domingo, 10 de dezembro de 2017

Crônica do pássaro de corda, de Haruki Murakami



Há romances que são bons pela solidão do personagem principal. É o caso de, por exemplo, "Fima", de Amós Oz, e "Dia de finados", de Cees Nooteboom. Esse "Crônica do pássaro de corda" pode ser encaixado na categoria se pegarmos as primeiras duzentas páginas. O narrador desse extenso livro de Haruki Murakami optou por abandonar a insípida vida de advogado de baixo escalão de um escritório de advocacia e passar seus dias trancado no micro-apartamento cedido por um tio para ele e sua esposa morarem. Sua esposa trabalha o dia inteiro e, muitas vezes, parte da noite, em uma revista de design, o que facilita ao leitor sentir o que, presumo, seja o fetiche mais procurado na obra de Murakami: a obsolescência urbana, a confortável desolação dos que não se coaptam à rotina efervescente de um Japão ultra-capitalista e utilitário_ o fetiche da rendição incondicional a um fracasso heroico rodeado pelas luzes e o eco do mundo externo que se insinuam dentro do pequeno exílio. 

Nisso, esse romance é excepcional, pelo menos para mim que adora todas essas nuances_ por isso, nessas primeiras centenas de páginas, realmente me deixei absorver por inteiro pelo hipnótico da obra. O narrador narra seus dias imutáveis, descreve a feitura de seu café da manhã, de seu almoço e jantar, a neve caindo na janela, a música clássica que ouve. Mas, em um calhamaço de 800 páginas, é natural que o leitor saiba que a coisa não ficará por aí. O segundo passo de Murakami, porém, ainda é convidativo, quando o narrador explora o beco que existe atrás de sua moradia e encontra uma casa abandonada, e passa a conversar com uma adolescente vizinha que também vive à parte da vida urbana consumista. Vem, logo em seguida, uma interessante reflexão psicológica suscitada por um confinamento voluntário no fundo do poço da casa abandonada. Daí para frente_ que deve ser, mais ou menos, a metade final do livro_, o livro passa a ser mortalmente irritante, a ponto do leitor suspeitar se foi boa coisa o autor abandonar o realismo de suas primeiras obras e se entregar ao fantástico e ao metafórico. Se tivesse escrito 800 páginas realistas sobre a exclusão passiva de seu herói, suponho que teríamos um grande feito em mãos, pois o ócio de Toru Okada por uma Tóquio climática e espiritualmente gélida é esplendorosamente descrito, com sutileza, elegância, introspecção e leveza. 

Mas, infelizmente, Murakami não sabe que não tem nenhum talento para a fantasia especulativa, e suas tentativas de construir mundos e personagens exóticos que representem sua pretensa dialética filosófica são simplesmente constrangedoras. Há no livro personagens que não fazem a mínima diferença no enredo, como duas irmãs videntes que tem pseudônimos de ilhas, que surgem, ocupam umas centenas de páginas com aparições absolutamente irrelevantes, e logo depois desaparecem sem nenhuma consequência. Há uma mãe e filho, também ambos com obscuros poderes sobrenaturais, que contratam Toru Okada para ser uma espécie de prostituto espiritual_ uma das coisas mais nebulosas e sem explicação do livro_, e que, em um dos últimos capítulos, também somem sem que suas passagens pelo enredo façam a menor diferença. Há uma narrativa histórica entremeada, bastante interessante_ artifício comum nos livros de Murakami_ com aproximações surpreendentes a Borges e Stevenson, que dariam excelentes contos ou uma novela concisa, mas que o autor faz questão de costurar na trama cada vez mais sem pé nem cabeça do romance. Há um pretenso vilão, o irmão mais velho da desaparecida esposa de Okada, que seria uma manifestação do mal assustadora nas mãos de Thomas Pynchon ou de qualquer competente autor best-seller secundário, mas que nas mãos de Murakami quase sequer aparece em cena, sendo criado e morto sem que qualquer interferência com o herói tenha sido promovida_ para o cúmulo da inanição narrativa, o que seria "o grande embate" entre ambos, herói e vilão, acontece em uma pálida e risível conversa via e-mails por computador. 

É tudo tão mal construído nesse livro que chega-se a se pensar se não seria essa fragilidade o que mais comove no autor: um raro caso de milhões de cópias vendidas para leitores que queiram viver no campo estético o isolamento murakamiano da própria literatura. A adolescente que completa as primeiras páginas do livro_ que, em uma ousada disposição de procurar interpretações simbólicas poderia ser interpretada como o "eu" ingênuo e puro de Okada_, reaparece como uma funcionaria de uma idílica fábrica de perucas escondida nas montanhas (????). Mas o mais indigesto no livro é a escolha do autor em concluir a trama com sonhos do narrador. Nada é pior para mim, na literatura, do que a narrativa de sonhos_ "Crônica de uma morte anunciada", por exemplo, com aquelas cenas iniciais de sonhos, se me afigura como a mais fraca obra de Garcia Márquez. E segue-se capítulos e capítulos em que Okada sonha, sonha, e sonha. É um atestado de extrema incompetência de Murakami que dois dos principais nós do enredo sejam resolvidos em sonhos: o reencontro de Okada com sua esposa desaparecida, e..., pasmem!, a morte do vilão (sim, o evento mais sagrado e arquetípico das narrativas do bem contra o mal, Murakami simplesmente dá a solução com a somatória de um taco de beisebol e os movimentos de R.E.M. do narrador). Mas vale a leitura? Sim, vale. A primeira metade é ótima, e, apesar de tudo, Murakami tem sua relevância, ainda que aposte demais em que o leitor escreva na mente o livro que ele apenas imaginou escrever.