terça-feira, 30 de julho de 2013

A civilização do espetáculo



Não será dessa vez que falarei mal de uma obra de Mario Vargas Llosa. Ainda mais que esse livrinho, A civilização do espetáculo, tem acirrado os ânimos da crítica das revistas de direita contra Llosa, elas que sempre foram laudatórias em relação ao escritor peruano menos por sua real qualidade literária que por verem nele um fiel do regime. A revista Veja acentuou que o livro exagera muito nos prognósticos sobre a decadência da cultura ocidental (e, vale definir, cultura, para Llosa, é tudo de bom que foi feito em todos os campos da arte_ incluso aí a religião_, sem espaço algum para o relativismo canhestro do politicamente correto), e o condenou por uma re-aproximação aqui às ideias da esquerda. A Folha, em um artigo de alguém que assina como escritor português e que se mostra exultante, para a dó de quem o lê, por estar ou morar em Oxford (Inglaterra), escreveu, ao modo de barraqueira típico do gênero, que o livro de Llosa é uma porcaria, sendo que, como contraprova à decadência exposta nessas páginas, ele visitou uma de suas radiosamente natalinas livrarias de Oxford e encontrou uns quantos livros recém lançados de uns quantos sociólogos e economistas pós-doctor que, ao que parecia, iriam reaquecer o mercado dos debates acadêmicos sérios. Ou seja: esse português não leu o livro de Llosa, ou o fez dentro do esteriótipo que as piadas de bar criaram em torno de sua origem geográfica, pois é justamente contra esse conhecimento empolado e restringido à leitura maçônica dos ultra-especialistas das universidades que Llosa compõe a primeira parte de A civilização do espetáculo. E é essa falta de pompas, essa sinceridade apocalíptica, essa prosa afiada de quem não deve nada a ninguém, que faz esse livro valiosíssimo. 

Recordo que, assim que ganhara o Nobel, Llosa fez uma palestra sobre a temática da indústria cultural e do embotamento mental que ela causa, e foi duramente criticado pelos iniciados por citar levianamente nomes como Foucault e os filósofos da Escola de Frankfurt. Eu mesmo cheguei a pensar que Llosa pisara na bola ao se enveredar por essas instâncias sagradas, altamente vigiadas, já que, por mais que fosse um grande escritor, faltava-lhe a complexidade arquitetônica da linguagem e o hermetismo de imagens para poder falar no mesmo tom que a trupe sisuda. Lendo o livro, percebe-se toda a legitimidade de um ficcionista pensar criticamente todos os assuntos entesourados pelo nicho do intelectualismo acadêmico classista, e as ausências e falhas no estilo e na retórica de Llosa que o deixariam em descompasso com a regra, dão a esses ensaios uma surpreendente força. A leitura envolvente_ em uma noite tive que vencer suas 100 primeiras páginas_, a coragem de deixar livre seu tom meio retrógrado de não resignar-se diante o evidente fim de antigos valores livrescos e artísticos, e mais, sua linguagem vantajosa de não-especialista, configuram uma urgência única e um alívio a esses escritos. Llosa gasta um número bem menor de palavras que a dos ultra-filósofos ortodoxos, e chega a objetivos dos quais estes frequentemente se perdem no meio do intrincamento cabalístico; e Llosa aqui é desavergonhadamente moralista a ponto de marcar sua posição, dispensando os artifícios bonachões e os truques anedóticos de um Zizék para amortecer o que ele tem para dizer.

Llosa fala, por exemplo, a favor das religiões, desde que elas respeitem as leis do Estado; fala contra a permissividade sexual que acabou com o erotismo, salientando que a falta de fetiche da imposição de certas minorias ativistas de uma total igualdade sexual pode herdar às futuras gerações um acentuado desinteresse pelo sexo; condena a usura gananciosa e assassina do neoliberalismo financeiro, para o qual as instituições bancárias relegam milhões de excluídos à miséria; aponta a parcela de culpa de anestesiamento da cultura pelos filósofos desconstrutivistas, que contribuíram pela desumanização e extinção dos interesses clássicos do homem; ressalta a ausência de parâmetros para qualificar a nova produção tanto na literatura quanto nas artes plásticas, sendo que todo aval de quem é ou não gênio ficou a critério de um mercado que, como tudo o mais, só se importa com o lucro, mesmo que para isso tenha frequentemente que usar da impostura. Aliás, a minuciosa exposição dialética desses ensaios mostra que é perfeitamente possível_ e producente_ atingir profundidade crítica com limpidez textual. Em uma clareza e lucidez e apego aos fatos e números da história, fica impossível disfarçar que Llosa não se compraz com os pecados gritantes do capitalismo, sendo justamente sua ácida crítica à corrupção bancária que prostitui os agentes dos Estados, e a pauleira que desce sobre a imprensa oficial também prostituta e corrupta, é o que vem desgostando o escritor junto aos grupelhos apanagiados do poder, para os quais cada país tem seus nomes e não é necessário escrever aqui quais são os que empacam o Brasil. Llosa trata de assuntos pontuais a cada página, para embasar o que está dizendo, como o do desmemoriamento do povo peruano que, mesmo depois de uma década sob o jugo da ditadura criminosa de Fujimori, apenas por três pontos de diferença não consolida o atraso elegendo a filha do ditador.

Se pudesse resumir A civilização do espetáculo, diria que é a acusação desencantada dos sinais do progressivo fim de nossa espécie vencida pelas frentes organizadas da estupidificação e alienação, promovido por uma tecnologia desespiritualizadora e irresponsável que mantem as mesmas formas de dominação em um mundo cada vez mais acrítico. Um mundo em que desaparece a cada dia a relevância da palavra. Uma obra imprescindível.

domingo, 28 de julho de 2013

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Morango Vermelho Maduro



Tenho um problema de insônia com o qual convivo em relativos bons termos já há tempos. Na verdade não sei se chega a ser literalmente insônia, já que durmo em média seis horas por noite e não acordo nunca depois das seis da manhã, e não fico igual um zumbi ao meio dia. A única incomodação nova é que a leitura de Proust vai ficando cada vez mais crônica; quando eu pego o terceiro volume, em que parei há uma semana na página 200, sento-me no silêncio da biblioteca aqui de casa, me deixo envolver pela magia da linguagem e, o que acho ser lá pelo décimo minuto de leitura, tudo começa a se embaralhar e ficar narcotizado. Luto ferrenhamente para voltar a atenção irrestrita para o grande romance, consigo atravessar mais um parágrafo de um lado inteiro da folha, mas aí acontece algo embaraçoso e não de todo desprovido de prazer: as imagens do livro se misturam com toda espécie de entulho que tenho na mente. Desabo em um cochilo que vai se tornando progressivamente profundo, sinto uma consciência externada bastante nítida de que estou com a boca aberta e um ar de velhice desprotegida e ridícula, e a mesma crítica subserviente me acusa de que não posso deixar de forma alguma que meus filhos me vejam nesse desmazelo, tanto porque me parece que tal visão pode trazer uma angústia antecipada neles da minha mortalidade, ou da instância imediata anterior dos anos em que os sinais de que o antigo pai de ideias razoavelmente coerentes começa a se transformar em um outro, no seguimento triste de um senhor com lapsos de memória e sorrisinho entardecido de evitar assuntos mais comprometedores, o dia_ que talvez, como nas maturidades acionadas por uma programação biológica precisa e infalível, virá subitamente, sem zonas intermediárias, igual ao meio da semana glorioso em que o meu cão Miles deixou de morder os chinelos e se tornou um vigilante responsável e sério, ou em que cada um de meus filhos deixou de engatinhar e começara a caminhar, assim do nada, num estalo_ em que o pai combativo e ainda movido pela fé em todos os discursos, vira aquele senhor da poltrona, disposto a concordar com tudo, mesmo com o que outrora foram suas piores indignações, anunciando pelas novas paixões frias do sono e da ausência de estardalhaços estar preparado. Mas o que mais me incomoda é que eles, meus filhos, percebam essa falta de respeito inconsciente por Proust, o maior e mais elétrico dos escritores, mas que uma parte do senso comum mais execrável tem a ideia formada de que seu nome se pronuncia com a mesma inflexão da chatice, da sensaboria. Durmo no meio de um Proust não por ser Proust; a proposição é que meu descompasso de sono noturno se compensa medianamente quando, pelo acaso da minha escolha atual de leitura, estou com O caminho de Guermantes nas mãos. Mas aí também acontece o diabo, pois durmo com o livro no colo uns vinte minutos, e acordo já limpo de vestígios de sono, e da mixórdia de sonhos quebrados e sem nexo.

Meus filhos não me veem dormindo porque tranco a porta da biblioteca. Mas hoje aconteceu algo curioso, que provaria para eles que a culpa não está em Proust. Baixei a maravilhosa quarta sinfonia de Mahler, disponibilizada para download no site do Carlinus. O Carlinus fez um belo texto laudatório dessa sinfonia, e eu tenho escutado muito mal Mahler. Coloquei a sinfonia para tocar em um volume mais alto que o habitual, de forma a se poder ouvir bem do quarto das crianças, pois, quando me deitara à tarde no sofá para ir atrás da justiça que devo a Mahler, meus filhos me cobraram que lesse para eles um livrinho que trata de um ratinho, de um Morango Vermelho Maduro, e de um Grande Urso Esfomeado. Deitamos os três na cama e eu tornei a ler, ao que a reincidência não me espantaria se me anunciassem ser a centésima vez, o livrinho do rato. Impregnei todas minhas inflexões cênicas de pai maluco, que aos olhos de adulto pareceria algo canastrão e deplorável, mas que para eles é de uma pureza ortodoxa tal que pelo canto dos olhos vejo suas carinhas reagindo sincronizadamente com as sensações devidas quando o ratinho sobe de escada para apanhar o Morango Vermelho Maduro do pé de morango, e quando faço a voz questionativa do narrador sobre se aquele som de passos que se aproximam é do Grande Urso Esfomeado, que vem pegar o morango do ratinho. Pois bem, lia esse livro fantástico, de belos desenhos (que recebemos por um projeto honrado de promoção de leitura entre as crianças, por parte do banco Itaú_ quem sabe o banco Itaú cavando sua própria cova futura com uma nação de crianças esclarecidas), e a música de Mahler dominava a casa, com sua meiguice, sua atmosfera pastoril surpreendente para mim, parando no primeiro movimento na doçura de uma frase temática belíssima (no meu sistema de correlações musicais, parecia uma frase também de uma delicadeza incandescente de uma música do Gênesis chamada Cinema Show). Reli mais umas tantas vezes, já meio lisergiado e fora da sintonia fina das manifestações do mundo lá de fora, ouvindo a sinfonia de Mahler e me sentindo dentro da casinha na base da árvore do ratinho, sentado junto ao morango disfarçado com óculos-sobrancelhas-bigode de Groucho Marx para que o Grande Urso Esfomeado não lho tomasse. Agora me lembro que quando Aldous Huxley tomou mescalina, foi ao museu de Londres e teve uma epifania vendo as revolutas caudalosas das saias das matronas e reis pintados. Eu tive algo parecido hoje. Recordo que minha esposa acabou deitando-se com nós, e quando começou a quase imaterialmente diáfana parte da sinfonia cantada por uma soprano (tive que retornar ao Carlinus para ver: é a soberba Natalia Guerassimova), ela disse algo como "nossa, que música linda!", e eu concordei. Mas eu estava dentro do livrinho, deitado na rede junto ao rato que usava como chapéu a coroa do morango, e senti uma multitude de emoções que há 35 anos de meus 40 esquecera que sentira, em algum quarto de ensimesmada e acolhedora intimidade.

Quem entende Foucault?



Li de Foucault o História da loucura e o primeiro volume de História da sexualidade. O primeiro já me havia chamado a atenção na juventude, e me aventurei a ler umas cem páginas iniciais sem nunca passar disso, até que pude comprar o volume e gastar uns dois meses lendo-o por inteiro. O segundo, eu relocava da biblioteca da faculdade de história, que tinha todas as três partes da obra, até que o término da proeza coincidisse com minha assinatura por quase toda a pequena ficha de empréstimo guardada pela bibliotecária na caixinha de livros em uso. Gostei muito de História da loucura, com toda aquela minuciosa vistoria na documentação de sanatórios para loucos da Europa medieval e moderna, mas já a História da sexualidade, por mais que me concentrasse e virasse o volume do avesso, na batalha corporal pela aquisição do propósito do sofisticado trabalho do francês mais influente do final do século XX, tive que me resignar a aceitar que a leitura passou incólume por mim. Parte do não aproveitamento dessa leitura de Foucault se deve à séria impressão que tive de que todo o primeiro volume era uma mera introdução, ou como um ensaio de orquestra cujo folheto de programação indica uma peça de extraordinário envolvimento que, contudo, nunca é iniciado; parte porque fiquei com a cara de bobo de quem realmente, por mais tenazes tenham sido meus esforços, não entendera nada do que o autor escrevera. Fiquei sabendo que os dois outros livros sobre a sexualidade eram ainda mais herméticos, e, corajosamente e com um acento de culpa, abri mão do desejo maçônico de ser integrado entre o grupo de discussão dos privilegiados alunos que tinham o seguro ar de terem transitado lucidamente pelos campos foucaultianos. O que me sobrara da leitura desse estudo era, apenas, a descoberta de que os tabus sexuais de todos os tipos foram criados por uma cristandade cuja única boa ação involuntária num rol de perfídias de dominação política era a assepsia corporal, e que havia uma oposição em nada atenuante para a igreja entre a antiga liberdade romana de aceitação sem nojo do próprio corpo e as formalidades acobertadas da pudicícia católica. Só.

Falando a verdade, Foucault nunca acrescentou em nada para minha formação rumo ao esclarecimento. Mantenho uma saudável cordialidade com Foucault, tenho uns cinco livros dele na minha biblioteca que me caem em mãos aleatoriamente e para os quais nutro o mesmo ligeiro assoberbamento peitoral de me envaidecer diante seu peso e suas circunstâncias imaginárias. Quando estou com amigos, o fetiche de ver um deles dizer "olha, você tem o Vigiar e Punir", é tão acalentador quanto quando veem alguns de meus livros preferidos, pois compactuo, ainda que sem a mínima digestão, com a suposição bastante solidificada de que Foucault é um dos gigantes do pensamento. Mas nunca consegui passar do primeiro capítulo de Vigiar e Punir e, por mais que me seja interessante a tese central das entrevistas compiladas de Microfísica do Poder, sempre que o pego para ler volta com notável impacto a sensação da orquestra em eterno ensaio. De modos que, como todo leitor tem suas fragilidades, por mais que seja consciente de sua presteza, uma das minhas fragilidades é deixar Foucault em paz, com toda a sua aracnídea atmosfera concentrada em que circulam-no em reverência atenciosas e diligentes figurinhas que mantem-se alegremente apequenadas para dignificarem ainda mais o mestre. Talvez o fato de nunca ter me sentido excluído dos modismos acadêmicos seja porque nunca levei-os a sério, e mesmo os vi com deboche e dó durante os anos que passei pela universidade. Sempre soube, com altivez, que meus heróis eram gente que batia a poeira dos sapatos nas portas das solenes e ridiculamente autistas faculdades de humanas, como Bernhard e Faulkner, ou gente que, apesar de terem toda a titularidade outorgada pelo mérito nessas instituições, as criticavam duramente no que tinham de canhestras e alienadas, como Hannah Arendt e Edward Said.

Das tantas vezes que me deparei com os cacoetes aprendidos de Foucault entre os personagens mímicos acadêmicos, a única que realmente me impressionou, por todas as nuances à avaliação que tinha, foi um professor convidado que um dia veio para uma palestra em nossa universidade. Eu não o conhecia, mas os preparos e correrias do corpo docente e seus pupilos eram tantos que ficava notório que o cara era uma espécie de sumidade. Chegada a noite, fiquei em pé ao lado de uma das janelas do auditório lotado, e pus-me a ouvi-lo. O mais incrível era que ele falava como um livro. Eu nunca tinha visto isso antes, apesar de conhecer várias pessoas extraordinariamente cultas e versáteis na exposição das ideias a um nível elevadíssimo. Cada sentença que ele dizia era lapidar, poderia ser transcrita na página, embalada com couro e posta já pronta na estante da biblioteca. A total ineficiência da minha parte em identificar o artifício ali_ se revelava algum indício de ter decorado um texto, ou se alguém lhe falava por um ponto de ouvido, ou se ele era um médium suficientemente treinado em arrebatamentos de incrível facilidade prolongada_, acentuava ainda mais minha sensação de apoucamento diante ele. As palavras jorravam tranquilamente por ele, com uma fluência tão desimpedida que eu via o funcionalismo invejosamente alcançado por horas de treinamento olímpico que o permitia, rapidamente, escolher uma entre vinte outras palavras que sua memória lhe servia em cada parte do discurso, e essa palavra era a mais cristalina, erudita e certa para o encaixe do momento. Parecia o Charlie Parker do monólogo. Fiquei tomado por inúmeras cogitações espetadas pela inveja, das mais colegiais como o quanto isso poderia ser útil nas conquistas femininas, até as mais disparatadas como a de que a Nasa deveria mandar um filme com ele falando por duas horas junto aos espólios daquela nave que ruma a esmo pelo universo para propagandear as proezas mais impressionantes de nossa espécie a algum hipotético alienígena. Daí percebi, com certo alívio, que esse era o problema na lisura perfeccionista dele: eu me deslumbrava com sua fala, mas não prestava a mínima atenção a ela, assim como a grande maioria dos alunos e dos professores que balançavam a cabeça em concordância, sentados do lado dele. E tinha algo mais: ao contrário de Parker, ele era atonal e monocórdio, cansava ao longo do tempo. Produzia uma quantidade infinita de silogismos foneticamente brilhantes, mas não criava nenhum universo em que o ouvinte pudesse se recolher nele. A sala ainda continuava lá, não se desfragmentava diante um portal para um novo mundo que sua exposição poderia promover, e a musicalidade quadrada de sua voz não servia para preencher o ambiente: ficava, pelo contrário, cada vez menor, saída de seu núcleo de fogo que aos poucos revelava uma chama fria. Haviam padres que dava gosto ouvir, independente da religião, como um padre amigo meu que falava de uma multitude de indignações sociais e um mixórdia de informações paralelas deliciosas sobre história e casos pessoais, assim como havia um ou outro professor que também parava nossa atenção, entre pigarros e gaguejamentos ligeiros, e nos fascinava_ ou gente do povo, mentirosos contumazes, bêbados histriônicos, um pedreiro que um dia, em uma pensão de uma cidadezinha distante, quase me matou de rir com a arte inigualável de contar sobre a mulher louca com quem a desfaçatez da juventude o fez se casar. 

Aquele mestre foucaultiano havia aprendido tão bem com seu modelo que era a encarnação das minhas leituras de Foucault: uma inteligência muito superior que, contudo, não servia para muita coisa; um poder de negação e desconstrucionismo que criara um universo do discurso para comportar solitariamente a si mesmo e ficava revoluteando, num ciclo de compulsividade adâmica que acentuava um fanatismo doente, embora o tipo de patologia não fosse a mesma que promovia a genialidade artística como a de Walser, Mann ou Van Gogh. E essa era mais uma das chaves da questão: o foucaultianismo era apenas uma força de destruição, sistematizada, concentrada, agregadora de seguidores que se viam em seus suados especificismos espelhados nela, mas... não construía nada, não criava nada. O foucaultianismo era a pós-modernidade em toda sua literariedade esmagadoramente lúcida de conhecer as correntes do pensamento e a derrocada sem mais nenhum fermento em que ele se encontrava, tendo de trabalhar com o vazio que deveria promover e explorar para firmar a legitimidade de ser uma nova escola. Daí Foucault, e todos os seus correligionários à frente ou atrás no tempo, Lacan, Derrida, Baudrillard, Roland Barthes, propalarem a matemática intrincada cuja soma de 1+1 era tudo, menos 2, desde ontologismos cósmicos como o fundamento filosófico de que o homem não existe, até o decreto da não existência de eventualidades mais pontuais como a da guerra do Golfo ou a AIDS (que Foucault se negou a acreditar que existia, dizendo ser mais uma das verdades falsas inventadas para manter o quadro social de dominação, até que sucumbiu pela doença). Como disse recentemente um escritor, Foucault marcou com um ferrete a cultura de seu tempo: a propensão ao sofisma e ao artifício intelectual.

Eu não excluo o fato indiscutível de que Foucault foi um pensador engajado na desmistificação e denúncia das estruturas de poder, um ferrenho opositor à burguesia e um iconoclasta legítimo. Porém, o palavrório classista a que ele e seus conterrâneos se lançaram, causou um estancamento no debate produtivo tão carregado de dogmas e preconceitos esnobistas, que o estrago demorará gerações para ser atenuado. Foucault, com sua densidade atonal e sua inteligência alienígena, acabou por trabalhar contra o que, em um primeiro momento em que não o encegava a pretensão de fundador de um niilismo desconstrutivista absoluto, seria o objeto e tema de sua obra: um humanismo que iria investigar todas as raízes e heras milenares da dominação, miséria e alienação, em busca do caminho da liberdade ativa. Mas o que fez foi lançar a cultura em uma encruzilhada em que os valores de mérito e aristocracia espiritual caíram por terra diante a imperiosidade da aceitação da igualdade de todas as diferenças, um politicamente correto que, na era da internet, torna de mesmo peso coisas como o funk e Mozart, qualquer romance que trate de lesbianismo de maneira progressista e Tolstói, pela simples razão inquestionável de que a expressão popular, sendo o oposto lógico da burguesia e das estruturas de dominação que a favorece, o equivalente em quilate artístico e sofisticação intelectual. Os altos discursos de Foucault se restringiram a isso, num negativo estranho mas não paradoxal: numa realidade pragmática em que as ideias perdem sua importância e a cultura se desvanece, atirando mesmo contra o arrivismo ultra-cerebral do próprio Foucault, Lacan, Derrida, etc, que também eles são absorvidos rapidamente pela obsolescência de uma humanidade que cada vez mais é dominada por novas armas da velha estrutura estanque, coisa que Foucault não previu: o laconismo, o grunhido, a mutilação da linguagem e de qualquer refinamento, na diversão onipresente da imagem.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Obsessão



Uma pesquisa pela livraria Cultura e descubro que Geoff Dyer é um escritor obsessivo, que só escreve sobre o que ama. Escreve sobre yoga, fotografia, jazz, viagens e... surpresa, sobre o que para mim é o melhor filme de todos os tempos: Stalker, de Andrei Tarkovski. Pelo que eu li da resenha de Zona, Stalker impressionou profundamente Dyer, desde que ele o assistiu pela primeira vez. O mesmo ocorreu comigo ao assistir esse filme, em todas as quatro ou cinco vezes que o fiz_ fato que só encontra par em questão de impacto com outro filme de Tarkovski, Nostalgia, e 2001. De modos que me afigura imprescindível que eu leia este livro o mais urgente possível.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Auto-ajuda para quem não sabe ler



Percebemos que a nossa relação ativa com a realidade está um tanto prejudicada, em evidente prejuízo para nossa afirmação como seres pensantes, quando lemos nas duas mais influentes revistas do Brasil e as que oferecem total antagonismo ideológico uma com a outra as representações de como são seus heróis contemporâneos. No site da revista Veja, com sua imponência inercial de formar opinião entre uma gente que se compraz a análises superficiais e objetivamente técnicas, leio uma resenha sobre um determinado livro cujo tema é o de que pessoas com o perfil clínico de psicopatas são elementos bastante produtivos para o mundo empresarial, sendo até desejosamente requeridas por ele. A matéria ressalta que a determinação, a egolatria, a incapacidade de se importar com o outro, e a vontade de ascensão social irrefreável que são atributos que o texto diz ser normalmente apontados em psicopatas, fomentam índices consideráveis de crescimento nos lucros corporativos. Até aqui, a mera exposição de uma tendência não faz mais que nos encabular diante a falta de novidade no quadro de efeitos colaterais de um sistema econômico global cujos contornos são cada vez mais visíveis; o que espanta, ainda que o espanto se espaireça em seguida sobre um fundo de compreensão encadeada, é a plasticidade com que a revista vende a notícia, sendo que não há mesmo um termo mais adequado à forma de exposição do que esse. Não se pode apontar essa notícia por um nome de um repórter, escritor ou articulista, pois a impessoalidade do mero instrumento que a digitou é absorvida pela pauta da publicação, pela unidade maior que apaga seus componentes orgânicos individuais em proveito à total emulsão em uma ideia diretriz e única. Assim, todo pensamento minimamente provido de análise idiossincrática é diligentemente eliminado, e o que sobra é a simpatia fria, mercadológica, do produto em potencial exposto na vitrine. A opinião, firmemente vistoriada pela pauta, só é permitida para os editores e para um ou outro intelectual da cozinha da revista, sendo que esta é apenas o serviço de realce marqueteiro que produz os slogans direcionais para a venda dos utensílios e bijuterias ideológicas. Quando se vê um hausto que simula_ só simula_ uma manifestação individual, quer seja com a roupagem de humor, ou de súbita reação diante uma injustiça social, é fácil reconhecer o piloto automático de um reflexo instintivo do texto que, contudo, também é produzido pela pauta, o que entrega o ardil de apenas cobrir de tempero variado o mesmo e invariável cardápio. Assim, quando, na expectativa de que diante uma enormidade nada inofensiva de uma apologia a psicopatas, misturada no contexto ainda mais deletério do poder de grandes empresas, venha a se ler uma análise crítica, que pelo menos pegue pelas pontas mais ricas de um debate sociológico (o quanto essa álgebra inesperadamente surgida de psicopatia e promoção de lucros a qualquer custo é sinal da produção de mais oprimidos e mais injustiças sociais e miséria), o que se tem em mãos é a mais estúpida cartilha de auto-ajuda em identificar em você as boas qualidades de um psicopata, para a sua promoção pessoal na empresa. Em vez de um cultivo inteligente da observação por diferentes ângulos da questão, o que se dá é a mais pobre e irresponsável propaganda do dinamismo predador de um psicopata, com fotos de estúdio em que aparecem singelos exemplos de psicopatas vestidos de terno Armani e que por uma incrível coincidência se parecem muito com os galãs da série Madmen, embrenhados no alcance sacralizado de lucros ilimitados. Psicopatia é transformado em charme engajado, em virilidade a ser ostentada, a saúde de darwinismo social. Não há nada, mesmo, de inocente nisso: como na famosa primeira frase de O Capital (livro que só na citação de seu título já promove um desconjuro e uma série de xingamentos rasteiros por parte da revista), também, ou, principalmente, essa mercadoria ideológica é perigosamente carregada de fetiches e astúcia teológica. A matéria diz que esse nível de psicopatia elegante não acarreta prejuízo algum para a sociedade, o que dispensa ao leitor padrão da revista a pergunta óbvia: então, sob quais aspectos é definido um psicopata? Se a psicopatia é inofensiva e um primoroso estimulante financeiro, não deveria se criar um outro conceito que não mais uma doença da psique? Mas, para o leitor padrão, aquele que é difícil conceber que exista em sua forma pura e insofismável, mas que as pesquisas de aceitação da empresa asseguram rigorosamente que existe, nada desses questionamentos veem em mente, senão a esperada vaidade de descobrir o mais rápido possível em si mesmo o gene prometedor do egoísta de suprema indiferença, do tubarão do topo da piramide biológica.

Embora a revista Carta Capital tenha muito menos leitores que a Veja, sua oposição firmada no campo de uma esquerda acirradamente auto-vigilante na genuflexão diante o politicamente correto e a defesa incontestável de minorias elegíveis como tais, ainda é a mais representativa contra a loja da família Civita. A Carta pretende ser uma esquerda cool, jovial na apresentação de novos colunistas e blogueiros convidados que dão a impressão de escreverem para o site de bermuda e coçando as barbas; um arrebanhamento liberal de toda diferença, em uma contramão alegremente voluntária ao que chamam da corporação da grande mídia oficial de direita. Assim, da mesma forma em ponto-morto e assassina do debate inteligente, a Carta Capital se compraz em ser uma Revista Veja em negativo, com os mesmos erros emburrecedores e a repetição compulsiva dos mesmos ensejos de poder. Nessa mesma semana em que a Veja fez sua defesa ao psicopata empresarial, a Carta publicou um artigo, de um de seus blogueiros joviais, anunciando que o Mc Daleste, morto no palco por um tiro no peito disparado por um desconhecido, é a representação de um intelectual urbano, da periferia, cuja obra traz a mensagem engrandecedora de um didatismo aos jovens. O texto é tão sem fundamentos e estereotipado na santificação de algo que foge naturalmente à canonização, que o que se vê na caixa de comentários à matéria, no site, é um frota de críticas da parte de leitores menos indignados com a ausência de legitimidade do texto do que com repulsa à subvalorização de suas inteligências. O Mc Daleste é apontado como um poderoso intelectual aguerrido às mais honrosas lutas sociais e educação progressista dos jovens, apenas pelos fatos do mais incipiente abecedário de estar morto e de abominar, nas letras de suas composições, policiais militares, no soletramento tortuoso de que policia militar é a encarnação de todo preconceito criado de agentes maus do governo, torturadores e assassinos. O autor do texto desconsidera, a um nível de autismo que dá mostras de que a revista não dá a mínima a uma coerência o mínimo respeitoso à fidelidade da notícia, a apologia do Mc ao tráfico de drogas, à pedofilia, ao assassinato de policiais militares, à ostentação e à incomodação total quanto ao direito dos vizinhos ao silêncio noturno. Esse é o herói da esquerda aos moldes da Carta Capital, em seu debate surdo, umbiguista e leviano com a revista Veja. Não é para menos que, após o junho do assim chamado despertar do gigante brasileiro, as mesmas instituições tradicionais de poder no Brasil, os mesmos opulentos de dinheiro público, criminosos de respeitáveis famílias centenárias, as mesmas máfias e maçonarias do status quo nacional, estejam tão seguros e calmos, tão distantes da mínima incomodação a seus sonos de consciência tranquila. O Brasil segue incólume, como sempre seguiu.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Esperando Godot, de Samuel Beckett



Esperando Godot exige da mesma forma de seu leitor que ele se aproxime tão paradoxalmente carregado da cultura ocidental no que ela tem de filosoficamente manuseável e reminiscente, desde a erudição das grandes peças shakespearianas e do pensamento místico niilista de Schopenhauer, quanto estipula a falta absoluta de necessidade de conhecer qualquer coisa. Essa obra tanto decreta o resumo terminal de toda a ciência e toda a criação mental do homem, revelando uma desconcertante falta de valor e uma gratuidade nesses frágeis esquemas de importância, quanto inaugura uma espécie de novo material nuclear, que constitua sem fim o mesmo esforço vão de justificativa e conteúdo. Para se entender a genialidade e a lucidez quase insuportável dessa obra, Beckett parece exigir apenas uma certa maturidade, um acréscimo de anos que ofereça a calibragem ideal de indignação e cansaço que torne possível ver a nudez de eufemismos que é a condição humana. O niilismo beckettiano é tão arbitrário e incondicional que mesmo o termo "condição humana" parece ostensivo, esnobe, prepotente, para descabidos seres cuja erraticidade não comporta uma sistemática verdadeira, para seres que inventam o tempo para poderem pôr nele o mobiliário que os engane sobre uma fantasiosa permanência, que os faça suportar a permanecerem na vida com a ilusão de um estranho calor imaginado das imaginadas cadeias da história e das imaginadas tradições familiares e dos diversos amores românticos imaginados. Ler Godot tendo lido Shakespeare e Schopenhauer só transparece uma aquisição vaidosa e efêmera do direito do leitor de perceber o que a peça desconsidera como sensaboria e estupidez e grandiosismo tolo; só serve para ver que Beckett resolve todos os longos monólogos de personagens intrincados como Macbeth sobre o som e a fúria com frases simplórias de seus rasos mendigos desmemoriados, que, contudo, dizem a mesma coisa com uma pobreza de recursos que se casa com uma impactante honestidade e coesão com a pobreza humana. A grande indecência da peça, que assustou e fez vários espectadores de suas primeiras apresentações londrinas abandonarem as salas de teatro durante a exibição, tomados pela fúria, é reduzir toda a atmosfera duramente cultivada por milênios de aventura do cérebro compositor de paisagens do homem a um minimalismo e uma pobreza difícil de se deparar sem uma enorme vergonha. Por isso, como atenuante, a generosidade de Beckett em ainda assim interpor um filtro entre nós e sua verdade sonoramente unívoca por ele vislumbrada, recorre ao artifício de colocar na peça algumas identificações suavizadoras, algumas graças urbanas reconhecíveis, alguns afagos, ainda que feitos por frias mãos indiferentes, que impregne suficiente leveza para vermos que ainda assim estamos no campo da arte, que não fomos deportados ao todo, que tudo não passa de uma elástica brincadeira, uma fronteiriça desqualificação passageira de nossos utensílios de proteção: por isso todos os cinco personagens da peça usam chapéu coco, por isso um pareça com Chaplin e outro com Buster Keaton, e os outros dois com Stan Laurel e Oliver Hardy. Talvez Beckett faça isso por saber que o puro visível é intolerável e não usar atenuantes seria fazer outra coisa que não seja arte, seria como disparar um tiro na cabeça do leitor, ou oferecer a pistola para que ele o faça; ou por uma profunda piedade, no final das contas, de apostar em um grau ínfimo de valor afirmador e que dê uma justificativa ao homem, ainda que muito efêmera; ou por medo de que as decorrências da peça lhe resultasse em algum tipo de processo criminalístico; ou porque a própria condição evanescente do homem é cômica e nada legitima mais o riso que o absurdo dessacralizante. 

Não deixa de ser maravilhoso que Beckett, no alto do século XX, consiga produzir mais uma síntese sobre a existência do homem: o aterrador é que ele faça isso às custas da pulverização de todas as outras sínteses pregressas. Estragon, Vladimir; Pozzo, Lucky, estragam de maneira definitiva a apreciação de Hamlet, de Lear, ou das outras assim firmadas entidades representadoras das forças passionais e espirituais da nossa espécie, seja no romance ou em qualquer outra forma de expressão narrativa. Ser assimilado pelo laconismo de Estragon e Vladimir, ter o espanto das primeiras páginas onde "nada acontece" substituído por um atordoante fascínio (o fascínio de ver um espectro de outra dimensão ou descobrir uma lei física), torna as sábias páginas antológicas da tradição palavrosas. As tantas vezes em que Estragon se levanta e anuncia a Vladimir "vamos embora", e as tantas vezes que Vladimir responde "não podemos", "por quê?", "porque estamos esperando Godot", ou as tantas vezes que um e outro propõe o xingamento ou a discussão aleatória para assim o tempo passar e chegar à noite de mais um dia, esquecendo-se de que "não há nada o que fazer", tornam os longos palavreados shakespearianos, mesmo por quanto perdure o impacto da novidade, chatos e incômodos. Aliás Godot celebra a prescindibilidade completa da leitura; quando eu o li, uma das minhas vozes disse, com alívio, "poderei parar de ler agora". Como se a ilusão, revelada, tivesse a adstringência do livramento de um fardo. Mas o que surge então é: bom, mas o que farei agora? Se o esclarecimento é uma enganação, partir para o comércio e para a política, para o sexo ou para a briga corporal, também são artifícios da mesma forma inúteis. Há a mesma exploração decodificadora de Houellebecq para a desmistificação do sexo; e a mesma independência estoica no niilismo quando Cioran diz que o filósofo Diógenes se masturbava em praça pública à frente de todos e, quando questionado, dizia que era uma infelicidade não poder esfregar a barriga do mesmo jeito e assim aplacar a fome. Estragon e Vladimir parecem ser insuportavelmente livres, e o são ainda mais quando analisamos que não precisam de nenhuma legitimidade aquilatável de pensamento, posse ou constituinte biológico: são mendigos que usam chapéu-coco, sem casa e sem memória alguma de casa (a não ser fagulhas histriônicas de algumas reminiscências da França que parecem mais ondas de rádio cruzadas na mesma sintonia), sem lembranças precisas da passagem do tempo (livres do tempo), e que fazem parte de um cenário tão imaterial que se resume apenas a uma árvore desfolhada, o deserto e o céu imutável (livres da geografia). São o início de uma liberdade beckettiana que vai ficando cada vez mais incorpórea, com a trilogia de romances feitos de retalhos de pensamentos e das peças tardias em que as únicas presenças no palco são uma cabeça de mulher enterrada e seu marido estatuado.

Certa vez, antes de ler Beckett, li um estudo sobre sua obra escrito por algum professor convidado a prefaciar seu volume da coleção Nobel. Me ficou na lembrança uma definição que tal professor fizera sobre o niilismo de Beckett, algo assim: seu niilismo era tão devastadoramente absoluto, que buscava certa redenção em negativo, tinha certa fé reflexa inevitável. Na compilação de estudos sobre a peça, na edição da CosacNaify, há a seguinte bela passagem escrita pelo marido da Hannah Arendt, Günter Anders: "Assim, também o mundo da peça é uma "abstração": um palco vazio, vazio a não ser por um adereço indispensável ao significado da fábula, uma árvore no centro, que define o mundo como um instrumento permanente para o suicídio e a vida como o não cometer suicídio". O que eu sei é que há a sombra de um esfuziamento imoderado nessa obra, uma alegria indeterminada e inapreensível; coisa que vem com todas as grandes extenuações e o direito de se deitar para renovar as forças, mesmo que seja sempre para olhar para o mesmo dia e a mesma sucessão de eventos vazios. Meramente enzimático ou não, é um ganho.


Todo aquele jazz, de Geoff Dyer



Esse pequeno livro de Geoff Dyer pretende comportar as principais características mitológicas do universo do jazz, lidas pela ótica quase lírica do autor na forma como ele anuncia na epígrafe: "não como eram, mas como me parecem ter sido...". Nisso, o pequeno livro ganha estatura ao tangenciar a profundidade de degradação e misticismo social dos grande pianistas, saxofonistas e trompetistas que teceram essa revolução da expressão artística tida como responsável pela música mais importante dos últimos cem anos, mas se apegando menos à literalidade dos fatos que na impressão subjetiva da interpretação cabalística dos objetos deixados em torno dos biografados. São 200 páginas que falam de loucura, drogas, alienação, heroísmo, prisões, fracassos, derrotas e uma ou outra vitória relativa logo encoberta pela fragilidade conceitual das ascensões do espírito. Dyer é inteligente e escreve bem o suficiente para descartar qualquer tipo de pedantismo: sua narrativa é ágil, suas descrições tem o lapidamento incisivo da astúcia poética da sarjeta, impregnando as histórias com um nostálgico ritmo que lembra ao leitor a escrita honesta, estentórea e um tanto ultrapassada do melhor noir americano, e da atmosfera estética pré-beatnik no que pega como centro de interesse heróis sem casa, com memória biológica deteriorada pela consumação febril da saúde corporal, e lavados por uma chuvinha eterna e um frio cósmico de prenúncios. A pena de Dyer é tão envolvente e cala fundo no leitor, que o clichê surgido agora na mente não parece menos sincero e verdadeiro: os heróis do livro tem como única pátria o jazz.

Estranho dizer que esse livro é ficção. Dyer diz que a maior parte dos diálogos foram colhidos em fontes fidedignas, escritas e orais; todas as cenas descritas equivalem a momentos reais da vida dos músicos. Ficção seria, aqui, aceita nos altos planos da imaginação reconstitutiva dos romances que analisam as possibilidades da interpretação pessoal sobre momentos do passado, apenas que Dyer faz o trabalho extemporâneo de encorporar-se na afetividade secreta de outros; uma espécie de mediunidade proustiana que contempla a solidão e a dor da alteridade de uma maneira tão fluidamente intensa que dificilmente se cogita que não foi assim. Dyer invade a subjetividade mais recôndita de Lester Young, Thelonious Monk, Bud Powell, Charles Mingus, Chet Baker e Art Pepper, com uma transfiguração alcançada pela literatura, e costura os eventos determinantes da biografia desses criadores através de um outro recurso da paranormalidade: inserindo todos eles na intuição de um Duke Ellington que vai compondo uma grande peça sobre a história do jazz enquanto transita de carro, conduzido por seu fiel companheiro Harry, por todo os Estados Unidos. Somos convidados a ver Young em seu quarto de doente, incapaz de se comunicar com o mundo e obnubilado pelas drogas, sendo vislumbrado pela janela por músicos que entram para tocarem no clube de frente como um fantasma_ um Young excessivamente sensível massacrado pela segregação brutal sofrida no exército. Vemos a criança crescida de um portento negro de quase dois metros de altura, Thelonious Monk, em sua catalepsia anunciadora da doença cerebral, tendo os dedos das mãos quebrados por policiais que interpretam a passividade do grande pianista como afronta de um negro a policiais brancos_ um Monk, conduzido angelicalmente pela esposa protetora, e de uma nobreza espiritual que o faz admitir a culpa de portar papelotes de cocaína por ver que seu amigo Bud Powell, o verdadeiro culpado, jamais suportaria o ambiente da prisão. Um Bud Powell que logo em seguida vemos na mendicância total, identificado por um guarda terno que hesita em acreditar que a sublimidade dos discos que tem em casa nasceram daquele impossível animal antropomórfico refugiado em meio a caixas de papelão. E um Charles Mingus irascível, que espanca músicos durante as apresentações ao vivo, o mais intratável dos homens que, nos bancos dos tribunais, respondendo como réu a um de ofendidos, consegue a absolvição da vítima de água nos olhos após remediar a apresentação que o juiz lhe faz afirmando altivamente não ser um compositor de jazz, pois jazz para ele "quer dizer crioulo, discriminação, cidadãos de segunda classe e todo lance de ficar no fundo do ônibus"_ um Mingus que amainece com a idade e é responsável pelos momentos mais belos do livro, quando cala uma madame fútil da plateia por interromper sua comunicação pela música com um Eric Dolphy falecido, e que se refortalece ao ver um Roland Kirk cego, com um só braço e destruído pela idade renascer no palco, possuído pela divindade da música. E as partes sobre Baker e Pepper são tão delicadas que para o leitor já completamente seduzido parecem dissolver nas mãos.

O livro ainda se encerra com um apêndice ensaístico, em que Dyer analisa os rumos seguidos pelo jazz atual, tendo se desprovido da força contestatória e do inerente arsenal libertário. Dyer diz uma coisa que só é vista em sua obviedade quando lida: o próprio jazz carrega sua crítica, sua reificação perpétua e sua metalinguagem, na forma em que os músicos se comunicam entre si ao longo do tempo e através do mundo dos que já partiram: o próprio jazz é sua feitura, sua análise e sua metamorfose evolutiva, por isso não existam, na constatação de Dyer, grandes livros sobre jazz. Com essa lucidez de conhecedor profundo, vemos a despretensão do livro, e como Dyer acerta em compor uma obra tão humana, arejada, como os mais belos solos de saxofone.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Os gorilas do templo sagrado (Tarzan, Thelonious Monk, Nabokov, Geoff Dyer e a alegria da resiliência) _ ou, como é linda a vida, apesar de tudo



Por onde começar? 

Já disse em algum outro texto sobre a sobrevida de meu sogro. O médico dele o liberou para comer e fazer de tudo, à maneira daquele filme com o Morgan Freeman e o Jack Nicholson, visto que o prognóstico que veio junto a esse destrambelho radiante era que não lhe restava mais que uns três meses de vida, e por isso seria bom que ele se apressasse se pretendesse escalar o Everest, beber leite de lhama ou caçar tubarões no mar da Tailândia, ao que o meu sogro preferiu esperar por seu desaparecimento absoluto com a muito mais modesta opção de ficar em casa e sair para visitar os parentes e amigos de vez em quando. Nisso foram-se 4 anos. Minha esposa me perguntou sobre minha opinião se eu recomendava que meu sogro passasse pelas sessões de quimioterapia, e eu lhe respondi que meu pai suportara apenas oito meses quando se prontificou a agarrar o milagre por essa porta dos fundos da convencional resignação médica. De seus 70 kg quando entrou para a sala de quimio do Hospital das Clínicas, com a face corada e os cabelos de topete da jovem guarda intactos e negros, meu pai continuava apenas com 30 deles e a aparência mumificada que desnuda qualquer esperança humana meses depois do tratamento, em um coma semi-acordado de total insanidade e sem um pelo no corpo. Pois meu sogro veio nos visitar nesse domingo; fizemos um churrasco e doces para a sobremesa, e não havia nenhum vestígio de doença ao menos em nenhum canto de seu porte físico e seu pleno humor para com a vida. Meses depois que lhe foi dado a notícia da infalibilidade de sua morte, minha sogra desmaiou enquanto comprava pães, e o médico, como num sketch sem graça dos antigos programas televisivos em que o doutor de jaleco branco, com cara de louco e agarrado nas cinturas do casal de sentenciados de sorrisinho triste, solta o bordão grudento "desgraça pouca é bobagem", recebendo as palmas e gargalhadas frenéticas da craque entusiasmada, diz à minha sogra que o enfisema de trinta anos de fumante já lhe tomara conta de 90% dos pulmões. Era capaz que ela venceria essa súbita última disputa do casamento sobre quem seria enterrado pelo outro.

Ambos haviam ganho peso e faltavam dançar na sala, o que, aliás, fizeram. Nesse domingo parecia mesmo um último capítulo de novela, com toda a sua felicidade ilustrada, e se faltou um casamento, para compensar foi anunciado pela minha cunhada e seu esposo que o bebê que esperam no quinto mês, é menino e é perfeito. A doença ainda está lá, como veio selado nos novos exames de averiguação. Mas a impressão é que o milagre, paradoxalmente, também acontecera.

                                        **********************************************

Essa quebra no texto é para suavizar o humor involuntário da informação de que essa mesma cunhada também está doente. Ano passado, ela sofreu um ataque com todos os sinais de epilepsia em seu local de trabalho. Seus colegas ficaram profundamente chocados ao verem aquela moça cordial, de fala suave, caída no chão, espumando pela boca, com o corpo em uma convulsão descontrolada e os olhos revirados para cima. Por pouco ela não morreu sufocada pela retração da língua. O neurologista lhe passou uma batelada de remédios de uso controlado para tomar todos os dias. Esses remédios a narcotizavam tanto que, escondida de todos, ela parou de tomá-los após o primeiro mês. No dia seguinte, o ataque foi assustadoramente mais violento que o primeiro, e coincidiu de minha esposa o presenciar em um fim de semana que visitava seus pais. A Dani me contou que nada se assemelha mais a uma possessão demoníaca, pois a Adriele, minha cunhada, pronunciava xingamentos arrepiantes, e ameaçava que iria matar os pais quando estivessem dormindo. Uma nova série de exames foi feita, e mais uma vez o médico não detectara nenhuma anormalidade, mas reduzira a dosagem dos remédios para que a Adriele ao menos pudesse falar ainda que lenta e entorpecidamente. Ela teve que se demitir do trabalho e ficar em casa, sob cuidado da outra irmã e dos pais.

Aqui entra o veterinário da família. Eu solicitei à Dani que indicasse à Adriele fazer o exame específico de cisticercose. Deu positivo. Eu mesmo não sabia que o desconhecimento dos médicos sobre a incidência da cisticercose fosse tão grande, a ponto de ter que se pedir um exame diferenciado. Pois dois ovos da tênia haviam se instalado em um local do cérebro da Adriele, e o organismo os matara, formando calcificações que atrapalhavam o fluxo de interações elétricas de vários neurônios, daí os ataques severos. A Adriele, para se adequar à estética combalida da família, ficou raquítica a um ponto próximo da deformação, mas os remédios foram trocados por outros bem menos ofensivos. A última vez que a vi, há 4 meses, fiquei um tanto depressivo pelo que achei que fosse a perda sem retorno de sua beleza. Ela me pareceu ter tantos pelos no rosto que foi difícil suportar as comparações involuntárias da minha imaginação pérfida com a irmã e a mãe hansenianas do Ben-Hur.

Há coisa de três meses, o irmão de um colega meu de trabalho teve que ser levado algemado para a internação em uma clínica. De sua prevalência habitual de calma e ponderação, subitamente ele se revelou possuído pelo demônio. Quebrou os moveis da casa, avançou contra a mulher e as crianças. Eu estava de férias e disse à amiga que me comunicou do fato a já tautológica recomendação de que pedissem exames para ovos de solitária na cabeça. Mais uma vez Satanás foi inocentado, e descobriu-se que o criminoso era o porco caipira. Recordo que, recém formado, tive a intenção de começar uma pesquisa independente sobre a cisticercose, no que eu via como provável epidemia sub-clínica em diversas regiões brasileiras_ incluso aqui onde moro. Mas deixei de lado. Uma vez, enquanto frequentava o curso universitário, passei uma férias em Catanduva, e, junto a uma equipe de pesquisa, necropsiamos diversos porcos da região do interior de São Paulo, e todos, sem exceção, haviam apresentado a tênia no intestino.

Mas o propósito deste post é a feliz resiliência que vi neste domingo. A Adriele está grávida, linda, gorda, falando as tantas deliciosas besteiras que ela tanto tem talento para falar_ à semelhança da princesinha Bolkonsky. Mais uma vez eu repito a máxima verdadeira do velho Tagore: "É preciso muita coisa para se matar um homem".

                                            *******************************************

Sobre o velho assunto da literatura:

Estou lendo dois livros deliciosos. O Contos reunidos, do Nabokov, e o Todo aquele jazz, de Geoff Dyer. Caramba, que maravilha! O Nabokov me fez lembrar de uma das portas do gosto da leitura, promovido em mim por meu pai quando ele me presenteou, lá pelos meus dez anos, com alguns livros em quadrinhos do Tarzan. Nem era o Tarzan do Burroughs desenhado pelo Hal Foster, o clássico dos clássicos, mas uns gibis de longas páginas horizontais que falavam sobre um Tarzan que era miniaturizado para salvar o povo das formigas em um volume, e lutava contra uma seita religiosa de gorilas terríveis que veneravam determinado demônio da guerra em outro volume. Recordo que esse foi um daqueles momentos de felicidade extrema da minha vida. Meu pai me disse: "Isso aqui é muito melhor que cinema". Eu os li e reli e me transmutei para dentro desses livros. Como os macacos fanatizados, eu comecei a reverenciar esses livros. Em uma extensão freudiana, é bem possível que toda a minha vida de leitor_ olha só os relâmpagos súbitos da auto-revelação_ se resume na busca pela repetição da mesma felicidade que senti com esses livros do Tarzan. Não tem exagero: talvez a intensidade tenha se alterado nos vários momentos que se seguiram, mas essa felicidade foi recuperada com Thomas Mann, Faulkner, etc, etc. E esses contos do Nabokov me fazem tão plenamente feliz, tão próximo àquela sensação de meus dez anos, que não me passa desapercebido a hipótese de uma pré-senilidade que anuncia em meus 40 anos o velho abobado de alegre infantilismo que eu serei se chegar aos 80.

Nabokov é um miserável de um grandissíssimo escritor. Ele brinca com os contos que escreve, brinca com o formato perecível dos tantos periódicos e revistas para onde essas condensações de seu gênio vaidoso eram enviadas para a publicação. No meio de contos que ele sabia serem imortais_ como qualquer leitor sabe imediatamente ao ler, por exemplo, o conto La veneziana (que aliás, como o cheque do Nobel de Hamsun que quase se perdeu em um elevador de uma pensão, com a mesma displicência só foi redescoberto décadas após ter sido escrito)_ , ele simula estragar tudo com doses desconcertantes de coloquialismo anti-estético. Durante determinada cena impecável de suspense, em que tudo está xamanisticamente espetando a percepção acentualizada do leitor, ele lança um cumprimento, um oicomovai, que faz pular no sofá. Para quem deseja fazer um test-drive desse livro, sente-se na poltrona de uma Livraria Cultura, abra o volume em um dos tantos conto curtos, e leia, por exemplo, O passageiro. É um conto que não fala sobre nada, um mero exercício, mas está tudo lá: a metalinguagem de primeira, o clima de uma Europa invernal oitocentista acolhedora no que tem de insurgente risco de assassinato, o trem-expresso e seu vagão onde o leitor se instala com agradecimento. Está lá o que está em todos os outros contos e em toda a literatura que se preza por sua absoluta imprescindibilidade: a força de nos arrebatar desse mundo, de nos fazer acreditar nas alternativas muito materiais da abdução. Enquanto estou na companhia de Nabokov_ e, felizmente, me falta ainda mais da metade do livro para ler_, eu divido com ele todas as suas opiniões tolas de grandeza e todas os seus preconceitos estereotipados contra outros escritores: Quixote é o mais brega dos livros e Faulkner é um idiota superestimado.

E o livro de Dyer... Ontem eu tive a oportunidade celestial de lê-lo ouvindo Thelonious Monk e Lester Young, os dois primeiros personagens das primeiras cem páginas. Vou escrever um texto específico sobre Todo aquele jazz assim que terminar de lê-lo (acho que hoje termino, mas escrevo lá pelo sábado). Só posse dizer que Viva e Literatura!, Viva o Jazz!

E Geoff Dyer é um grande escritor. Uma palhinha:

"O período dos anos inexistentes, como Nellie os chamava, chegou ao fim quando o 5-Spot ofereceu a Monk um lugar fixo pelo tempo que quisesse, até quando as pessoas quisessem ouvi-lo. Nellie ia lá quase todas as noites. Se não fosse, ele ficava inquieto, tenso, fazia pausas mais longas que as habituais entre um número e outro. Às vezes, no meio de uma série, telefonava para casa a fim de saber como ela estava, grunhindo, fazendo no fone ruídos que ela interpretava como uma terna melodia de afeição. Deixava o fone fora do gancho e voltava ao piano de forma que Nellie pudesse ouvir o que estava tocando para ela, levantando-se de novo no fim da música, metendo outra moeda na fenda.
       _ Está aí ainda, Nellie?
       _ Que bonito, Thelonious.
       _ Oêê, oêê_ fitava o telefone como se estivesse segurando algo excepcional."

P.S.: Ontem, enquanto passeávamos de carro, eu brinquei com a minha esposa, me referindo ao espólio dos pertences de seus pais que futuramente será repartido: "Que tristeza me deu ao ver seu pai gordo, o rosto corado, e sua mãe com aquele vestido curto mostrando as pernas bronzeadas". Eu continuava no mesmo tom, enquanto a Dani se contorcia de tanto rir. "E tudo isso às custas de meu dinheiro". E dobrei a esquina onde nos esperava o parque do lago e o sol radiante da manhã.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A hora de abandonar uma ideia



Eu valorizo muito o humor na literatura, a maior parte de minhas obras preferidas é de livros que tem um grau de hilaridade acentuadamente metafísica, e essa maioria fundamentou minha maneira de ver o mundo e agir comigo mesmo e com as pessoas. Mas descubro ao longo da maturidade que a seriedade vem sendo danosamente menosprezada. Há mesmo um preconceito em torno da seriedade. Quando eu penso em seriedade, essa palavra já demasiadamente feia, me vem à cabeça Jean-Paul Sartre, talvez o escritor mais bem situado no rol daqueles que jamais voltarei a ler, justamente porque sua seriedade excessiva me indispôs completamente com ele. Livros como O ser e o nada, parecem-me uma pedra de certezas que só pode ostentá-la os supremamente ignorantes, e junto a ele vem a trilogia ilógica que o filósofo do existencialismo compôs, de mais de mil páginas, sobre a vida de Flaubert, justo o mais conciso dos escritores. A seriedade sartreana me indispôs com os modelos recorrentes que aparecem para interpretar ora ou outra seja a economia, a política, e existência, a metafísica, a existência ou não de deus, ou seja lá o que for, de maneiras que, em negativo, Sartre sempre foi muito útil para mim, e sua anã branca de sisudez foi um denominador do humor libertário que está em direção oposta à sua escrita (o que dizer do humor de Sartre, que nunca existiu, ou só teve uma leve tentativa no primeiro conto de O muro, do qual não me recordo o nome, mas que causa aquele azedume das piadas sem graça quando vemos que o herói da narrativa é poupado da morte por seus carcereiros quando, mentindo sobre o local aonde estão escondidos seus companheiros do movimento dissidente, acaba por acertar involuntariamente, o que lhe garante a liberdade às custas da vida deles?; ou a história mais triste em torno de Sartre, a de seu tradutor brasileiro, que também não recordo o nome, mas que se preparou toda a vida, desde que confrontado pela sensação de burrice diante o calhamaço original de O ser e o nada, estudou a língua francesa e se profissionalizou nela, durante anos e anos, para poder voltar e traduzir por mais anos e anos o livro chave da filosofia de Sartre, esse mesmo O ser e o nada que se encontra solidamente esquecido no bastião das obras excêntricas pelo que tem de vazio e egolatricamente pomposo).

Mas, à medida que venho abrindo mais minha mente e procurando me destituir dos tantos fardos mentais que se acoplaram às minhas costas ao longo dos anos, a seriedade honesta tem me parecido mais benéfica e produtiva para os contingentes atuais do que o humor iconoclasta. O humor é maravilhoso, e talvez por sua sutileza (o nível mais excelente dele), o humor vem se tornando uma peça de contemplação agraciada por pessoas treinadas pela estética para perceberem o que tem de enorme adstringência. Mas isso acaba sendo apenas um placebo pelas estranhas exigências da mentalidade que vem dominando a esfera da comunicação atual. Recentemente escrevi nos comentários do blog do Milton Ribeiro, em referência a um post sobre sexo e livros, que eu tinha uma namorada que lia enquanto nós dois transávamos, e eu tinha que avisá-la que o exercício físico havia terminado, tamanho o envolvimento dela com a leitura_ e, a subliminaridade que deveria acionar a claque, a minha ineficiência total como amante_, mas eis que alguém comenta em resposta que se eu não conseguia satisfazê-la era porque eu era um péssimo amante. Não que esse meu humor seja exemplo de humor superior, o que definitivamente não é, mas não deixo de me assustar quando vejo essa prontidão à literariedade das pessoas que usam a net. Em outro post do Milton, eu escrevi que minha canastrice em ser contrário às ideias do dono do blog era o que me tornava interessante, ao que uma jovem muito bem afiada nos domínios do português me respondeu que era uma puta pretensão minha me considerar interessante, coisa que para os padrões dela eu não era em absoluto. Esses dois exemplos sobre o universo das interações da net, que logo logo estaremos abrangendo tal termo para o modo geral de interação entre as pessoas (cada vez mais relegadas à vida cibernética assepsiada pela ausência de contato físico recíproco), me revelam duas principais transformações assombrosas: a falta de percepção das nuances da leitura ou das riquezas da linguagem, e o desprezo contumaz para a humanidade de quem está lá do outro lado da tela. Quando eu me decretei interessante, eu ressaltava não uma vantagem genuína que fosse só minha, como a moça entendera, mas uma qualidade inerente a toda e qualquer pessoa, visto que eu acho interessante a velhinha da fila do banco com seu guarda-chuva, o homem de olhar atordoado por um evidente retardamento que vende picolés na praça, a moça de shorts jeans que masca chiclete com ar desoladoramente desafiador debaixo da árvore da escola, e mais não sei quantas outras: é mesmo impossível encontrar alguém que não seja interessante, o que este espécime raro já teria, paradoxalmente, algo de muitíssimo interessante (como Bartleby; ou como o primo de um amigo meu que foi fazer um certame de concurso público no Tocantins e conseguiu a proeza inigualável de não acertar nenhuma das questões da prova, o que eu esbravejei com a mais inconsciente seriedade de que ninguém mais do que ele dera mostras de mérito legítimo de ocupar o cargo, pois tirar a nota máxima era muito mais fácil que isso). 

Há uma tendência, que deveria ser avaliada com a devida ciência, da inteligência estar tomando um rumo errático pela vereda mais fácil, deixando as idiossincrasias e demoras re-avaliativas em segundo plano. Vejo no grande romance de Proust a seguinte frase: "Porque a minha inteligência deveria ser una, e quem sabe mesmo se não existe uma só inteligência de que todo mundo é co-locatário, uma inteligência para a qual cada um de nós, do fundo de seu corpo particular, dirige os seus olhares, como no teatro, onde cada qual tem o seu lugar e onde existe apenas um único palco". A julgar por essa teoria, estamos sofrendo uma severa contra-ofensiva de forças de dissuasão, vindas das frentes que convenciona-se atribuir a raiz de nossa festejada revolução tecnológica, e tais forças vem diminuindo o calibre do filtro que nos liga à essa inteligência universal signatária. Pois bem, diante essa constatação, não há muito o que se fazer, nada pode refrear o andamento da espécie e aprendemos nos bancos colegiais que toda a evolução é positiva, sempre caminha para a adaptação (e não para a melhora). Baseado nisso é que venho sofrendo uma elucidação em torno da importância da seriedade.

O que mais me chamou atenção em A morte do pai, romance de Karl Ove Knausgard, é como o autor sabe usar bem a seriedade. Knausgard é sério sem ser pedante, austero ou chato, sem a pretensão cósmica de sistematizar uma visão a partir de sua vivência pessoal. Mas ele é sério no sentido de respeitar o grande nível de interesse que tem seus pensamentos, sua personalidade, a velocidade de seu andante no tempo. Ele respeita sem qualquer constrangimento seu pleno direito de ser lento. E ele maneja muito bem seu direito de ser mais que uma entidade feliz e rasa da ausência de personalidade das redes sociais, virtuais ou não: ele se decreta alguém que tem uma voz e sua autenticidade de usá-la, sem que para isso use as armas de justificação e pedidos de desculpas da ironia e do humor suavizante. Knausgard é sério a uma altura desapegada da ortodoxia cansativa que a seriedade alcançou no século XX, com suas escoras na dramaticidade romântica de algum niilismo existencial; ele é sério de uma maneira quase pura ao se mostrar um pai de família lutando contra os amaneiramentos da rotina familiar para conseguir se tornar um escritor, e restituindo na escrita as lembranças perdidas do códice de sua vida. Ele contempla sem vergonha o material mais legítimo e rico que um escritor pode ter, a sua própria vida, com uma percuciência e cuidado instrumental do botânico que estuda minuciosamente os interstícios anelares de uma sequoia centenária. Ele se vê como alguém sagrado debaixo de todas as malhas da insignificância compulsória que a vida cotidiana se esforça massacrantemente para enterrá-lo. E a forma despida de vaidades comezinhas, a forma sincera e aplicada, com que faz isso, mostra para mim que essa atitude da escrita talvez seja a mais adequada para os tempos de hoje, não porque haja a necessidade de se converter os estúpidos, mas porque talvez o humor e a fábula já tenham dado tudo o que tinham para dar e tenha chegado a hora de deixar essas roupagens descansarem. O que Knausgard vem fazendo, e não só ele, mas Javier Marías e alguns outros, pode ser a nova revolução da literatura. Toda revolução é uma demarcação de uma re-valorização do passado, um acirramento, por isso esses escritores recorram aos esquemas de Montaigne e Proust. Numa era de rapidez e apagamento no fulgor das telinhas colorida, o que há de mais resistente e subversivo do que anunciarem-se como seres interessantes, com voz, recolhimento? Knausgard e Marías_ e Sebald e Nooteboom_ vem apontando a linha imortal da literatura, que é a da renitente afirmação do humanismo.

Essas reflexões sem cola e nexo, díspares, me vieram porque chegou a hora de abandonar uma ideia que eu vinha trabalhando ao longo desses últimos dois anos. Talvez tenha chegado a hora de ser mais desavergonhado, mais destemidamente sério. 

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mais um Bellow



Mais um dos grandes e indispensáveis romances de Saul Bellow será lançado pela Companhia das Letras: O Legado de Humboldt está previsto para chegar às livrarias no dia 19 deste mês. A editora está, finalmente, corrigindo o erro do mercado de livros nacional de não tratar esse que é um dos maiores autores da língua inglesa dos últimos setenta anos com o devido respeito que ele merece. Este romance em particular se distingue por ser o que tem a linguagem mais ágil entre as obras de Bellow, o que se percebe desde a primeira página, em que o leitor que não conhece as tantas artimanhas deste escritor pode até pensar que ele anda pelas veredas da literatura beatnik e dos herdeiros de Hemingway. Mas, logo, o impacto das nuances do estilo e da inteligência de Bellow mostra a missão deste livro: um movimentado romance reflexivo, que abrange profundas questões espirituais e culturais, no melhor estilo entremeado com a ensaística ácida do autor de Herzog. A tradução é inédita, de Rubens Figueiredo.

sábado, 6 de julho de 2013

3 leituras para meus próximos meses

Foram-me entregue nessa semana os seguintes livros que solicitei à Companhia das Letras:

A já tida como clássica biografia do manifestante negro Malcolm X, escrita pelo historiador Manning Marable,  falecido assim que concluída a obra, e que foi premiada por um Pulitzer póstumo em 2012. Leio na orelha do livro: "Ladrão, agenciador de prostitutas e viciado em drogas na década de 1940, quando também conheceu os horrores da prisão, ele abandonou o crime para abraçar com sua oratória brilhante, amparada em leituras autodidatas e nos ensinamentos do Alcorão, uma luta sem quartel contra o racismo e a injustiça."













Todo Aquele Jazz, (título inventado de um oportunismo que não me parece muito feliz, já que o original se chama But beautiful: a book about jazz), o curioso volume de um gênero novo de literatura, o conto-jornalismo, em que seu autor, o romancista e ensaísta inglês Geoff Dyer, produz peças que misturam ensaio e ficção sobre momentos cruciais das vidas de grandes jazzistas, "Chet Baker e seu rosto arruinado ainda jovem, Art Pepper e seus desvarios na cadeia, Lester Young viciado em qualquer droga a seu alcance, Thelonious Monk paralisado pela doença mental". A obra é de 1991, mas só agora foi lançada no Brasil, e de lá para cá já adquiriu status de peça literária comovedora e de beleza instigante, não só para os entusiastas do jazz, mas também para os amantes da boa literatura. Esse eu já programei para começar a ler na segunda-feira.



As agruras do verdadeiro tira tem sido visto pela imprensa e por sites literários como uma obra relevante de Roberto Bolaño, mas cujo caráter disperso na forma em que esse romance póstumo foi desencavado e montado de rascunhos do computador, manuscritos inéditos, e excertos de outras partes da bibliografia do autor, recomenda-se que seja lida por já conhecedores da escrita do chileno. É uma obra vultuosa, de 316 páginas, feita com o carinho típico que vem dedicando os editores e os herdeiros do espólio de Bolaño. No prólogo, vem o interessante make-off da composição a várias mãos da montagem das peças do romance, tido por Bolaño como o "MEU ROMANCE, oitocentas mil páginas, um enredo louco que não há quem entenda". Como vem sendo cheia de idiossincrasias, do prosaico ao estranhável, minha convivência com Bolaño, também a vinda desse livro tem sua história: eu o pedi assim que lançado, há seis meses; o envio foi confirmado pela Companhia das Letras, que é sempre idônea nesses assuntos; mas nada do livro chegar. Deixei por isso mesmo, considerando que seria deselegante reclamar de livros que eu considero como presentes. Mas eis que eu escuto meu cão Miles Davis latindo com o timbre sinalizador para que eu corra rápido para a garagem porque tem um evento muito estranho acontecendo por aqui, e vejo o pacote da Cia todo dilacerado pelos dentes do Miles, e nenhum sinal do carteiro. O Miles teve tempo de perceber que se tratava, enfim, de mais um livro, e inteligentemente parou de morder, mas ficou uma marquinha do canino no canto da capa. Achei um tanto inconvencional que o Júlio, nosso carteiro, tenha arremessado o livro sem me chamar_ constrangimento por terem visto o atraso de um semestre para a entrega de uma encomenda que, talvez, tivesse caído no vão de uma mesa, e só descoberta agora. Vá se saber. Coisas de Bolaño.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Nesta noite de sexta-feira desterrada do infinito


Buensalvaje


Talvez essa publicação não seja conhecida por aqui o tanto que deveria. Fica aí a dica, que julgo preciosa. O site (aqui) tem todas as edições disponíveis em pdf.


Da abdução celestial em quartos vagabundos escuros



Sempre que pego Proust para ler, reler as passagens sublinhadas, ou me preparar para enfrentar os volumes do romance que me esperam, lembro-me da informação um tanto surpreendente de que Kerouac foi um de seus ardorosos leitores. Li, acho, On the road umas três ou quatro vezes, ou talvez mais, não sei, não fico contando. Lembro que uma das leituras, a primeira, foi na adolescência, movido pelo rock´n´roll, Jim Morrison, as modas colegiais que incentivavam tanta coisa bombástica que tinha a qualidade de se exaurir com o mesmo potencial de escândalo (coisas como Sartre, que nunca mais li e nem tenho em minha biblioteca, ou a literatura juvenil contestadora que se fazia no Brasil da época), e, com esse arsenal, o livro me pareceu extremamente bom, extremamente enérgico, mas perigoso. Talvez pelo sexo, pelas drogas, pela homossexualidade_ o cara que eu era, como seria bem natural, se espantava com essas coisas_, o livro tinha um empecilho que impedia com que me lançasse deliberadamente a ele. Esse medo da leitura era recorrente em minha primeira juventude, às vezes motivado pela incompetência dos professores de literatura, o que me levou a só entender o satânico, imperial, raivoso, ateu extremista do Nietzsche anos depois (começou em uma tarde suave em uma biblioteca pública em que Nietzsche se descortinou com toda sua beleza desprotegida e combativa na frase do Zaratustra, algo como "só estamos nessa vida por um motivo: pelo amor"). A segunda vez que li Kerouac, que me lembro, foi quando readquiri On the road, que eu havia perdido nas minhas andanças, ou doado, ou aceito a vilania irremediável de trocar dois livros por um em um sebo, na edição de bolso, e o reli religiosamente nas noites sequenciadas de uma mesma semana, religiosamente acompanhado por duas doses de uísque. Era uma semana de frio intenso, e eu colocava a cadeira na varanda, talvez inconscientemente atendendo à recomendação de mais um dos símbolos em torno de Kerouac, o Raul Seixas, me cobria com um cobertor, e deixava tocando uma seleção de álbuns do Grateful Dead. Assim, me parece de uma vivência sinestésica única a viagem de Kerouac na carroceria sem escoras de proteção, junto a um índio, a um negro, e a outras pessoas de olhares introspectivos e sonhadores, dirigida por dois irmãos malucos que quase matam todo mundo e que sempre arvoram um enternecedor sorriso de santa inconsequência quando param nos postos de gasolina da estrada para abastecerem e comerem um engasga-gato.

É estranho, num primeiro momento, que a companhia dessas viagens para Kerouac seja o grande romance de Proust. Nenhum autor parece estar no outro extremo de influências para Kerouac que Proust, e nenhum estilo mais distante do de Kerouac que do francês. Mas a gente vai percebendo, fascinado, que a mesma fluidez, a mesma paixão visceral absoluta pela literatura, perpassa com igual veemência Proust e Kerouac. Imagino a felicidade de Kerouac, nas beiras da estrada, debaixo de uma sombra de árvore, nas margens tranquilas de rios, nos quartos vagabundos das grandes cidades, em que esteve sempre de passagem no momento em que vivia as andanças de On the road, retornar para a língua de Proust, para o universo abundante, generoso, infinitamente humano, contestador e sensível, e deixar-se transpassar pelo jorro de humor inteligente, a corrente metafísica de Proust. Imagino como a miséria ficava constrangedoramente invisível para o Kerouac estancado nas paragens espirituais de Em busca do tempo perdido, o quanto as filas de espera dos banheiros tenham sido indiferentes para o adrenergisado íntimo do viado mais genial e livre entre a maioria opaca e sensaborica da humanidade. O quanto Kerouac ficava incendiado de felicidade por estar à mesa da erudição onipotente de Proust. (Algo me vem também à memória quando penso nisso, no único leitor da minha família, o único erudito roceiro que não pertencia às castas burras dos diplomados que só leem manchetes de jornais do restante de meus tios e primos, meu pai, que no meio da floresta retirava Cem anos de solidão do alforje, após um dia glorioso de trabalho suado, e se punha a ler, enquanto lhe acalentava o som da chuva torrencial amazônica batendo contra o teto da pequena e isolada marcenaria. O dia que o reencontrei nesse seu ambiente, após ver na estante de sua casa de madeira uma pequena coleção que ia de Thoreau, Tolstói a miscelâneas de passatempos como William Peter Blatty, ele estendeu os braços para as árvores e me disse, sem que eu o tivesse consultado verbalmente: "Deus também está aqui!".)

A última vez que li Kerouac foi a edição definitiva, sem cortes e com os nomes reais dos personagens de On the road, e também desta vez estava ali o fascínio, e a deliberada presença alternante de Proust. Há muito, como deve ser óbvio, eu já alcançara a maturidade ao menos suficiente para ler o americano sem filtros e sem preconceitos. Me parece agora, de forma muito intima, bastante semelhantes esses dois escritores, ressalvadas as grandezas da ortodoxia. Me parece que uma frase como essa, "meu pai dedicava a meu gênero de inteligência um desprezo suficientemente corrigido pela ternura, de modo que tinha afinal uma cega indulgência por tudo quanto eu fazia", tem o mesmo grau de concentração e beleza para ser outorgada a qualquer um dos dois, ainda que a intuição diga que é de Proust. E os vagabundos iluminados me parecem muito próximos e indistinguíveis de Proust...

Em outro lugar



A verdade para Tarkóvski nunca é um fim alcançável, uma possibilidade de satisfação consciente que permita uma harmonia mediadora entre o tempo em que vivem os personagens e o tempo do mundo que os cercam. A verdade para Tarkóvski é sempre um sopro incognoscível, presciente, cuja grandeza alienígena não se presta sequer à intuição da loucura; está além e em volta de tudo mas a uma distância contraditória que é ao mesmo tempo friamente indiferente e gestativamente vigilante; sua efemeridade insuportável faz com que os heróis tarkovskianos que existem para a tentativa obsessiva de alcançá-la procurem ficar de frente para onde sentem que sua força emana, o que, em decorrência, faz com que eles não sejam mais deste mundo, abdiquem de compartilhar a velocidade do dia. Por isso, diante o inominável inexequível, os personagens de Tarkóvski são apresentados como paisagens internas, são largos panoramas desérticos, imensos silêncios, uma fremente e budística imobilidade, e assim sabemos quais os materiais de uma angústia cósmica compõem seus puros mobiliários espirituais, podemos viver em eterna lembrança retardatária em suas companhias dissipadas por não conseguirmos mais retirarmos de nós aquelas arquiteturas descomunalmente vazias e absurdamente belas. 

Assim, em Nostalgia, o herói exilado na Itália é uma pradaria russa em que vivem em eterna e inapreensível felicidade a família que deixou para sempre, e uma catedral inacabada com colunas magníficas que sobrepõe ao primeiro ambiente; o professor louco, que mantinha em cárcere privado a esposa e os filhos para protegê-los da fúria do mundo, é uma casa escura e em ruínas, com infinitas goteiras, úmida com água represada por toda parte, com uma porta inútil que abre para o mesmo lugar no meio da sala, e também uma praça na cidade onde ele prega a revolução do alto de um andaime para uma multidão congelada e sem vida. Mesmo os personagens secundários são vestígios de uma partida, a importância que suas simploriedades limitadas revelam em estarem apenas na materialidade do presente é carregada de uma falibilidade fóssil, pois os vemos no continuum temporal em que existiram e desapareceram para sempre, são fímbrias da lembrança, às vezes fagulhas de luz veranica constrangedoramente felizes; é o caso da belíssima mulher que acompanha o herói de Nostalgia, para a qual suas investidas se batem contra a total abstração e desinteresse deste, sua total indiferença às jogatinas sexuais dessa rasa faixa da realidade. Vemos a beleza saudável, plena, exsudante dessa mulher de Botticelli, sua juventude clamorosa, e por um momento pensamos no peso da perda de possibilidades lenitivas que poderia recair sobre o herói; mas então a mulher de Botticelli aparece longamente, o foco em seu rosto angelical cuja tristeza da rejeição é mais um acréscimo à armadilha, e vemos a deterioração acontecendo em sua lentidão irreversível; vemos uma papada incipiente e a ressequidão da pele, as marcas feitas pelo efeito colateral da corrente de tantos pequenos e acumuláveis sofrimentos de se optar em viver no pragmatismo degradante dessa terra; vemos os hormônios e a química intranscedente agindo em seu poder inexorável que corrói sem piedade a lâmina fina da passagereidade encantatória. Tanto que essa mulher, quando desiste com furiosa zombaria do herói, retorna à sua paisagem interna, mostrada em um escritório de alguma repartição pueril, em que um gordo homem de terno sentado a uma mesa passa para um outro homem molejamente sobejado pela corrupção burocrática um maço de dinheiro.

Os ambientes dos filmes de Tarkóvski tem sempre paredes calcinadas, um ar sépia devastador que ressalta a solidão, como se isso tudo fosse um dos efeitos desse sopro salino, radioativo, da verdade. E o impacto é que essa verdade inaudita consegue ser passada para o expectador, no modo como Tarkóvski divide a impossibilidade efetiva de sequer podermos ver os contornos das sombras que ela provoca.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Relendo 1984



Com as manifestações que tomaram conta do Brasil, me vi com a propensão a me voltar à leitura de tudo que fale sobre opressão social, massas, dominação política, capitalismo/socialismo, lutas de classe, grandes manifestantes da história e congêneres, história oficial e paralela, alienação, indústria cultural. Fui tomado pela intuição feliz de retornar a um grande autor da minha adolescência, o George Orwell, alguém do qual só li 1984 e nada mais. Estou, pois, relendo 1984, na edição generosa da Companhia das Letras, dessas edições caprichadas, que revelam amor, em que desde o trabalho gráfico à revisão do texto se percebe perfeccionismo. Não há nenhum errinho no texto, o layout é modernoso, com páginas iniciais com algo do grafite e da arte pop americana, e, além, claro, do romance em si, o formidável são os três ensaios que vem de bônus, de ninguém menos que Erich Fromm, Ben Pimlott e Thomas Pynchon. Meu volume é a nona reimpressão. Estou na página 202. Li-o quando tinha lá meus 15 anos, e recordo que foi uma experiência impactante. De tudo, me ficara o peso de vidro para papéis com um pedaço de coral dentro, em que descem minúsculas partículas brancas simulando neve no interior, que Winston Smith comprara em um antiquário no mercado negro, e a cena terrível de quando, aos 12 anos, Winston exige para si toda a ração de chocolate da família (três onças, como está no romance), levando a mãe e a irmã famélicas à morte. Essa cena voltou à minha memória assim que a relia hoje, após décadas. A cara "parecendo um macaco" da pequena irmã de Winston, de tão raquítica; a forma como a mãe a abraça, diante o homicida egoísmo de Winston, em uma instintiva desproteção, sabendo que iriam morrer. Me deu a impressão de que é uma das cenas mais terríveis da literatura. E tudo na obra é derivativa, faz pensar, assombra, enternece, aterroriza, emudece. Há tantos conceitos ali que servem a entender os rumos da sociedade, que Orwell atingiu uma posição de um estranho profeta científico. Os termos que ele inventou podem soar com um eco ingênuo hoje, diante aos descalabros muito mais complexos da alienação atual (que dominam pelo ardiloso estratagema do prazer, e não da privação, como supunham Orwell e Huxley, o que é particularmente tão cruel e mais indefensável), mas em sua concisão vemos que Orwell criou uma parte importante tanto do imaginário do século XX, quanto de um novo gênero da escrita_ a distopia. Termos como despessoa, com sua burocracia seca, rigidamente limitada, ainda conservam uma intuição maléfica de força, principalmente quando vemos que a NovaLingua orwelliana tem em si uma miríade de informações sobre a retórica coercitiva do poder: uma linguagem plástica, despersonalizada, asséptica, que mutila as nuances da inteligência para tornar a dominação absoluta. Despessoa é, simplesmente, o indivíduo que, pela mínima suspeita que lhe caia em cima, é eliminado pelo Partido. Uma eliminação que apaga sistematicamente qualquer menção de seu nome dos registros oficiais e mesmo do direito de que seja lembrado. Claro, vivemos em um mundo melhor, a internet é uma revolução sem igual para a democracia, mas mesmo assim me fica algo de desconfortavelmente premonitório e atual nesse livro de Orwell, ele estando a dizer que a mente da supressão da personalidade para a serialização do homem está sempre trabalhando. Vou concluir 1984 e vou passar aos outros dois Orwell que tenho em casa, A revolução dos bichos, e O caminho para Wigan Pier.



quarta-feira, 3 de julho de 2013

A doença da leitura



Quando eu era bem mais jovem do que sou hoje e morava com minha mãe, era uma cena irritante para minha mãe me ver lendo. Lembro que uma vez, num acesso descontrolado de preocupação quanto ao que via de indícios de baixa competitividade em mim, ela abriu a porta do meu quarto, em que eu estava sentado na cama, ouvindo uma música, com um livro aberto nas mãos, e me questionou: "você pretende passar a vida assim: lendo e ouvindo música?". Quando seguiu adiante, abaixei o livro e me observei com um acento forte de culpa: na verdade, de forma consciente ou não, esse sempre foi o projeto da minha vida. Ainda hoje, me vem ressaibos infantis dessa culpa, quando, em minha biblioteca, eu paro momentaneamente a leitura e me analiso pelos olhos da minha genitora. Há sim uma carga de preconceito por parte da minha família, que pode parecer estranho num primeiro momento, quanto à minha propensão incurável para a leitura. Analisando essa rejeição mais detidamente, soa natural que eles vejam o tempo gasto na inércia diante um livro como uma descompensação monetária criminosa em que eu poderia estar honrando a tradição do clã pela política canalha, pelo comércio, pela advocacia inescrupulosa, pela ascensão social de parecer ter um glamour convidativo que leve sempre a um indeterminado investimento dos mais ricos em você. Essa foi_ se eu tivesse que resumir um tanto de traumas por minha negra ovelhice para um psicanalista_ o maior dos muros para a minha emancipação, a barreira mais espessa que tive que atravessar para me tornar independente e seguir a vida do meu jeito.

Sou visto pela minha família como um pai fundamentalista. Tive brigas homéricas e as venci todas para firmar que eu crio meus filhos da minha maneira. Hoje, quando meus filhos passam um final de semana sem mim na casa da minha mãe, é com uma infinita cautela que minha mãe e minha irmã (que moram juntas) perguntam à minha esposa sobre se é permitido ou não determinado tipo de comida, ir a determinados lugares, comprar determinados brinquedos. Minha análise de meu passado me mostra a surpreendente (para mim) verdade de que, por debaixo de minha total aparência de passividade e submissão e silêncio quanto aos anos em que vivi dependente de minha mãe, havia sim uma estratégia militar da minha parte para sair daquele ambiente: havia um cálculo subliminar muito sério que me deixa um tanto orgulhoso daquele jovem de cabelos compridos e desmanzelado que eu era. Uma das minhas lembranças recorrentes de meu tempo de universitário é um incidente trivial: eu andava em direção ao centro comunitário do campus, em total aleamento, quando um professor me parou com ar bonachão e me perguntou: "Porra, porque você é tão triste?". Isso me atordoou porque nunca me passara pela cabeça o exercício de tentar me ver como os outros me viam: sempre tive como certo a minha inexorável alegria, mas a leveza que eu apreendera dos meus anos de leitor (o paradoxo socratiano nada paradoxal de ver que tudo é de uma banalidade e de uma inapreensibilidade redentora) só era um fato para mim; para os outros, eu tinha algo de filósofo rembrantiano precoce (lembro das gargalhadas de um namorada, que a levou a um engasgo com um copo de água, quando, segundo ela, minha cara de extrema seriedade se desvaneceu quando passei a assobiar o tema do desenho do fantástico mundo de Bob). Lembro que, já formado e trabalhando na minha área, uma colega de classe com a qual só troquei, nos cinco anos de universidade, umas poucas palavras cordiais, me disse, no meio de uma jornada de exames profiláticos que fazíamos em algumas granjas de suíno, que sempre havia me visto como um cara banal, sem conteúdo, o mero agente cotidiano do status quo, e que se surpreendeu quando um outro colega lhe disse que eu era o cara que ele conhecia que mais entendia de música. Então esse é mais um sinal emitido pelo meu mundo espiritual, pensei, mais uma onda de rádio vindo desse distante ambiente interior do qual vou dando as caras. E é por isso que pareço tão radicalmente obtuso na criação dos meus filhos, para minha mãe e minha irmã e o resto da família (se bem que o resto há muito já atingiu o estágio benéfico de só pensar em mim nos atos sociais de escrever um plástico elogio no Facebook): porque descobri que os anos de isolamento contra a morte e a corrupção que passei trancado em um quarto no apartamento da minha mãe, ou em uma praça, ou em tantas bibliotecas acolhedoras ao ócio de final de tarde, trouxeram, afinal de contas, a sua resposta efetiva, foram trabalhando na surdina, como um troféu bíblico insuspeitável, para me transformar em um produto humano moldado na forja de concepções da infância bastante ingênuas mas que foram respeitadas pelo que fui me tornando paulatinamente como num código de fidelidade sério, que nunca aceitou a zombaria pejorativa que me envolvia.

Eu sempre tive o medo de que essa voz depreciativa da minha mãe se infiltrasse entre eu e meus filhos. Quando os pego no colo, atendendo ao pedido deles de que eu leia para eles, às vezes vem a visão discriminativa da minha mãe sobre os mais que dúbios benefícios de levar seres numa idade exponencialmente antenada para o aprendizado do mundo a se afundarem na leitura. Meu senso de paternidade dispara com uma incrível imparcialidade diante o que seria melhor para eles, mesmo que o melhor seja a contramão do que é o melhor para mim. Meus filhos dispensam a televisão para folhearem livros. Minha esposa me disse que eles estão se tornando piores do que eu, o que me dividem o orgulho e o receio. Algumas vezes eu tenho que pedir para eles me deixarem em paz (com jeito), porque sempre estão com livros e solicitando meu colo. Na livraria da minha cidade, eles se sentam nos banquinhos e ficam falando na selvageria deliciosamente sem pompa das crianças sobre os livros que pegam nas estantes, completamente abduzidos pela felicidade e deslumbramento, como se os livros fossem brinquedos fascinantes, o que me deixa mais uma vez apreensivo, pois, agora tendo aprendido a me ver pelos olhos dos outros, me policio se os outros não encararão isso como esnobismo, elitismo ou o que seja: só sei que vou rindo constrangido, freando meu júbilo, quando eles pegam um voluminho de pinturas e gritam: "papai, a Mona Lisa! O Van Gogh, papai!".

Ouço o engulo silencioso da minha mãe e da minha irmã quando elas pedem para falar com o Eric e a Júlia, e recebem um lacônico "eu estou lendo" da parte deles. Uma das últimas vezes que minha irmã nos visitou, eu agi bastante mal: ela, entusiasmada com uma súbita ideia, disse que iria comprar um conjunto de fogãozinho e panelas para a Júlia, ao que eu, instintiva e rispidamente, disse que esse tipo de brinquedo não entra aqui em casa. Ela emitiu um extenuado "por que não?", beirando ao extravasamento da revolta, "é apenas um brinquedo, só isso". Ao que eu caio na sandice sem volta de tentar lhe responder que nunca um brinquedo é só um brinquedo, que estamos num mundo de dominação e imposição de castas, e que as crianças são os principais alvos (a mente trabalhando à toda, pensando que, se minha irmã tivesse a mínima propensão a esse tipo de diálogo, poderia lhe falar sobre os textos sobre brinquedos de Walter Benjamin, e sobre o apascentamento da indústria cultural em estabelecer os meninos como guerreiros urbanos com seus carrinhos e suas pistolas de plástico, e as meninas como domésticas reprodutoras com suas bonecas e fogõezinhos inofensivos), mas o que consigo é apenas ser um bruto sem educação que leva minha irmã a um ataque de choro. Diante o estrago já feito, eu tenho o sangue frio de reconhecer que aquela é mais uma das ocasiões em que tenho que manter meu poder e ser intransigente, para firmar que de nada adiantam essas tentativas de chantagem emocional para relativizar meu modo de educar meus filhos. Minha irmã arruma as malas e diz que vai embora, minha esposa pede para que eu lhe peça desculpas mas isso só me faz ficar ainda mais parecido a uma pedra; afinal, ela não vai embora, mas passa o final de semana amuada comigo e vamos nos aproximando pouco a pouco.

E na verdade, o que vejo é que estou criando meus filhos para serem preparados para um mundo que me parece avançar para um lamentável nó de instabilidade e incertezas. Na verdade, minha irmã é uma antítese e um modelo parcial do que pretendo que meus filhos venham a ser. Antítese pelo que ela tem de um inconsequente desconhecimento do mundo que vai além do perímetro de sua atuação profissional e pessoal cotidiana, uma alienação completa sobre a história, o passado, sobre as nuances. Modelo porque minha irmã, tanto quanto minha mãe, são trabalhadoras acirradas, ainda que limitadas pelo molde compulsivo de trabalho-trânsito-casa. Falta-lhes em absoluto uma riqueza interior, darem-se bem consigo mesmas. Minha irmã não tempo para nada. É uma moça linda, de caráter, pragmaticamente deu mostras de ser mais incorruptível do que eu. Quando eu estava desempregado, há dez anos, fui condicionado por minha mãe a pedir algum tipo de auxílio para meu tio, irmão da minha mãe_ a ideia hoje absolutamente suicida de que ele me apresentasse a um dos tantos pecuarista amigos dele para que eu exercesse meus préstimos de veterinário. Ele ficou me enrolando por um mês, em que me chamava ao escritório, e uma noite me levou para a casa dele, em um condomínio fechado de alto luxo (era vizinho do sr. Cachoeira), e propôs, numa estranha brincadeira, para que eu dormisse no carro_ o que não procedeu, pois ele riu e disse que estava brincando. Mencionei o fato à minha irmã, e ela, horas depois, telefonou para esse meu tio e disse as coisas mais ferinas e insultuosas possíveis. Eu não estava em condições de combate diante a constatação de que meus planos de emancipação estavam indo por água abaixo; o que fiz foi recusar a proposta dele de pagar um curso de direito para mim e me empregar em seu escritório como estagiário e futuro advogado da empresa, o que outros teriam visto como enorme vantagem, e segui meu rumo. Mas minha irmã, como grande parte do mundo, é uma discípula sem a mínima capacidade de questionamento da vida urbana neoliberal de ponto morto. Da última vez em que ela e minha mãe estiveram aqui, ela não desgrudou de seu i-phone. Me pareceu aterrorizantes os sintomas de uma abdução descerebrada que toma conta de todo mundo hoje em dia, o que me fez olhar para meus filhos com os olhos emprestados de minha mãe e pensar; eu deveria direcioná-los para esse fim?, afinal não seria menos doloroso e muito mais cômodo para eles que eles se emergissem para esse anestesiamento casular e vivessem sem se preocupar com as coisas que ninguém nunca vai conseguir mudar? Minha irmã tem um ótimo rendimento mensal, não é esse o propósito da vida? Não é esse o objetivo esperado? Na televisão, um apresentador pergunta em qual país as vacas são tidas como seres sagrados, e minha irmã desvia os olhos por um momento do i-phone (com o qual chama atenção para um jogo estúpido de estourar balões que enebria meus filhos) e pergunta "qual país é mesmo?", ela que sempre foi uma aluna notável, monitora de química e física, de uma disciplina espartana para os estudos, qualidades as quais não obtive nem um quarto da distinção dela. Ela precisa saber de uma inutilidade completa dessas, que serve agora para programas insossos de tardes de domingo? Uma vez, levei ela e um antigo namorado dela para um pesque-pague, e na estrada eles viram uma vaca com um chifre imenso, e se surpreenderam com o fato de que não só o boi tem chifre, mas a fêmea do boi também, e me perguntaram, com um desalento infantil, como chifres tão grandes passavam pelo canal da vagina durante o parto. Eu levei tempo para perceber que eles não estavam brincando, esses exemplares bem sucedidos do homo-urbanus moderno. Mas logo me vi pensando em Sherlock Holmes, ao revelar para um atordoado dr. Watson, em Um estudo em vermelho, que ele desconhecia a rotação da Terra e várias outra informações inúteis, e só ocupava sua mente com coisas que lhe interessavam para sua vida prática. E assim é a maioria, para quem as sutilezas da leitura e de constatações não mais tão naturalmente óbvias sobre a paisagem cercante não representam nada em sua progressão para um posto bem localizado e remunerado na grande fauna citadina. E o quanto as armas de poder de sua rede de conhecimentos faz com que minha irmã esteja anos à frente de mim, muito mais preparada darwinianamente para enfrentar o mundo, quando ela, como um mágico vaidoso, pede para que eu coloque no som a música mais inacessível e desconhecida que eu tenho, aponta em seguida o i-phone para o estéreo, e na tela líquida aparece a foto do álbum, o nome da banda e a música inteira para ser ouvida.

Mas me mantenho teimoso e fiel a intuições arraigadas. Mês passado levei meu carro para a retífica, e eles me devolveram um carro tão potente e novo tal qual quando ele saíra da concessionária, em 1997. Minha irmã vendeu seu carro 2010 e comprou um modelo zero quilômetro, financiando um valor alto em 36 meses. Ainda penso que a alegria é muito superior à felicidade, que aliás essa última não existe, e passar pelo mundo engolindo toda espécie de entregas superfaturadas e falsas para meramente atender a uma necessidade de pertencimento é trair a complexidade que nos é dada no início e sobre a qual, o mínimo que devemos fazer em retribuição, é nos mantermos sempre em um suave, ingênuo e ativo deslumbramento. A leitura sempre me ofereceu esse tipo de inferno: a da consciência do outro, da responsabilidade de não estar-se sozinho no tempo e no espaço. E se tudo correr bem, as derivações pelo caminho não sendo muito sinuosas, meu filhos continuarão recebendo esse presente.

P.S.: deparo com a “homenagem” do Google aos 130 anos do aniversário de Franz Kafka, bem ao estilo de mega-empresas da internet que não ligam a mínima para a leitura. Gregor Samsa apresentado como uma alegre barata que adentra pela porta, com pasta executiva, é o supra-sumo atestado de quem nunca leu Kafka. Uma das obras-primas do pensamento moderno transformada pelos eternos adolescentes do Vale do Silício em um clichê vazio e equivocado. Mas tudo tende ao “bonitinho”, e viva o conceito de boutique.