quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O salto




 Anselm voltou para sua mesa. Sentou-se, olhando a paisagem dos prédios de frente. Queria restaurar os movimentos alarmistas com que iniciara o dia anterior, mas seu corpo não achava justificativas.  Janete estava sentada na mesa ao lado e olhava pela janela, os olhos que sempre se pareciam com dois botões de uma flor exótica postados atrás dos óculos grandes para algum detalhe nas janelas. Anselm olhou caçando algo entusiasmante, sabendo que se houvesse qual seria a reação dela? Se houvesse um homem nu se enxugando displicentemente, o que o espírito feminista daquela renegada dos padrões da sociedade faria? Por um momento ele julgou que sua predição iria por uma sorte maluca se confirmar, pois resolvendo-se no ajuste de contração de sua pupila os reflexos de luz em uma janela se abriram para um rapaz parado olhando para baixo, no prédio de frente. Anselm se encolheu na cadeira, aceitando que aquele detalhe pueril viera para lhe manter por mais uns minutos ali, longe dos distúrbios sensoriais de Esvertina. Pôs se a olhar o homem, cruzando os braços e tossindo, como se estivesse em um cinema. Por uma degradação ligeira, que ainda mantinha o rapaz em foco, ele confirmava que Janete se ocupava com afinco com a cena.

  O rapaz, olhando bem, tinha traços médio orientais. Tinha uma barba muito incipiente, que se via mesmo daquela distância que tracejava o alto de sua boca e o queixo com a falta de estilo de certas juventudes. Anselm pensou: não vai fazer diferença ele ter barba, com um rosto tão delicado e moreno. A biologia mesmo sem ser seu propósito acerta na estética. Os cabelos, pelo contrário, eram fartos e muito negros, como é típico às pessoas como ele. Estava tão concentrado em algum pensamento que parecia não ver nada a seu redor. Na certa, uma janela tão grande, recortada no centro de uma parede de outras janelas do mesmo porte, não poderia lhe passar despercebido. E dois rostos incomumente embrenhados na intromissão de repará-lo ao máximo seria mais que silhuetas em uma perspectiva reta que se finalizava onde o rapaz estava. Contudo, que distração sublime. Ou ele se negava a participar de um conluio anônimo que o tinha como alvo, que a perspicácia de ondas curtas das interações humanas já devia ter-lhe aventado que estava sendo visto, ou estava mesmo em uma estágio de alheamento tão profundo que se alguém pusesse a tocar um trompete a seu lado não interferiria. Anselm pensou que excelente oportunidade perdida para um fotógrafo registrar aquele enquadro de dor oriental segregada nas mediocrizações saudáveis da arquitetura proletária. Até o jogo de sombra e luz vinha de graça, perpetrada com generosa distração pela natureza daquelas paredes descascadas e aquela fremulação do ar que por mais que fosse flagrada pelo olhar estava sempre num passado de sépia, saudosista, de amplas sugestões esotéricas inapreensíveis. E aquele semblante de mil e uma noites, sherazadesco, transliterado para uma masculinidade delicada, não poderia ser mais condizentemente sensitivo com sua erraticidade e inadequação à crueza esbravejante daquilo tudo, daquelas janelas pobres, daqueles pombos canibais, daqueles dois rostos do outro lado, que deveriam parecer-lhe, se ele tivesse a mesquinharia sem sentido de se importar em vê-los, com os enfatuados rostos dos mortos em vida seguindo como todo mundo seu destino cegamente até o desaparecimento. Mas no jornal não havia fotógrafos, não profissionais, os registros do cotidiano sendo feitos para chamar a atenção nas bancas para as manchetes com os celulares comuns. Não cabia o uso de um instrumento tão estúpido para emplastrar aquele flagrante da eternidade, aquele momento desterrado do infinito, para parafrasear uma acertada expressão de Baudelaire.

  Então aconteceu. Anselm pensou por tanto tempo como iria descrever a abrupta e grosseiramente efêmera cena na coluna no jornal, e teve que se exigir um esforço sobrehumano para fugir à tautologia vazia dessa frase “então aconteceu”. Mas a frase retornava com todo seu poder de concisão em instigar o iminente anúncio de que algo realmente acontecera, porque é nisso, nessa pressuposição absurda que se ampara o significado da frase, de que algo novo possa acontecer na sensaboria previsível da existência, algo que vá abalar mesmo que nas mínimas instâncias essa coesão instransponível, essa rigidez dentro da qual o número medido de alternativas já está ajustado, mesmo que bilhões de combinações sejam possíveis, mas serão sempre só as que o cosmos estudou colocar no início dos tempos. Pois o que poderia acontecer? Ou o rapaz voltava para o interior daquela saleta incognoscível para cumprir os itinerários de seu dia, ou faria o que então ele fez. Diante os olhares cada vez mais aturdidos de Anselm e Janete, o rapaz saiu de sua imobilidade pictórica, de seu congelado instante eterno rembrandtiano. A mágica opalescente se quebrou, aqueles olhos enfunados no interior de si mesmo acordaram, não havia outra palavras menos fiel mas ao mesmo tempo mais cabível à situação. Se ele estava em um reino interior de sensações solipsistas, quem sabe trazidas da infância (que não muito o separava no tempo, talvez uns dez anos, visto ele ser bem jovem), sentado em inadmoestável solidão dentro da caverna onde dormia o urso hibernante de sua consciência, não seria acordar a expressão correta. Pois onde melhor se empregaria a vigília senão para essas idiossincrasias valiosas, para esses mundões seculares da personalidade contra a qual o sujo olhar alheio não tinha poder? Mas ao mesmo tempo, a atitude inédita daqueles olhos de uma renascença orientalista (e o historiador Anselm sabia que não era de todo um oximoro) terem retornado às evocações empobrecidas do seu entorno só seria descrito como um acordar, o que trouxe os aspectos pueris do rapaz. Dele evanesceu-se a postura sonhadora e viera um acúmulo de meneios empobrecidos de significados. Se via o interesse mais imediatista dele em abrir a janela, se fazer livre de uma vez daquela missão a qual se impunha. Seus olhos se reviravam ora para o encaixe da janela na linha cinética de baixo, empurrando a janela o mais fundo possível para que ela desse o devido espaço para o abismo de fora. Depois, com uma segurança técnica impressionante, como se o que o impulsionasse não fossem os resultados de sinapses musculares e o sistema ósseo de guindaste biológico, mas fios invisíveis que o erguiam do alto, com total convencimento por parte dos dois expectadores do outro lado de que nenhuma lei física estava sendo desrespeitada, ele subiu no peitoril da janela com um pulo conciso. Justiça seja feita em dizer que por um microssegundo seu corpo tombou para trás, para o interior do cômodo, mas ele se ajeitou com a mesma instantânea quantidade de tempo, ganhando enfim uma imobilidade com o corpo dobrado no quadrângulo que bem poderia compor um outro registro pictórico. (Dessa vez com os componentes de atenção já em suave início de alerta, piscando diante a cobrança racional do porquê um rapaz como ele estaria dobrado dentro de uma caixa aberta como se fosse um homem de borracha de um circo em duas dimensões.)

    Nisso, Janete deu um pulo e correu para a janela. Anselm já se punha a fazer o mesmo, movido mais pelo instinto de repetição diante uma abrupta quebra de imobilidade, quando, a meio caminho de se erguer, olhando fixamente a cena, o rapaz se lançou. Anselm iria repassar aquele momento durante meses, iria se silenciar e guardá-lo no núcleo de sua análise velada a título de crer que um enigma de tal porte só poderia se abrandar com aplicada seriedade introvertida, e depois iria descrevê-la por escrito. Lembraria, enquanto durasse sua vida, que acontecimentos assim tendem a ter uma simplicidade impossível, uma superfície diante a qual se tem que recuar para que os tentáculos do que nunca se conseguirá dizer puxem junto para a destruição. São atos que foram feitos na forja universal para ocorrerem sozinhos, sem testemunhas, e talvez sendo recorrentemente vistos por observadores intrometidos é que confere ao suicídio um tom sagrado. Pois como Anselm poderia explicar, por exemplo, o segundo inicial da queda, em que, estando o rapaz ao mesmo tempo ainda seguro no equilíbrio do limiar da janela, não o estava seguro, mas já em um estágio flutuante, naquela fugacidade enlouquecedoramente inepta de ser apreendida pela realidade em que parece que a gravidade se põe a ponderar: “Puxo-o, conforme faço por bilhões de anos, ou o poupo, o recolocando em segurança de volta?” Quem sabe o milagre existiria se não fossem Janete e ele estarem o presenciando, dando assim total liberdade para a potestade-caos refazer aquele lapso de vetores eventuais de modo que só sobraria o rapaz com sua mente para dobrá-la e fazê-la esquecer rapidamente que fora poupado, que todo o universo deteve por um momento só leis inexoráveis por meras questões morais que envolviam seu sofrimento insignificante. Se havia tanto poder nas mãos desse deus incriado, por que ele não poderia infligir alguma regras muito de vez em quando, para provar a si mesmo o gosto de sua onipotência? E o rapaz, nesse fugaz instante, olhou para Anselm. Foi um olhar direto, em que Anselm pode sentir com veemente força os vestígios da ternura que havia dentro do rapaz. E ele sorrira, era um sorriso. Claro que uma contração fagulhar, mas prenhe de um significado que não era outra coisa que uma disposição sincera para a possível alegria que lhe esperava. Ele subscrevia o momento de dor com o contato de toneladas da calçada, que as pesquisas que na certa havia feito mostrava que não teria um sofrimento significativo, e nutria a expectativa de um deleite final_ ou um deleite aduaneiro, da fronteira instalada na entrada de um país desconhecido.

    Janete dera um grito, tampando a boca logo em seguida. Anselm emitira um “Meu deus do céu” e recuara. Janete olhou pela pontinha dos pés lá embaixo, mas Anselm saíra para a cozinha, completamente abalado. Só então notara que estavam apenas os dois, Políbio e Afrânio haviam saído. Na mesma hora, uma buzina se fez ouvir disparada na rua, sem cessar. Talvez o incidente vitimara um carro, era uma nova gama de possibilidades que o leque fractal da vida com sua calma força imponderável produzia para contornar aquele elemento desistente e seguir adiante, como um regato cobrindo uma pedra atirada por alguém. Não se poderia interromper o fluxo por nada, e era por isso que não haviam milagres. Uma lei violada despenderia uma quantidade monstruosa de energia, e talvez já houvesse sido testado antes, há muitos anos, com resultados terríveis. Sons de vozes de todos os tipos e em todas as modulações subiam até os dois. No limiar havia como que por congruência crescente as vozes de mulheres que teciam calmos mas indistintos comentários, cheios de uma quase musical interjeição, e sons de crianças. Talvez fosse a alucinação técnica que todo acontecimento provoca, arregimentando as paletas da orquestra para o scherzo atonal. Janete chorava, e se voltou para ele, os óculos tortos por sobre o nariz embaçados.

  _ Anselm! Anselm.

 Anselm piscava, sua mente disparava pirotécnicos exames eruditos sem significado algum. Era a forma de sua mente se proteger dentro dos arquétipos sonoros de uma compreensão que ela mesma sabia terem apenas fins terapêuticos. Ele foi até Janete, abriu os braços e ela entrou dentro deles, encolhida.

  O último componente daquele cenário em proporções reais enfim apareceu: a sirene do carro de polícia nitidamente exigindo passagem com uma quase inapreensível delicadeza diante o que se reconhecia não ter o caráter emergencial de um crime comum.

 

 




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