domingo, 31 de julho de 2016

O tradutor cleptomaníaco



O conto O presidente,  de Dezsö Kosztolányi, contido em O tradutor cleptomaníaco, da Editora 34, é um dos cinco melhores que já li. Está no mesmo patamar que Bartleby e O alienista _ trata do mesmo tema destes, a alienação voluntária à grotesca realidade terrena, a "fuga da história". No conto do húngaro, o alto humor pontua a visão fortemente niilista quanto às instituições culturais e científicas; dei gargalhadas ao mesmo tempo em que tive a certeza de que estava lendo uma das críticas mais ácidas contra a estupidez humana. Aqui reproduzo uma das partes mais hilariantes do conto, em que o personagem Kornél Esti descreve a singularidade dos alemães:


"Um mundo novo se abriu diante de mim. Assim que meu trem rolou em trilhos alemães, passava de uma surpresa para a outra. Pode-se dizer que estava sempre de boca aberta, a partir do que meus companheiros de viagem deduziram que eu era um débil mental. Ordem e limpeza em todo canto, nos objetos e até nas pessoas.
        Desci a primeira vez num pequeno balneário, para lavar a poeira. Não precisei perguntar para ninguém onde era o mar. Nas limpas e varridas ruazinhas, precisamente a cada dez metros, havia um elegante poste, nele uma placa branca esmaltada, com uma mão que aponta, embaixo a inscrição: Caminho para o mar. Seria impossível guiar melhor um turista. Cheguei ao mar. Lá, fiquei um pouco pasmado. Na areia, a um metro da água, um poste um pouco mais alto, mas totalmente parecido com os anteriores despertou minha atenção, e nele, uma placa branca esmaltada, um pouco maior, mas totalmente parecida com as outras, com esta inscrição: O mar.
          Para mim, proveniente de um lugar latino, parecia-me a princípio totalmente desnecessário. Pois uma agitada imensidão espumava diante de mim, e era óbvio que ninguém poderia confundir o Mar do Norte com uma escarradeira, ou com uma lavanderia. Mais tarde reconheci que me enganara na minha superficialidade juvenil. Era justamente nisso que estava a verdadeira grandeza dos alemães. Isso era a própria perfeição. A inclinação dos alemães para a filosofia exigia que concluíssem a tese e apontassem o resultado, como muitas vezes um matemático escreve numa demonstração que 1 = 1, ou na argumentação lógica, em que muitas vezes se constata que Pedro = Pedro (e não a Paulo).”

O caderno de capa vermelha



Entrementes, não começou assim. Desde que me internaram e os sintomas do meu mal foram diminuídos até que tudo fosse expressivo demais ou visível demais a um nível pouco elegante, o doutor Toledo arranjou de elogiar meu ego me pondo a escrever. Digo elogiou-me porque por detrás de sua boa estampa de cavalheiro para o qual o mundo se curva em amenidades solenes, há a astúcia fria e um tanto perversa do homem da ciência. Trouxe-me da primeira vez um desses cadernos vulgares, cujo vermelho berrante da capa provocava a angústia de se lembrar que além dos muros da clínica a bestialidade continuava a bruxulear à toda força lá do lado de fora. Justo quando concluía-se o segundo mês de meu confinamento onde se firmara que é voluntário, que a qualquer hora que me faça desejável eu posso muito bem deixar a clínica e voltar para casa, e eu estava me acostumando com as vantagens recolhidas da falta de liberdade, aparece-me de frente esse vermelho de verniz explosivo, esse eloquente corte de verbas de um produto feito para a alienação dos estúpidos cumpridores de regras. Não foi por menos que o doutor Toledo percebeu no ato a minha profunda decepção quanto à sua falta de sutileza. Pelo canto dos olhos, em nossos estudos mútuos de nossas humanidades recíprocas_ pois o centro dos olhos prostrava-se naquele objeto pueril que era o caderno de vermelho berrante_, foi-me possível apreender sua impavidez marcial titubeando diante a consciência de seu lastimável passo em falso. Ele já não podia voltar atrás e admitir que havia quebrado alguns dos preceitos de nosso pacto de confiança, de forma que recorreu a toda força de sua ortodoxia profissional para se fazer de correto. Disse-me para escrever sobre minha vida, o que me passasse pela cabeça; que eu caçasse a fundo a raiz do que desencadeara esse estágio no tempo em que singularidades de comportamento e de íntimas contenções define o Halperin Sás que agora desvanece seus dias nessa clínica, se contrai em aquiescente deleite à condição de vigiado para quem eufemizam sua realidade de prisioneiro. Com sua voz acalentadora, uma voz que é uma dimensão em si mesma onde meus ouvidos sentem os vastos campos de papoula florescendo, o doutor Toledo me instiga a depositar naquelas folhas o que eu sou. Depois vai embora porta afora e me deixa com essa excrescência rubra no colo; propósito: tornar meu espólio espiritual tão empobrecido quanto esse caderno. Por pura raiva, na verdade uma raiva também progressivamente aquiescente, começo a escrever. O lápis que ele pôs em minha mão, como não haveria de deixar de ser nesse sistema de confluências lógicas, é da mesma vulgaridade de trinta centavos, encontrados nos balcões dos armazéns de esquina como troco complementar às moedas faltantes no começo do expediente; pelo menos é negro; analisando-o com certa resignação, neste a indústria dos rebanhos pacificados não achou a matemática de retorno de lucros que autorizasse um azul diatomáceo ou um vermelho acrílico encegante. Um negro comportado, de alguma forma digno se meu cérebro não trabalhasse para desfilar as tantas imagens em que homens de ternos baratos tem exemplares dele em mãos para fazer toscas contas de despesas de final de mês. É tudo de uma vulgaridade tão brutal que sinto na garganta um grito subindo, que eu engulo com a força de todos os músculos do pescoço, e me admoesto: "Sua nova regra, Halp: aceitar as coisas como são: inserir-se no tempo, não mais o recusar. Foi-se a época do Pequeno Nero. Agora te pegaram. Envenenaram-te com estudada parcimônia para que todos os excessos fossem desbastados." Sinto minhas mãos em uma situação de plenitude afásica, estendidas nas minhas coxas como se não fossem mais minhas. Pequenas mãos enodoadas pelo derrame de melanina, dedos infantis tortos, juntas grossas deformadas, a dupla materialidade do anúncio da velhice, uma moldura engordurada em torno. Mãos do tipo físico clínico que indicam a ausência da ganância. Mãos cujo único desejo foi nunca possuírem. Lembro então que as mãos de meus tios eram enormes, como aranhas subaquáticas surgidas na rede pesqueira com uma surpresa terrorífica, vindas lá do fundo, loucas para adivinharem a luz e embriagadas o suficiente para substituírem o êxtase para as quais sabem incapazes pela compulsão da posse. Mãos abissais, fartas da escuridão mas intimamente definidas por ela. Sempre que uma dessas tomavam as minhas em seus centros ásperos e quentes, o poder de sua imensidão me apequenava ainda mais. "Que mãozinhas delicadas tem o Halp", diziam, com aqueles animais hipertrofiados regurgitando com um carinho seco os ossinhos das minhas mãos, devolvendo-mas depois com gentileza. Sentia a estrutura rígida de seus músculos, suas inteligências maquinais carregadas de vaidade por saberem as preciosidades anatômicas que eram. Pensando nisso tudo, me levando por essa desalentadora corrente de sugestões, baixo meus olhos e esfrego uma nas outras as minhas mãos indispostas a novos começos. Mesmo assim, minha mão direita pega o lápis e começa a escrever na primeira página do caderno vermelho.

sábado, 30 de julho de 2016

A chegada, de Shaun Tan

Uma das mais belas graphic novels do mundo não contém uma palavra. Ontem, eu e a Júlia aproveitamos o início do último final de semana das férias para "lê-la" até a madrugada. "A chegada", de Shaun Tan, uma obra-prima simplesmente genial. Um livro cinema-mudo.










terça-feira, 26 de julho de 2016

As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg



Na faculdade eu tinha uma amiga que era fã de Hemingway. Ela era miúda, de óculos, ruivinha, e fazia medicina_ e era apaixonada por Hemingway. Era tão exótica em seu ambiente quanto eu com meu livro do William Golding nos pátios da Veterinária. O que mais me espantava não era o fato dela estar se integrando nos quadros da profissão que menos lê além dos compêndios técnicos, mas pelo fato dela, tão feminina, gostar de um autor que volta e meia utilizava a apologia de seus "colhões" como eixo condutor da frase. Eu perguntava para ela, realmente querendo saber, como uma mulher suportava ler Hemingway. Na minha incapacidade de correlação, imaginava que seria o mesmo que um homem ler Barbara Cartland. Ela me respondia que adorava aquele masculinismo, mas compreendia talvez de uma maneira que me faltava os meios a fragilidade do autor. Ela, por exemplo, detestara Adeus às armas, achava-o esquemático, cheio de clichês, com um final tão falho quanto um desfecho de uma novela televisiva mexicana, enquanto eu ainda estava sob o fascínio da extrema concisão daquela última página que, repeti para ela, segundo consta, Hemigway a reescrevera 30 vezes. Por outro lado, ela e eu dividíamos a reverência pelos contos de H., em especial Gato na chuva e Montes como elefantes brancos, e julgávamos também de comum acordo que Do outro lado do rio, por entre as árvores era seu melhor romance. Guardei desses anos meu preconceito ingênuo de achar que boa parte da literatura era insultuosa para mulheres, já que era escrita por homens e para homens.

Hoje estava acabando de ler o livro As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg, publicado pela Cosac Naify. Vou admitir: já li várias escritoras, mas só agora, com esse belíssimo livro em mãos, entendi. Talvez só me veio a compreensão porque, de forma geral, Ginzburg seja a mais feminina das escritoras. Ela, felizmente, não tem a ostensividade de gênero que às vezes extrapola o vulgar em Hemingway. Ginzburg é... como direi...absolutamente sem medo, absolutamente verdadeira. Não há nenhum artifício nela, para o bem ou para o mal. Ela é feminina de um jeito primordial, nela está a resignação e algo que transcende a resignação da mulher diante a sina de sofrer pela imaturidade e instabilidade do macho. Nunca vi uma escritora tão só, e tão preenchida da missão em analisar puramente a solidão da mulher no século passado, nas guerras, na deportação, no exílio. E o mais belo nela é sua desproteção, sua maneira de ser gigantesca sendo pequena. E o que torna isso maior ainda é que, ao contrário da literatura masculina, ela não precisa da astúcia para ter legitimidade, não precisa do ódio, do rancor, que são tão características da literatura produzida pelo gênero masculino. Todos os contos desse livro, grande parte bem ligeiros, são obras primas, calam fundo, são brisas frescas em um quarto acolhedoramente escuro. Não tem como sair desse livro sem cultivar um amor pela Ginzburg, sem procurar sua foto e ver seu rosto expressivo, não trivial, de ângulos tão propícios ao sofrimento e à reflexão, seu rosto espichado, pouco bonito, ou feito para ter todo o esplendor de sua beleza recolhida na velhice. Seu rosto não tem a propensão à neurastenia da Virginia Woolf, é bem mais forte; vê-se isso em sua falta de pudores para sorrir e se comportar com sua saudável normalidade nas fotos, ao contrário de Woolf, cuja incapacidade de sair da ética burguesa feminina de posar como um fauno deve tê-la irritado bastante. O conto Ele e eu, presente nesse volume, mostra seus sentimentos resignados diante a imposição patriarcal do marido, diante seus sarcasmos e sua tirania em rebaixá-la. Ginzburg usa de toda sua fragilidade assumida para construir uma das reivindicações mais tocantes para a liberdade de ser simples sem ser simplória; ela acaba saindo com uma estatura bem mais íntegra no final do conto do que seu marido, sem que, repito, tenha usado de nenhum artifício melífluo para tal. É um conto que em meus anos de ingenuidade eu acharia se tratar de uma literatura inócua ao homem, só assimilável a uma outra mulher, como um segredo, uma identificação, um sinal de pertencimento. Hoje percebo o mesmo que minha amiga, bem mais inteligente do que eu, em fazer da leitura um aprendizado sistemático, imune a clubismos. Uma felicidade sem tamanho ter encontrado esse livro.


domingo, 24 de julho de 2016

Não fazer


Levei a Júlia ontem ao zoológico. Ela passou toda a semana repetindo até os limites de nos deixar loucos que queria ver a girafa e o pavão. Quando chegamos às duas grandes construções rústicas onde a girafa dormiria em pé, minha irmã soltou na bucha, sem saber das expectativas da Júlia, que a girafa havia morrido. Nunca vi a reação da Júlia antes: ela caiu em um choro profundo que eu precisei pegá-la no colo e a consolar, dizendo que nem eu sabia, e que pelo visto a girafa tinha morrido há anos. Outra decepção foi que o bicho mais próximo que encontramos de seu amado pavão foi o groo, com sua coroinha arrepiada de rei caricaturesco a quem enganaram que algum dia teria súditos que o levariam a sério. Não gosto de ir a zoológicos. O ambiente é bonito, descontraído, mas a agonia da prisão daquelas feras, que o público tenta eufemizar para seus filhos de que se trata de uma condição bem suportada para fazê-los felizes, me deixa pra baixo. O mais triste foi me aproximar daquele portento empoleirado no alto semi-escondido de sua grande gaiola, antes uma sombra misteriosa cujo silêncio agravava ainda mais a impressão aterrorizante de seu tamanho, e ver que era a harpia. Que animal lindo! E que animal triste! Resignado em sua benemérita ignorância quanto ao empobrecimento de toda sua astúcia e fúria divinas, ali parado, olhando imóvel o mesmo ponto. Só soube que não era empalhado porque uma fímbria da inerente curiosidade fê-lo mover a majestosa cabeça quando alguns pássaros vira-latas passaram, livres, pelo céu acima. Na placa de apresentação, minha angústia aumentou: ele foi encontrado ferido, vítima de disparos de espingardas de chumbinho. Não li até o final quando provavelmente se dizia que ele ficara incapaz de voar. Voar mais pra quê? Horas depois, na Fnac, encontro por cissiparidade de sentidos aquele livro que eu procurava por anos, o Bartleby da Cosac, o livro brinquedo que a gente descostura e corta as páginas. Comprei-o, uma das mais impactantes e geniais histórias sobre a condição humana, genialidade absoluta. E tudo a ver com a harpia, que dentro de si seus mecanismos fisiológicos diziam para a selvageria mutilada que "prefiro não fazer", olhando o muro que há diante sua grandeza cortada violentamente.

A harpia em sua tristeza tristíssima

O livro-brinquedo da Cosac. Nunca haverá outra editora igual a Cosac.

O muro de Bartleby

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Futebolândia, tão violentamente doce

A respeito do comercial norueguês das Olimpíadas no Rio de Janeiro.



Um dos contos mais impactantes do Julio Cortázar, que nem chega a ser um conto mas uma diatribe narrativa, é o que começa o livro Nicarágua, tão violentamente doce. Nele, Cortázar sai pela terra do título tirando fotografias das crianças sorridentes, dos prontificados policiais fardados, das barracas vistosas das feiras, das nicaraguenses jovens com véus coloridos, das mães nicaraguenses com seus filhos de colo, das estátuas ufanistas das praças, reativamente prontificado a se fazer de adido cultural para quem os oficiais da pátria mostram o que tem que ser mostrado no cartão postal pelo estrangeiro. Quando Cortázar volta a seu quarto de hotel, com o cansaço agradecido do viajante, esperando que entre pela porta sua namorada ou mulher francesa, não me lembro, só me lembro da frase “que me oferecerá o doce sal dos seus seios”, ele bebe um scotch para relaxar e se senta para conferir o que sua polaroid flagrou. Em vez de tudo o que julgou ter apreendido pelo obturador da câmera, ele vê emplastrado na celuloide fotos de crianças mortas assassinadas, o grito de pânico congelado nos rostos, os coturnos dos policiais enfiados na goela de pobres camponeses de caras desfiguradas, praças em que a presença humana foi excisada e sobraram barracas destruídas pela violenta evasão, rostos de desespero das mães de quem foram arrancados os filhos para nunca mais. Quando a mulher por quem espera o escritor chega, encontra um Cortázar encolhido no chão e com o rosto transfigurado pelo choro.

Esse comercial me lembrou esse conto genial, que pode parecer pedante nas minhas insuficientes palavras, mas é um soco no estômago e uma das melhores páginas do argentino. Um menino branco, diga-se por sinal; policiais halterofilistas modelos (que colar de dentes magnífico o policial negro tem, ao sorrir desarmado pela sacralidade em slow motion ao reconhecer o jogador!); uma favela eufemizada que lembra uma vila grega, em que a ascensão social é tão fácil e aprazível quanto uma queda de asa delta para a qual até o mar se mostra protetor; e a praia e as mulheres hospitaleiras; uma obra, afinal de contas, legitimamente autoral, disso não podemos negar, visto que noruegueses são seus autores e norueguês ficou o Rio de Janeiro, sem mais morticínios, sem mais a gritante disparidade social e a alienação sustentada a ódio da guerra civil iminente, sem praias depredadas pelas indústrias poluentes de um país em que a lei é ditada pelos abutres, e para eles faz acontecer beneficamente, assegurando que o mar não é cancerígeno e não oferece sequer as mínimas desfigurantes doenças de pele para os atletas, que não há epidemias microcefalizantes, de tal modo que ninguém ousaria abdicar do mérito da competição; um país que a polícia sairia em uma perseguição cinematográfica conciliadoramente desarmada despendendo um número tão grande de efetivos, sendo que a verdade vociferada diariamente diz que um tiro só bastaria, ou dois na simulação posterior de que havia uma arma nas mãos do garoto morto. E a salvação, ah, a salvação, sempre vinda do milionário iletrado com ficha na polícia por isenção de cidadania que usa a bola como graal hipnótico para a qual se dirigem os olhares de todos os abandonados: o Ronaldinho Gaúcho, ganhador da medalha Machado de Assis.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Kazantzákis

A bonita e expressiva capa da editora Grua


Jesus Cristo talvez seja minha maior fascinação. Sem que seja preciso mencionar aqui o lado religioso, que é muito idiossincrático para que pudesse explicar, o homem Jesus é que me interessa profundamente. Do ponto de vista de todas as religiões que há por aí, eu sou ateu. Não acho que as igrejas são mais benéficas do que maléficas, e nem que funcionam consoladoramente para os mais destituídos. Por muito tempo cultivei o desejo de entrar em um monastério, mas meu ceticismo sempre foi gigantesco demais para isso. Em paralelo, conseguia me manter meio dignamente na contemplação vivendo sozinho. Os verdadeiros amigos da juventude foram cada um para seu lado, como haveria de ser, e, baseado na premissa de que amigos mesmo só compensam o que teriam os mesmos gostos e afinidades que eu, eu ficava plenamente com os livros. Nunca fui assoberbado pela solidão; os amigos sociais, aqueles que fingimos saudavelmente que nos bastam, uma ora e outra preenchiam as zonas de trivialidade da minha vida. Mas meus amigos, sem eufemismos e relativizações ou tristes consolos, sempre são os livros. Ler por anos Faulkner me enchia de alegria. Lembro que um de meus amigos verdadeiros, que cultivei na raridade da vida adulta, o Galheb, em um desses natais em que nós dois poderíamos ter-nos dado a companhia um do outro diante a mesa de jantar, em nossas vidas em que não havia ninguém mais que pudesse fazer esses papéis recíprocos, se despediu de mim nas vésperas da comemoração e me perguntou com quem eu passaria a festa. Eu respondi que com Winston Churchill, e ele, da mesma maneira séria, avaliou a questão e disse que era uma ótima companhia, e concluiu que ele passaria com George Steiner. Nas noites de frio, eu me sentava com Arsene Lupin, e com os para mim sempre acolhedores ensaios de Borges. E não havia felicidade maior do que esta.

De modos que re-conhecer Jesus através da ótica da literatura é-me muito valiosa. Os dois grandes livros para isso são O mestre e Margarida, que tem um dos mais desconcertantes e belos Cristos, e A última tentação, essa obra-prima inigualável escrita por Kazantzákis. Nesta última, o leitor quase sente o resvalo do homem Jesus em sua pele. É tudo profundamente atmosférico e feroz e cheio de ternura, cheio de perigo humano e radiante. Recordo que o final do filme que o Scorsese fez para esse livro foi tão surpreendente quanto, digamos, o final de O sexto sentido. O impacto da inesperada surpresa, aliás, é bem maior. A astúcia usada para explicar a mensagem de Jesus para os homens, através de uma ótica racional e pragmática, utilizando aquele final genial, é apoteótico. Muitos da igreja consideraram aquilo um insulto mancomunado por uma nova coligação do pensamento formador ateu, o que era um disparate. Aquele filme me ganhou para as frentes do cristianismo utópico, em um momento em que o ateísmo em sua mais incomunicável e equivocada vertente me assediava. Meu Cristo seria sempre aquele. Andei atrás do livro, com desespero de leitor obcecado, e o li em uma sentada, atravessando dias e noites e almoços comidos às pressas. O final, a surpresa, o cósmico ensinamento, foram todos retirados do livro, são todos obra da mente generosa de Kazantzákis. O cinema de Scorsese tem por mérito os cortes portentosos, a trilha sonora do Peter Gabriel, a beleza plástica de Willem Dafoe, o Deus que oprimia o homem Jesus a aceitar o encargo descendo como um abutre invisível do céu, as palmas que se fecham uma sobre a outra na invocação magnânima do Lázaro de seu sepulcro. 

Achei minha igreja na minha família. Lembro que propus à Dani que ela viesse morar comigo. Sempre fui avesso a todos os arquétipos do consumo, de modos que por detrás dessa proposta só havia o amor incipiente e verdadeiro talvez em menor grau que a previsão dos auxílios na velhice, e não a necessidade da serva feminil e confortadora na qual se escora o escritor. Ela se recusou, como haveria de se recusar, e, enxergando no fundo do meu coração (onde havia mesmo um vazio sem fim), arranjou de me dar uma filha. Nos casamos, e a Júlia sempre foi uma alegria tão imensa, que arranjamos, já de comum acordo, de termos o Eric. Sei que para muita e muita gente filhos não são a salvação e nem são interessantes. Mas em mim se encaixaram despudoradamente todos os clichês da paternidade redentora. Escrevi certa vez que ver a Júlia no berço da maternidade foi equivalente a tocar o sol. Não há um dia, porém, em que não penso se não fui grotescamente egoísta em trazê-los para esse mundo. Se para poupar-me de um suicídio, eu negociei com duas vidas. Do fundo, um remorso pesado tenta emergir. O Eric, tão contrário à Júlia, passou esses nove meses chorando umas 10 a 20 vezes por noite. A Dani está um bagaço. Eu brinco com ela para prestar sempre atenção ao pegar o Eric para ver se não pegou a gata enganada e está a lhe dar de mamar, tamanho o estado de zumbi em que ela e eu estamos. Eu vejo isso com o orgulho do pai, que atribui à ânsia do filho a vontade de abandonar logo a fase de bebê e poder andar, correr, ser independente, ser dono de seu corpo. Eu falo para a Dani que só a mãe tem essa paciência. Por isso tantas babás agressivas, tantas professoras dispostas ao beliscão e ao chute. Só a mãe tem esse amor, só. Eu, se estivesse sozinho com o Eric, não teria dado conta. Mas também eu nunca perdi a paciência com ele. Sempre o abraço muito e o beijo muito, e às noites, quando a Dani já está esgotada, eu o coloco deitado entre minhas pernas e vou-lhe ninando com o balançar até que ambos dormimos, ao som de Bach e da Mutter. Embora tirar-lhe da mãe seja difícil, o cara é viciado nela. Uma grande nostalgia do útero. Como se fosse um protesto, que aos poucos vai passando ao lhe oferecermos opções de recolhimento convincentes.

Cristo não está nas igrejas, cada vez mais demoníacas. Esses dois assuntos tem muita relação para mim, o que talvez não transpareça no texto.

Três de nós

domingo, 10 de julho de 2016

Ricardo Reis



Eu sou um leitor apaixonado de José Saramago. Considero-o um dos maiores e mais inovadores escritores do século XX. O verdadeiro reconhecimento de Saramago está para acontecer; será, quem sabe, daqui uma três décadas, quando o reconhecerão insofismavelmente como um gênio. Mas ele nunca teve motivos para reclamar de sua vida de escritor. Na verdade, no início, havia vários motivos, mas ele não professava esse fado lamuriento que, infelizmente, é tão característico dos escritores brasileiros. Em vez de reclamar do desemprego, da perseguição política, da falta de leitores, características pelas quais o jovem Saramago passara, ele trabalhava. Escrevia continuamente. Enquanto a independência econômica literária não vinha, ele também trabalhava em vários outros ofícios artesanais que lhe garantiam a sobrevivência. Muito semelhante a Saramago é Günter Grass, autor pelo qual da mesma maneira sou apaixonado, e com quem exerceu uma espécie de co-autoria no último livro publicado, postumamente, pelo português. Grass e Saramago, a meu ver, são irmãos literários: escreviam uma prosa absolutamente original, escreviam o que queriam, escreviam contra todas as correntes da escrita comercial, não eram consumíveis e mesmo assim venderam milhões de livros pelo mundo. E nunca reclamavam. E eram escritores não-literários do ponto de vista acadêmico: eram escritores não catedráticos. Escritores que firmaram seus estilos, principalmente, em cima do modelo da tradição oral da narrativa. Eram escritores labutadores, artistas plenos, desses que pouco se importavam com a miséria e com as consequências do seus ofícios alheios aos seus lápis e a seus cadernos de trabalho. Estou por encerrar minha terceira leitura de Anos de cão, de Grass, e, por uma dessas confluências comandadas pelo meu leitor interno, antes de ontem, sem premeditação, peguei o O ano da morte de Ricardo Reis e, quando menos percebi, já estou na metade, também no que equivale à minha terceira leitura desse livro.

Ricardo Reis é uma delícia de livro. Uma das prosas mais envolventes que tenho conhecimento. Identifico o leitor incompleto quando vejo alguém dizendo que Saramago é chato, difícil de ler. Vejo isso com menos raridade que eu esperava, pois Saramago sempre foi best-seller no Brasil_ seus livros atravessam dezenas de reedições e reimpressões. O cara tem humor, sofisticação, ternura, reflexão, aforismos, e a veia do contador de histórias legítimo. É um dos raros escritores completos, para o qual nada falta no campo do virtuosismo exemplar da escrita. E Ricardo Reis, que me perdoem Ensaio sobre a cegueira, Jangada de pedra, O homem duplicado e O evangelho segundo Jesus Cristo, é seu melhor livro. Aquelas primeiras páginas, que falam da chuva torrencial em Lisboa, com o navio que aporta trazendo o exilado Ricardo Reis de volta à sua terra, tenho por mim ser uma das melhores que já li. O romance todo é muito bem escrito; parece um objeto precioso que passou pelo processo de ourivesaria mais detalhado, e ainda assim soa tão espontâneo e tão fluido. E me traz uma enorme felicidade. E também me potencializa ao máximo meu amor pela língua portuguesa: como Saramago faz com que ela soe com toda sua beleza e imprescindibilidade!

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Nu para as chamas de Deus



O velho polemista Alexander Cockburn, provocando o ateísmo às vezes beirando o fundamentalismo de seu amigo Chistopher Hitchens, disse: "um contestador hoje em dia seria alguém que argumentasse pela existência do Ser Supremo". As épocas são cíclicas, como observam muitos, e a concentração de uma força que pretende ser dissuasória à tendência ideológica da maioria acaba por se tornar uma estagnação também mantida pela inércia. O ateísmo culto e superior que é vendido das academias se transformou há muito em uma forma solidificada de filtrar a compreensão através de um só óculo de visão, que é a renitente, combativa, militarizada negação quase a nível de rancores pessoais contra Deus. Me faz recordar uma antiga anedota, bastante sem graça, de um clube de poderosos mnemônicos que por si mesmos não perdiam tempo em decorar piadas e recitá-las para a turma, apenas as diziam em seu números correspondentes: bastava um deles olhar para o outro e dizer 437, e logo se caía na gargalhada ao se recordar a piada rotulada pelo número. O ateu carteirizado chega a um nível de certezas indiscutíveis e proficiência da memória dogmática que pouquíssimas vezes mesmo os melhores deles estão em condições para o debate: apenas reafirmam, em maior ou melhor retórica, que a posição de lucidez em que estão é a única digna de um certo primor cerebral, que para eles, por mais que disfarcem conforme exige a ética interna, é o primor dos seres superiores, dos que estão distintos em altíssima elevação da ralé cega e bestialidade dos crentes. Basta a eles citarem os números correspondentes às suas já em franco processo de enferrujamento ideias feitas sobre seus heróis canônicos, Dawkins, Darwin, o Macaco Antropológico, o Cientista Estoico À Procura da Melhora da Vida Terrena. Assim, o que eles deveriam combater em uma dialética brutal contra as diversas formas de realidades deletérias provindas do uso de Deus por aqui, se transforma em uma infantil e sem sentido luta contra um fantasma, tão cômica que sempre escapa a eles o tanto que, subliminarmente, parece que são eles os crentes, eles os abalizadores da existência de um deus-pai cujos filhos mimados se revoltaram contra. Eles se anulam no que teriam de poder de mudança em uma sociedade globalizada cada vez mais sem uma voz sincronizada contra a bandidagem do igrejismo, ao nunca verem que o que se combate aqui são os homens por debaixo de deus, as organizações ultracapitalistas pactualizadas com dirigentes corruptos de estados sem representações críticas sociais, que se beneficiam obscenamente com os lucros cósmicos dos utensílios deísticos vendidos para a prosperidade econômica do homem médio sem educação, os tetzéis aproveitando da extrema ignorância reinante para vender suas indulgências, suas madeiras da cruz. Os ateus, que na verdade é a mais inofensiva classe intelectual desde há muitas décadas, são raquíticos demais para irem contra as tantas igrejas vilipendiadoras, as leis que isentam essas empresas do medo de impostos e assim promulgam suas legitimidades, os cartéis mafiosos de líderes do pastoreio que a mídia televisiva deixa quieto também por medo ou para a manutenção da homeostase de chantagens e crimes recíprocos entre os poderosos donos de jornais e redes de tv, estes mesmos vinculados intimamente à extorsão gigantesca das igrejas. O que os ateus fazem é colocar cartazes nos ônibus vermelhos de Londres convidando idioticamente para um carpe diem anacrônico, já que deus não existe, um retorno às modas existencialistas e aos anos hippies que em escala mais avançada fecham com bebedeiras eternas em bares e desistência de tomar banho, sexo em praça pública e apreciação da beleza que o acaso engendrou e as atribulações cotidianas vazias nos impedem de ver, isso enquanto o mundo passa por uma de suas maiores crises financeiras e morais, e cujo silêncio em torno deixa intactas as novas igrejas que surgirão para comportar os novos estelionatos aos homens desesperados.


E isso se trata apenas dos erros da única coisa que o ateu consegue ver. Os erros maiores são sobre o que eles não veem. O contestador de Cockburn é um homem culto que sabe, com sua parte inconsciente, que a concepção deísta está por detrás de bem mais coisas que estão por aí e compõe a identidade humana que um rápido olhar discriminatório não conseguiria ver. A simples menção a essas nuances já coloca em febre o ateu rosa-cruz de armas em punho, como se estivesse diante a mais uma enunciação da virgem Maria ou das chagas de Cristo. Nada mais triste que a regra da conduta das pessoas sofisticadas e esclarecidas seja a de descartar tudo que se refere a deus como uma bobagem obsoleta. Essa tendência, que não foi criada pelos ateus mas eles a utilizam como raiz comportamental, é a única voltagem carregada de perigo que o ateu possui, a sua única contribuição de peso, ainda que passiva, para a mudança do mundo. Mas acontece que essa mudança já está em curso, dirigindo-se mesmo para sua conclusão peremptória, e não é nada vantajosa. É sobre a não-conformação à essa mudança planificadora que o Cockburn interpôs o seu contestador que cogita o Ser Supremo. O mundo está cada vez mais acabrestado à moral funcional que sobrou da devastação da procura primordial pela transcendência, a moral do dinheiro e do entretenimento eletrônico que regimenta apascentando toda pulsão contrária de desforra ao moderno sistema escravagista. Com a ausência insensibilizada de deus numa sociedade devotada ao embrutecimento das nuances e à falta de tempo, o que sobra são seres atinados apenas às emergências ganglionares, à evasão da atenção para setores de escapismo que as alimentam sobre os planos imediatos de forma tal que seja menor o sofrimento das horas de engarrafamento para se chegar ao escritório ou à fábrica. É fácil ver que os ateus já são os vitoriosos há tempos, não há motivo para que eles se preocupem com o revide do fantasma. Nada mais determinante para a descrença em sinergismos sagrados do que a incapacidade de comportar qualquer intuição do esotérico em gares de metrô, em grandes avenidas de pistas quádruplas atulhadas da disputa dos modelos automobilísticos do ano, em ninhos de edifício com as letras de aço pressurizado por sobre o exército de homens de terno. A uma mente paranoica seria tentador supor que tudo foi maquiavelicamente pensado para retirar deus da jogada numa violenta assepsia programada, como aquelas histórias da conspiração satânica em que no alto dos edifícios de Wall Street estarem escondidos o número da besta do apocalipse. Mas como disse um escritor americano, há muito que seres espirituais superiores como Lúcifer ou os arcanjos não se preocupam mais com seres tão irrisórios como nós. Nesta solidão de desinteresse redencionista, estamos relegados ao desamparo de nós mesmos. Fomos nós mesmos que empobrecemos as estruturas de todo tipo que nos cercam até um limite intransigente de realidade, até um nível de cinismo em que tudo que esteja além dos reflexos da caverna seja ridículo e infantilóide. Nossa forma mais alta de religiosidade é ditada pela consumação do aproveitamento do tempo em prol de satisfações hormonais puras, desde a hora para se respirar um pouco do cafezinho à busca dos filhos na creche para acompanhá-los na comunhão silenciosa noturna do programa de televisão antes do sono intersticial para um outro dia repetitivo até à medula. Em recente artigo da Le Monde Diplomatique se analisa as consequências das pretendidas novas reformas na semana de trabalho francesa diminuída para 30 horas, se seria realmente positivo para indivíduos embrutecidos pelo relógio ter mais tempo livre, se isso não aumentaria a criminalidade e as taxas de suicídio. Viver para quê?

Entre os contestadores cockburnianos está o filósofo esloveno Slavoj Zizék, que em várias partes proveitosas de seus longos livros sobre a crise utópica da modernidade rendida à unidimensionalidade do capitalismo, faz uma apologia embasada da necessidade do grande Outro. Zizék cita fartamente o grande escritor católico Chesterton, em especial seu livro clássico Ortodoxia. Não é um simples artifício retórico em defesa da alienação consoladora ao sagrado como método social de dominação popular.  Zizék vai fundo na análise do nonsense e da estupidez  contra a inerente disposição biológica humana pelo abstrato que são as correntes de ateísmo organizado. Ou Zizék só é lido por jovens nostálgicos dos movimentos revolucionários da memória de seus avós e pais, ou é lido insuficientemente pelas academias, pois nunca se menciona o caráter dele para o debate ateu, sendo um disparate colocá-lo no mesmo nível que Dawkins e Hitchens, em posição contrária. Certa vez me disseram que Zizék não era a pessoa certa para falar sobre a procura por Deus, como se houvessem universidades milenares que detêm o conhecimento secreto do Nada aproveitada apenas para credenciados. Me vejo pensando na questão epistemológica de que tudo que se produz ideologicamente pelo homem, na arte e nas ciências e em qualquer outro campos, é o resultado da procura por Deus. Me confrontei com isso quando lia ontem o maravilhoso e indispensável livro de George Steiner intitulado Tolstói ou Dostoiévski. Abaixo, um excerto do livro de Steiner.

"O nó da questão é, como em qualquer questionamento maduro do enigma da linguagem e do significado, teológico. A desconstrução reconhece plenamente essa verdade quando postula que os marcadores semânticos só poderiam aspirar ao sentido estável, à intencionalidade, se fossem subscritos por alguma origem ou autoridade final, transcendente. Não pode haver, para o desconstrutivismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, tal garantia. Em Presenças Reais (1989) argumentei que uma aposta pascalina na transcendência é o fundamento essencial para a compreensão da linguagem, para a atribuição de significado ao significado. Essa aposta, além do mais, caracteriza implícita ou explicitamente a grande arte e literatura desde Homero e Ésquilo quase até o presente; ela por si só nos permite "fazer sentido" da música. Os clássicos, as obras de literatura dominantes na modernidade, são "religiosos" em sentido específico. Eles vinculam a questão da existência ou não-existência de Deus. Apesar dose exemplos serem bastante raros (Leopardo, Mallarmé), um ateísmo consequente pode produzir imponentes alturas de visão. A alta poesia e arte podem ser construídas construídas a partir da "morte" ou ausência do transcendente. Como pode, e espantosamente tem sido, das diversas ordens de confronto com a possibilidade da "presença real" de Deus. O que me parece condenar a imaginação questionadora, o poder da forma significante, à trivialidade, é o abandono da questão da existência ou não existência de Deus ao absurdo semântico, a algum jogo de linguagem infantil que não é mais relevante ao homem.  

Somente quando terminei Presenças Reais me dei conta de como esse argumento já havia sido inevitavelmente colocado trinta anos atrás. Tolstói ou Dostoiévski procura mostrar que a estatura desses dois romancistas é inseparável do seu engajamento teológico. Se Anna Kariênina é, como Henry James percebeu, algo "tão maior" do que até mesmo Madame Bovary, se Os Irmãos Karamazov excede de maneira tão formidável Balzac e Dickens, a razão é a centralidade para Tolstói e Dostoiévski da questão-Deus. Por sua vez, o que torna legítima a afinidade de Tolstói com Homero e Dostoiévski com Shakespeare é uma intimação compartilhada das realidades, individual e coletiva, física e histórica, além do alcance do empírico. Para ambos os mestres russos, assim como para Pasternak e Solzhenitsyn depois deles, a assunção de D. H. Lawrence de que, para ser um grande artista ou escritor era preciso se ficar "nu para as chamas de Deus" (ou do não-ser de Deus), era auto-evidente. O constante recurso de Tolstói ao mysterium da ressurreição, as figurações de Dostoiévski de um niilismo apocalíptico, são simultaneamente atos incomparáveis de concepção narrativa e dramática e de filosofia religiosa. Esse livro evoca as afinidades profundas entre a realização russa e o cenário teológico em Hawthorne ou Melville."

Texto com comentários aqui.