza, para não
acordar o menino. Ele entrou, com a sensação herdada de um senso comum inercial
de que um quarto de criança, no mais vestigial e distante que seja, sempre
exala uma áurea de pureza, de exclusividade indômita. Por mais que os objetos
de cena sejam pobres, a pintura desgastada do berço, a pequenez opressiva das
dimensões, a impressão de obsolescência dos brinquedos resgatados do baú de
antigas infâncias, sempre havia uma afirmação incognoscível, impossível de
exprimir, de soberania. Como se a criança ocupando o centro dessa terrenidade
pesadamente intrascendente tivesse sempre o sinal distintivo do poder emanante
do reino de onde provinha.
Viu Marcos deitado de bruços, a cabeça
voltada por sobre o travesseiro fino. Uma chupeta que pareceu de tamanho
desproporcional estava bem fixa à boca, insinuando que fora parte do exercício
de certa forma violento empregado para fazê-lo de abstrair-se da vigília. Usava
um macacão todo fechado, que envolvia os pés como se fosse uma espécie de inteiriça
armadura de algodão típica, que veio à cabeça de Anselm automaticamente o nome
estranho, body. Uma dessas peças do vestiário infantil que para alguém estranho
ao meio soavam como os nomes que os torturados medievais davam para seus utensílios
artesanais. No silêncio do quarto, se notava aos poucos, como uma leve deflação
de luz que exige que as vistas se acondicionem para ser perceptível, o
rumorejar da respiração dele, um contínuo índice tonal de uma curta nota
espichada de exploração a regiões profundas, um sonar trabalhando em volume
baixo.
Um traço de preocupação passou por Esvertina,
que saiu de sua imobilidade contemplativa para tocar o bebê na testa. Por um
instante de pausa que tinha tanta intensidade quanto um pássaro avaliando as
contrainformações invocadas pelo seu pio, ela estudou a temperatura do filho,
passando por estágios de ponderação progressivos. Retirou a mão com um alívio
confiante, ainda com a cabeça inclinada para a frente como uma especialista.
_ Ele está crescendo!_ ele falou, apostando
que dentro de qualquer lógica não era uma observação que lhe desmentia.
_ Foi uma noite terrível, das piores que
passei.
Ela alisou os antebraços com as mãos
cruzadas e pareceu se criticar por ter recaído naquela lamúria. Era mais uma
acusação por isso se voltar contra uma obrigação de agradecimento supersticioso
de sua parte do que a consciência de não se mostrar tão pessimista a Anselm.
_ Mas graças a Deus ele
está melhorando_ se corrigiu.
Anselm pensou que poderia aceitar aquela
técnica da mente tão comum à formação católica da irmã em se amparar a escapes
esotéricos. Viver naquele apartamento desculpava qualquer amortecimento
racional como aquele, e tornava até uma exigência sanitária.
_ Pode me chamar quando quiser, pode ligar
para o jornal à tarde, eu estarei lá.
Ela o acompanhou até a porta. Passando em
frente ao outro quarto, ele viu Victor sentado em uma poltrona diante um
abajur, mexendo no celular. Estava jogando, num momento raro de flagra dos
restos de sua infância. Na cama de casal ao lado, envolto em cobertores, estava
o outro filho de Edgar, o mais novo, Filipe. Anselm não pode ver seu rosto, mas
distinguiu o peito envolto em uma camisa que mesmo as sombras se percebia ser
de um time de futebol. Edgar tinha o sintoma clássico do pai ausente em querer
ludibriar a falta de experiências reais da paternidade com seus rituais
fetichistas mais comuns. O máximo que deveria dividir com os filhos daquela
exultação falangista da batalha contra o time adversário no campo seria os
comentários pós-jogo, cada um tendo assistido em separado. Lembrou que
Esvertina lhe contara certa vez que ele tinha comprado varas de pescas que
nunca tinha usado realmente com os meninos. Anselm se perguntava se de alguma
maneira isso se revertia positivamente como um dos atributos de caráter que
fazia um bom advogado, o que então a situação teria suas compensações.
_ O Filipe está doente também?_ ele
perguntou.
Ela ficou surpresa com a pergunta. O tom mais
claro, um grau acima, que usara para responder, mostrava que aquilo, os outros
meninos, eram apenas o mobiliário inevitável de uma zona menor de sua atenção.
_ Ah, sim. Eu pedi que eles arranjassem o que
fazer no térreo do prédio, para não se envolverem tanto com o clima carregado
que estava, e eles voltaram muito cansados. Eles tem grupos de futebol ou o que
seja com os outros garotos do bairro.
Era o tom que usava para desfazer-se
rapidamente de alguma pergunta retórica, o que se percebia nuances de uma
irritação sublimada ao fundo.
Ele se virou no corredor para ela, para se
despedir. Esses momentos sempre eram desconcertantes, por mais que os dois
tivessem crescido e com isso estarem aptos a desconsiderarem o constrangimento
reminiscente desses atos. Anselm se sentia em desvantagem, pois a irmã tinha o
tino prático que a fazia bem sucedida em comunicados simpáticos com empregados
da limpeza e bilhetes de geladeira. Já ele ou era insuficiente ou tendente a
uma exagero autodenunciador. Não iriam voltar a se abraçarem, se aquilo havia
mesmo sido um abraço, e então ele ergueu a mão e deu um tchau deslocado. Era o
mínimo ridículo que sua contenção poderia fazer, e ela respondeu com um
balançar de cabeça.
_ Volte a dormir.