domingo, 28 de fevereiro de 2021

Um Duelo

       


         Mamãe cortou o cabelo. Era um feixe negro e liso que ia até sua cintura, um parasita de vaidade ostensiva com o qual ela não tinha mais nada em comum. Não o enrolava e o prendia em um coque arquitetônico de antigamente, cujo segredo para se chegar à ciência de achar o ponto certo de amarra era algo tão cuidadosamente guardado quando ela era uma garota da velha cidade interiorana, e agora, passados os meses que pareciam anos de quando deixara tanto a cidade quanto aquele seu avatar idílico, ela só o deixava ali, flanando em suas costas, se alteando à vontade de uma brisa enfeitiçante que cativava olhares dos que lhe estivessem em volta. Foi-se o tempo em que o tratava bem, o nutria com cremes de ervas e shampoos delicados, que o escovava alegorizando uns trejeitos preguiçosos e concentrados, as coisas que fazia quando morava em Altarosa e era uma donzela destinada ao casamento com algum mandatário de terras. Agora que caíra no mundo real, ela, como se de um dia para o outro abriu os olhos e deixou para trás tudo que fosse daquele outro mundo distante. Seus cabelos foram perdendo o viço, tornaram-se quebradiços, já era outro o vento desinteressado que vinha soprar neles sem que seu propósito fosse o de conservar a mesma união e cada qual ia para um lado e fazia estranhas figuras hieróglifas no ar. O que antes o anarquismo capilar realçava a beleza do rosto de minha mãe, agora dava um tom de velhice precoce na maneira em que o caos estabelecido sugeria um queixo mais duro que o normal, ensombrecia os olhos, não cobria as pontas das orelhas. Não precisava a avó pentecostal jogar uma de suas indiretas sarcásticas, nem as filhas satélites fazerem craque de sorrisos falsamente silenciados, pois ela sabia melhor que ninguém o que aquele corpo estranho e incongruente representava. Ela desprezava tanto os cabelos que não tinha tempo de pensar neles. Em sua cabeça a técnica para excisá-los consistia em ter que ir para uma cabeleireira especializada e ficar horas sob uma atenção minuciosa, e isso já não mais corroborava com seu espírito novo que lhe surgira com o êxodo. Se ela não pegou a faca de cozinha amolada e deu ela mesmo um cabo ao problema foi porque a violência do ato a desgastava, não entrava em seus arranjos domésticos de mãe que tinha dois filhos para criar; era como se ela fizesse concessões ao mundo no que ele tinha de pior e, apesar da pobreza que dava suas caras pela nossa frente, ela nunca atingiria esse nível de abjeção. Os cabelos não mais representavam o selo de que ela era uma dama; ser uma dona honrada tinha agora a ver com seriedade e penitência.

          No nosso prédio havia famílias de argelinos, franceses, senegaleses, árabes, armênios, italianos, turcos; gente de todo tipo, cada qual promovendo seu nível de barulho, cada qual com seu timbre linguístico aviário que, em determinadas horas, formava uma tapeçaria sonora de múltiplas camadas, sendo impossível se ater a uma linha de sentido. Nas horas do almoço, que era a hora universal em que os rebentos dos deuses de infinitas caras e dos filhos de todas as idades da diáspora tinham em comum para se quietarem e fartarem seus estômagos, era possível ouvir um ruído uníssono, contínuo, concentradamente intenso e libidinoso, que subia pelos conductos dos elevadores e pelos corredores das escadas e ficava como uma energia étnica em pulsão perigosa, martelando os ouvidos, fazendo fricções sutis nos pés através de sua propagação pelos assoalhos; o organismo que respirava naqueles dez andares de quartos sombrios e janelas flamejantes cujas lâmpadas econômicas entravam em um torpor meditativo, um ronronar peristáltico. A uniformidade a que chegava o som nutria as formas de como esse som se apresentava durante as outras horas menos sagradas do dia, de maneiras que tudo ficava como se debaixo de uma redoma de vidro, os gritos das crianças, a severidade da ordem dos velhos patriarcas para que as mulheres lhes passassem a pasta, ou o baba ghanoush, ou o caldo de rins de cordeiro, ou o cevapi, dependendo de qual parte do espectro geográfico eles vieram, removidos e atirados no teatro caótico daquela babel de proporções reduzidas.

           Mamãe parara de escrever no caderno velho de espiral, rasgado nas beiradas e com páginas transformadas em murais neolíticos com riscos de caneta sobrepostos; pousou a caneta na mesa, se levantou, arrastando de debaixo da mesa as chinelas de taco para que seus pés se posicionassem dentro delas e, sem dizer nenhuma palavra, saiu pela porta do apartamento. Desceu os lances de escadas no escuro, porque a lâmpada dali queimara há uma semana, se esbarrando com as outras pessoas que faziam das suas na dormência do horário, e foi se postar em pé de frente à porta do apartamento do térreo, do bósnio Shivídia Mensur. Todos conheciam Shivídia Mensur, sua cara de ladrão de caravanas, seus longos bigodes de embuchador, seu ar geral de grave perigo. Sentado na cadeira de madeira, ele passava suas longas horas de ócio contemplando o regulamento de sua digestão, mastigando um palito, de camiseta sem mangas branca e encardida, de calças beges de cambraia folgadas e nunca passadas, e o boné de beisebol que um dia fora azul céu mas que estava impregnado de gordura e descorado pelo álcool do aspersor que usava para desinfetar a lâmina de barbear. Quando não analisava o universo para ele sempre assombroso de si mesmo, Shivídia dedicava a ler um jornal que algum conterrâneo deixara-lhe por agrado ou por inconsciente sadismo, o mesmo número eterno de vinte anos atrás, em que as manchetes já não o deviam fazer suspirar de nostalgia por narrar sempre e eternamente, enquanto durasse a consistência já um tanto esgarçada do papel, a entrada do general com canhões que determinara que ele e mais milhares de outros fugissem de um país que passara a não mais existir, mas agora o motivando apenas a se recordar de alguma faxineira de peitos vultosos ou uma bilheterista da estação de Medugorje com as quais ele trocava olhares acalorados e que agora deveriam ambas estarem longe, espalhadas pelo globo, rendidas como ele a uma velhice cujo conhecimento das vanidades da existência não lhe sugeria mais nenhum suspiro.

       Minha mãe deu um pigarreio ligeiro mas determinado, suficiente para que Shivídia, que não estava lendo o jornal, movesse lentamente seus olhos empapuçados da parede amarela e os colocasse sobre ela. Minha mãe deveria ter sido afetada pela profunda tristeza que aqueles olhos transmitiam, porque sua voz, que antes preparara para ser a mais seca possível, se suavizara, como se subvertida a um tom mais baixo. Shivídia a vislumbrou por detrás da nébula tremeluzente do passado e viu ou a bilheterista ou a faxineira, mas como seu espírito era ineludível, tinha plena consciência de não cair naquela ilusão sem mais consequências a não ser pregar-lhe uma peça. Todos sabiam que não era um homem de muita conversa e também de um nível de competência que ia até o simples exercício de aparar cabelos e barbas; para isso bastava que se sentassem na cadeira de couro cinco centímetros mais elevada que o habitual e, com os olhos em paciente observação a si mesmo no espelho frontal, o cliente deixasse que ele fizesse o que tinha que fazer para sobreviver. Haveria dezenas de senhores menos taciturnos e amplos de simpatia que realizavam o trabalho de apara capilar melhor que ele, mas aquele inferno que não angariava um pequeno minuto de silêncio e que estava sempre na iminência de explodir era só aparente, as pessoas ainda eram pessoas e tinham o coração da espécie aptos a se condoer mutuamente e a se sustentarem. Como o desconsolado Shivídia Mensur compraria seus fumos aromáticos e suas lascas de bastirma se os velhos, os funcionários das vendas locais, os assaltantezinhos de feira, as mulheres que catavam lixo nas cercanias, não fossem até ele para que ele despoluísse um pouco o tanto de selvageria que seus corpos lutavam mês a mês para colocarem para fora?

            Então minha mãe lhe diz, com um gesto, que era para Shivídia Mensur cortar o rabo negro, seco e mal tratado, num movimento com a mão que simulava o golpe de uma faca. O bósnio falava toscamente o português, com a incorrigível incapacidade de usar de maneira certa os gêneros e os plurais que tem os homens de sua estirpe; mesmo que se dedicasse anos a ouvir com extrema atenção como falavam os nativos, se assim fosse possível furar o bloqueio de tantas línguas que corria pelo prédio, ainda assim algo de dissoluto em seu espírito de segregado se manteria indomável a se entregar às normas corretas de uma outra pátria. A língua era o primeiro e último foco de resistência em se agarrar à nostalgia de sua antiga e desaparecida nação, o único ponto de concordância mantida entre ele e as mulheres cujas vidas de cachorro sem lar foram privadas de formarem com ele seus direitos interrompidos do calor de uma família e uma linhagem numerosa de descendentes. Mas entendeu que a moça lhe impunha uma complicação sem igual que ele não merecia e nem estava apto para abraçar. Olhou estupefato para o objeto negro que ela segurava pelo meio em uma das mãos, como se fosse um tapete persa mal cuidado que estivesse lhe oferecendo para comprar, e piscou duas vezes pensando em um gorgulho em voz alta que maldito esse dia por lhe virem com enigmas que ele já se fizera pela idade e pelas amarguras sucessivas sem a mínima obrigação de tomar conhecimento, sequer resolver. Minha mãe não se deu por vencida, estava ali para arrancar aquele parasita e estava suficientemente decidida a não se esmorecer pelo ar de afronta desdenhosa de um iugoslavo barrigudo; já engolira o vestígio de educação que lhe viera por ter visto alguma simpatia muito velada no barbeiro e sentia o frêmito de má civilidade lhe subir pela garganta. Não era à toa que ela pairava no imaginário daquelas pessoas atoladas em seus isolamentos gramaticais associada a uma leoa que a ponderação aconselhava evitar. Ela entrou na saleta sem que o armênio tivesse tempo de se levantar, e, num gesto desembaraçado e involuntariamente feminino, se sentou na cadeira de couro. Shivídia, como se lhe tivessem concluído o tapa em câmera lenta que ele esperava assim que a vira parada à porta, balançou os braços e se levantou sem jeito da cadeira, quase caindo para trás com o peso de sua pança enquanto repetia niet niet, mê senhora niet, no no. Minha mãe se agarrou aos braços da cadeira e franziu as sobrancelhas num gesto que, assim como a estival sombra juvenil do ato de se sentar, lhe dava uma graça provocativa, rememorosa de sua antiga beleza provinciana, que vai ver tais coisas não passaram despercebido pelo barbeiro por invocar agora com uma voz de clemência que ele não estava apto a tratar de mulheres do porte de minha mãe. Ele coçou a calva, esfregou as mãos nas frentes da calça, olhou no espelho aquele quadro surrealístico que nem nas mais distorcidas realidades alternativas seria idílica ao se ver em pé detrás de uma moça de rosto e corpo esplendorosos, apesar das tantas tentativas dela em destruir quaisquer traços de suavidade que tivesse os substituindo por expressões grosseiras; olhou para fora em busca de um socorro que a indiferença coletiva sequer sabia o drama que de súbito a potestade havia lhe enviado. Mudo, parou os movimentos de aflição e olhou minha mãe pelo espelho, com tudo o que lhe conferira o terror de embuchador vindo à míngua, estando no lugar a cara de um gordo e velho que lhe pedia que não lhe fizesse aquela extrema injustiça. Minha mãe, lívida, a pele mais translúcida do que o habitual mostrando o canal fluvial de umas delicadas veias na testa, olhava para o mesmo ponto, os olhos arregalados de um fulgor que beirava a certeza terrível de uma bruxa. Shivídia pegou o avental, armou-o por sobre a barriga, como se ele tivesse um peso que um simples pano jamais teria, com um ar de quem estava sendo obrigado sob tortura a fazer algo de consequências ainda não medidas mas que tanto mais seria terrível para ele. Minha mãe então desviou os olhos para a imagem dele, as pupilas tremendo uma só vez delicadas e intensamente, como se uma figura clássica em um quadro sobre um demente tivesse de súbito se movido para mirar o espectador que a observava.

          Shivídia Mensur pegou a tesoura rombuda e enferrujada, com manchas amarelas que indicavam respingos de alguma substância química indefinível, e minha mãe percebeu o quanto as mãos daquele brutamontes eram pequenas. Ele estudava o objeto que tinha que trabalhar, o longo pêndulo morto espraiado da cabeça da mulher prosseguindo-se pelas costas da cadeira; observava-o de um lado e do outro, retorcendo-se para que uma ótica inatingível lhe desse um sinal do que fazer; mordeu o lábio inferior e proferiu uma espécie de mantra rápido e pela primeira vez olhou com um olhar profissional, sem reservas, para minha mãe. Faça da forma mais rápida possível, ela disse, no que parece que ele enfim entendeu o idioma dela. Ele picotou as pontas, com investidas ponderadas da tesoura, e uns fiapos que perdiam o negror e ficavam translúcidos assim que cortados caíam flutuando no chão. Ele a olhou com ar interrogativo, e ela fechou a cara com enfado como resposta. Daí ele respirou fundo, ergueu a tesoura com uma resolução que perdia a indecisão de maneira mais fácil que ele supunha, e o mergulhou na linha da nuca, com a boca do objeto aberto até o limite possível abarcando um volumoso feixe de cabelo. A tesoura era velha mas tinha uma afiação extraordinária, vai ver era por isso que a conservava, pois sincronizado ao som agudo e metálico, um dos sons mais inapropriadamente rápidos para os anos pacientes que levara à formação do que ele extinguia em um segundo, um maço de cabelo da mamãe foi jogado ao chão, o peso o fazendo cair agora de uma vez. O armênio, sem olhar pelo espelho e aliviado por ter sido lhe indicado como se livrar daquela descomunal incumbência, feliz que afinal a vida lhe mostrava mais uma vez que nada lhe era magnânimo e sobre nenhuma ação humana se podia recair o pesar de uma elevada importância, repetiu o trinado fino e cirúrgico da tesoura até que o restante da cauda senhorial do que fora aquela menina transfugada em mulher que lhe entrara na sala. Ele parou o gesto e perguntou à minha mãe se era pra continuar, naquele idioma formado pela precisão entre eles que era mais um diálogo entre mudos, e ela fez que sim com a cabeça.

        Quem me contou essa história foi o próprio Shivídia Mensur, que não tinha nenhuma suspeita que eu fosse filho de seu personagem principal, uma semana depois quando eu também me sentara ali para que ele desbastasse o descalabro selvagem e embaraçado que me crescia acima das orelhas. Até então ninguém sabia quem resolvera aquele incômodo para mamãe, quando ela entrara pelo apartamento não tendo nenhuma diferença de um rapazinho imberbe de pescoço longo e cabelos baixos quase a um estilo militar, apenas com a extravagância doidivanas de ao invés de estar enfunado em um uniforme do exército estar dentro de um vestido. Ninguém falou nada, porque ninguém falava nada dentro daquele apartamento, mas todos pararam por um momento o que estavam fazendo para olhar aquela nova presença entre nós. Um segundo só foi o bastante, o que demorou mais que o que comporta oficialmente esse limite de tempo, em que avaliaram aquela quebra violenta na rotina da casa, aquela comunicação cheia de êxito e vingança que a cabeça impávida e combativa de mamãe expressava em seu mutismo, e no final das contas, ao abaixarem os olhos a título de que mantinham o código de conduta de se manterem isolados sem se meterem um nas vidas dos outros, mesmo com um arzinho vestigial de esnobe indiferença, o veredito era positivo, o que cada um achava era a confirmação unânime de que aquele cabelo condizia melhor com a nova personalidade daquela ex-menina. Se tivesse uma comunicação subliminar secreta que possibilitasse que eles expusessem sem grandes danos ao orgulho o que lhes iam pelas mentes, eles iriam cumprimenta-la por ter incorporado o espírito real da mulher dura e invergável que ela era.