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domingo, 11 de janeiro de 2015

Leck mich im Arsch



Nos extras da edição em blu-ray dos 30 anos de O sentido da vida, há um vídeo de 1 hora de duração feito no ano passado em que os python fazem uma mesa redonda onde se dedicam a falar livremente sobre vários assuntos. Estão sentados em uma pequena sala em Londres, John Cleese, Michael Palin, Terry Jones e Terry Gilliam, enquanto em um monitor de tv colocado ao centro aparece on-line um Eric Idle com os olhos inchados pelo fuso horário de ter que acordar às 3 da manhã em sua casa nos EUA. É uma dessas ocasiões em que se sente a nostalgia antecipada de estar vivendo talvez um último momento histórico promovido por esses artistas inigualáveis e intelectuais do humor para os quais chamá-los de revolucionários é recair em um clichê empobrecido. Ainda que essa tristeza que o expectador sente diante a impossibilidade de resgatar essa uma hora do efêmero parece não ser sentida pelos 5 septuagenários ali presentes, pois estes falam e contam piadas e relembram com um poder mental que não equivale ao prejulgamento de suas idades, e planejam fazer um filme com os sketches não filmados de O sentido da vida. O grupo fala que grande parte do que fizeram seria impossível de ser feito hoje em dia, devido ao politicamente correto. Cleese diz sobre seu espanto da primeira vez que lhe falaram que  o sketche Ministry of Silly Walks seria condenado por ser ofensivo aos deficientes físicos, ou de que a cena do papagaio morto seria uma apologia à violência contra animais. E Gilliam diz que o mundo atual padece de uma indeterminação, de um anuviamento, em que as pessoas, por terem somente noções indeterminadas de pre-conceitos, usam julgamentos exacerbados como escudo de prevenção contra a falta de conteúdos gerais.

Assim como recentemente vi em uma entrevista com o Mario Vargas Llosa, eles, como o escritor peruano, demonstram uma total indiferença quanto à morte, o que configura a todos uma tardia  e perpétua juventude na qual cabe uma série de planejamentos futuros. Eric Idle diz que espera não haver uma vida após a morte, com a qual se revelaria muito cansado; já Cleese, que parece ser o eterno enfant terrible do grupo, diz não descartar a hipótese, e põe-se a narrar, com uma erudição prodigiosa, sobre experiências científicas de consciência além do corpo, ao mesmo tempo que ridiculariza o ateísmo desesperadamente iconoclasta de gente como Richard Dawkins. Cada um dos python conserva uma inocência, uma predisposição ao assombro, um maravilhamento, de tal forma que parece que tentam controlar isso para que a espontaneidade do momento não sobressaia à astúcia de terem de se mostrar bem situados na maturidade. No final, um deles diz que seria bom tornarem a se encontrar todos juntos novamente, mas dessa vez sem as câmeras, ao que um outro, com uma ironia sempre provocadora, responde: "Mas daí qual seria o sentido?"

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Alguns tem dito sobre a grosseria das charges da Charlie Hebdo. São desenhos mesmo os mais grosseiros e muitas vezes sem a mínima calibragem de humor e bom gosto. Causariam repulsa se, ao mesmo tempo, não houvesse a clara evidência de serem deliberadamente idiotas e infantis. Uma charge* como a que acabo de ver, em que a trindade cristã é representada em uma atitude escatológica que parece ter nascido de uma criança de 7 anos paupérrima em saúde mental, só poderia suscitar discussões sérias a respeito se fosse um produto isolado, uma exceção. Acontece que toda a temática da Charlie Hebdo é essa: a da iconoclastia sem método, sem charme, sem compostura, sem sutileza, propositalmente sem inteligência. A infâmia pela infâmia. E aqui, os críticos que caem na relativização dos atentados ao colocarem a culpa no barbarismo iconoclasta dos chargistas, críticos estes que se julgam muito cultos e conhecedores do que é bom gosto em termos de cultura, revelam uma drástica limitação, pois parecem desconhecer a verdade de que a grosseria, o mau gosto, está na raiz não só da cultura, mas da alta cultura. Se a Charlie apresenta um personagem santo, ou o próprio deus, na situação inconcebível de ter o ânus penetrado seja por um triângulo de luz, seja por qual objeto for, a memória do douto defensor de que os desenhistas de uma tal descompostura fizeram por merecer o destino que tiveram, deveria se lembrar de James Joyce, Rabelais, Shakespeare, Mozart, Dostoiévski, Petrônio, Pynchon, Gunter Grass, e uma série interminável de outros criadores.

James Joyce, não só em suas cartas a Nora Barnacle, que talvez sejam pessoais demais para serem exemplos de "mau gosto", mas em várias passagens de Ulisses. Eu poderia citar vários exemplos de grosseria em Ulisses, mas me limito a uma mesma cena de penetração anal por uma leguminosa no capítulo final da parte 2, capítulo esse recheado de situações com o mínimo do mínimo de etiqueta e bom gosto. Rabelais, em um dos capítulos iniciais de Gargântua, faz seu gigante promover um longo discurso sobre qual a tecitura ideal para um limpador de bunda perfeito. Shakespeare é, conforme Tolstói disse em um saboroso ensaio a respeito, o exemplo talvez máximo das letras do que seja o mau gosto e a ausência de finesse. Mozart tem em seu catálogo, extenso em peças obscenas, um cânone para seis vozes intitulado Leck mich im Arsch (Lamba meu cu). Dostoiévski é povoado de personagens grosseiros, como os que promovem uma cena em O idiota de cuspes mútuos. Quem aguentar ler as primeiras páginas de Satyricon sem embrulhar o estômago merece um prêmio, principalmente as descrições de um banquete em que sobressaem vulvas de todos os gêneros cortadas e coladas por cima de porcos assados e sobremesas exuberantes; e Petrônio foi um dos escritores preferidos de Nietzsche. Pynchon escreveu uma das mais grotescas (e talvez única) cena de coprofagia da história da literatura, entre as tantas desfaçatezes que escreveu em seus livros. Gunter Grass nem se fala. Garcia Márquez nem se fala.

É uma desculpa à apologia ao terrorismo dizer que o mau gosto justifica o massacre. É tão grosseiro ver a gritante desumanidade de um argumentos destes, que a mente esclarecida passa a enxergar o quanto uma revista como a Charlie Hebdo é imprescindível. Gente como o cartunista Latuff, como alguns outros oportunistas que pegam carona para se promoverem com o fato, dizendo que jamais trabalharia na Charlie Hebdo, e expedindo um discurso pseudo-engajado cheio de tons pomposos. Personificam o islã como vítima ao mesmo tempo em que não veem a incoerência de representarem o islã nos terroristas ao relativizar-lhes a culpa. Não tem o bom senso de afirmarem que os que professam com seriedade a religião de Maomé nada tem a ver com esses terroristas, mas confundem ainda mais o discurso de suas cartilhas de correção política ao condenarem os cartunistas massacrados, porque eles mexeram indevidamente com o islã. Se fosse em um tribunal de júri, eles seriam as principais testemunhas de acusação contra o islã, e não seus defensores, como supõem. Em contraposição a essa pelica exagerada, a essa assepsia do toque, a essa intelectualidade de salão que vemos no Brasil, uma revista como a Charlie Hebdo é um soco no estômago desses esnobes oportunistas, esses carniceiros engajados em sobrepujarem a falta de talento com suas vozes de carpideiras solenes. O que sobra disso tudo é que a Charlie Hebdo passa a ser um ícone de genialidade, fundamentada pela prova de que o riso é muito mais perigoso do que a doença dos que não sabem rir e tem uma exagerada noção de suas importâncias; passa a ter a próxima tiragem, de uns poucos mil, para mais de um milhão, e reforça a até então indeterminada função exercida de ser o sub-consciente livre de uma sociedade cada vez mais obstruída pelo enrijecimento mental. É claro que alguém como o Latuff jamais trabalharia lá.

* Ao ver um desses cartuns da revista, me voltou na lembrança a época em que eu tinha verdadeiro horror diante a proibição taxativa na Bíblia de que o único pecado realmente sem perdão era blasfemar contra o espírito santo. Poderia-se fazer tudo, matar, desejar a mulher do próximo, traficar drogas, cometer um genocídio, que bastava pedir perdão à misericórdia divina e estaria tudo resolvido, mas se a mente incauta, ainda mais com o cérebro diabolicamente provocado pela sentença, resolvesse associar o espírito santo a um xingamento, aí seria só esperar o inferno para toda a eternidade. Passei por verdadeiros martírios com isso, pois por mais que vivesse me policiando, uma vozinha em meu interior debulhava um sem número de imagens inenarráveis em que o espírito santo aparecia metido em todo tipo de putaria e viadagens.