Às vezes fico sem a mínima disposição para escrever no blog, como vem sendo desde minha última postagem. Isso não é nenhum indício de que eu queira parar, mas uma simples afasia. Tem suas vantagens, pois se eu me distancio do blog, toda a internet perde o interesse para mim. Fico dias sem acessar. Minha esposa me olha surpresa ao ver meu total descaso quanto a smartphone e a notebook. Eu fico livre. Na verdade, jamais gostei de internet, o que me atrai para isso é o enorme contato com literatura e com pessoas que amam livros. Vou escrever levianamente sobre o que vem acontecendo em minha vida nesses últimos dias, sem preocupação de ser coerente, sistemático, organizado, literário. Talvez assim quebre o bloqueio quanto ao blog e a coisa volte a me entusiasmar. Vou tentar falar de besteiras, das últimas agressões ao cartão de crédito na compra de novos livros, vida pessoal e leituras inusitadas. De alguma forma, todos esses itens se relacionam.
Primeiro: realizei um sonho antigo. Comprei de uma só vez os 5 volumes da biografia de Dostoiévski, o clássico escrito por Joseph Frank. Sempre namorei esses livros e sempre adiei comprá-los porque são absurdamente caros. Parcelei em dez vezes pela Livraria Cultura, e isso, por incrível que pareça, não foi motivado pela perdulariedade, mas um prêmio da poupança. Minha esposa é quem controla nossas finanças. Os cartões dos bancos ficam na posse dela, todo o dinheiro ela que saca e deposita e paga as contas. Eu passo meses sem tocar em dinheiro. Isso é maravilhoso. A Dani é extremamente econômica, mão-de-vaca mesmo. Costumo brincar com as visitas falando que a Dani é tão segura que ainda temos o potinho com o resto da primeira papinha da Júlia na geladeira. É um exagero, claro, mas reflete a realidade, pois constantemente me enfezo com ela por encontra sobras do jantar de três dias estocado na geladeira. "Dani, isso vai me matar ainda, quando eu chegar com fome e enfiar imprevidentemente uma garfada de talharim estragado na boca", digo, ao que ela me devolve perguntando por que eu não jogava o restos fora. Talvez porque fui contaminado por sua seguridade. Dessa forma, entretanto, viemos economizando e reduzindo substancialmente gastos desnecessários, de maneiras que sobra dinheiro para colocarmos na poupança. E como prêmio, ela deixou que eu comprasse esses livros. Há uma caixa constante para a compra de livros, que sabemos ser primeira necessidade aqui, mas Joseph Frank era um tabu, era quase uma joia. Mas vi que era a hora de lê-los depois que li um texto em que fala que David Foster Wallace se encantou sobremaneira com eles. Pois os livros chegaram e eu os manejei ainda não acreditando. A vida cheia de Dostoiévski; quero me entupir de Dostoiévski; Dostoiévski overdose; Dostoiévski nunca é demais.
A Júlia no final de semana passada apresentou um quadro de febre intermitente, sem nenhum outro sintoma acompanhante. Ela continuava com sua ultra-energia, pulando pela casa, dançando e cantando e dizendo "olha o que eu sei fazer, papai", mas com febre de 37,5 graus. Corremos com ela para a capital com temor que fosse dengue. Voltei ontem, e elas ficaram porque vão aproveitar para irem a um aniversário de um ano de uma prima da Júlia, no sábado. Fizemos uma bateria de exames e o pediatra, uma figura pynchoniana que chega ao consultório montado em uma moto hippie customizada, e trata com brutalidade emudecedora os pais mas com uma doçura fora do comum as crianças (e tem o consultório lotado), apontou para a Júlia que ensaiava passos de balé em sua sala e perguntou: "essa menina aí que vocês acham que está com dengue?" Constatou-se que era uma virose passageira, e eu quase suspeito que foi um golpe planejado da Júlia e da Dani para irem ao aniversário. Não há aflição maior do que a que eu sinto quando alguma coisa acontece com a Júlia, as peculiaridades da infância. Estou lendo Amor sem fim, do Ian McEwan, e lá se diz que o amor familiar costuma ser tão intenso que a evolução impõe fases de esquecimento quanto às pessoas queridas para que se possa seguir em frente e batalhar pela sobrevivência. É verdadeira aquela frase clichê de que quem nos faz sofrer são as pessoas que amamos.
A Dani está grávida. Acho que já posso contar. O certo seria depois de três meses, e ela está com dois meses. Mas acho que já posso contar. Ela engravidou há alguns meses, foi uma plenitude quando pegamos o exame e o lemos em uma praça, mas logo após veio um aborto espontâneo. Mas agora, a taxa hormonal está ótima, e os primeiros exames permitem tranquilidade. Foram dois meses de namoro intenso e com atmosfera proibitiva nonsense. Parecia que nós estávamos burlando leis domésticas rígidas e tínhamos voltado aos primeiros tempos do namoro. Tudo porque a Júlia poderia acordar e interromper a coisa. O plano era eu acordar primeiro, tomar banho, acordar a Dani e, enquanto ela tomava banho, eu colocava um colchão na biblioteca. Tudo na ponta dos pés. Eu anunciava solenemente esses eventos na mesa de jantar, dizendo com total trivialidade: "que tal se amanhã acordássemos às seis para darmos um tapa na boneca?" "Não sei Dani, mas suponho que devemos marcar a peia para esse começo de semana." Eu fazia minha versão de sotaque pomposo de lord inglês, imitando o Terry Jones. A Dani se fartava de rir. Lembrei a ela de quando ela estava grávida da Júlia e nós passamos um mês no apartamento da minha mãe. Minha mãe nos martiriza com sua compulsão por nos oferecer coisas de comer o dia inteiro. Tenho certeza que ela faz isso por puro prazer da tortura. Se eu já almocei diante ela, ela viu que eu almocei bem, ela ainda assim depois que eu deposito o prato na pia me diz: "mas só? Não comeu nada. Coma mais." Daí que uma noite em que estávamos na cama, provando a teoria de que as mulheres grávidas ficam com uma libido acentuada, eu imaginei em voz alta minha mãe abrindo a porta imprevistamente durante o teste da teoria, às duas da madrugada, para dizer: "Dani, por que você não come um Danette? Quer que eu traga um iogurte grego da cozinha para você?" E a Dani sofregamente respondendo: "Agora não, Telma. Já estou cheia, obrigada." E minha mãe, parada na soleira da porta, continuando: "Se eu fosse você eu tomava um Danone agora. Parece que você não jantou quase nada." Ao que a Dani respondia: "Não, Telma, obrigada. Talvez quando terminar aqui eu beba um copo de água."
Ah, antes que eu me esqueça: o seu Gercino, meu sogro falecido há um ano, apareceu na pupila da minha sobrinha de cinco meses. A Dani veio me dizer isso quando eu estava no escritório escrevendo. Não tive paciência em um primeiro momento, mas depois cedi à curiosidade dela por minha opinião e vi a foto que a irmã lhe mandara. Que todo mundo dizia ver o fantasma do seu Gercino pela casa era algo corriqueiro, mas agora essa manifestação física captada pela eletrônica já era demais. Eu vi a foto. Foi tirada pelo pai da Ester, que focou o olho da filha para ver que cor era, e pimba, lá estava o pimpolho do seu Gercino fazendo seu truquezinho aprendido com esmero no outro lado. "Pareidolia", minha voz doutoral de homem sério que não tinha tempo para tais besteiras disse. "Quer ver, vou tirar fotos de seu olho e vai aparecer alguma forma imaginária também." Com o celular, tirei umas dez fotos do olho verde da Dani, e quando fomos ver não apareceu ninguém, só um insofismável olho verde. Tirei mais cinco fotos com a Dani de frente à janela, para que a incidência de mais luz promovesse o fenômeno, mas de novo, só o olho. Voltei a olhar a foto com mais seriedade, e disse: "Mas aqui o seu Gercino aparece de chapéu, e ele nunca usou chapéu. E por que diabos alguém vai adquirir novos hábitos depois de morto?" Ao que a Dani disse: "Sei lá, isso é um chapéu? Não tinha reparado, parece ser mesmo um chapéu. Vai ver a a luz ambiente lá é mais forte e incomoda." Meu cunhado mandou outra foto, uma ampliação por um programa de computador com boa definição da mesma foto. Dava para ver agora o rosto de mais perto. Via-se o bigode preto e a barba branca, tais quais tinha seu Gercino. A ampliação retirara o chapéu e seu ar de gângster, e mostrava um amoroso sorriso diante a neta que quando ele estava vivo não conhecera. Eu olhei para a Dani e disse: "Isso aqui está parecendo o conto 'Cartas de mamãe', do Cortázar, só falta você dizer 'Você não achou que ele está muito mais magro?'"
Indo direto ao assunto: sendo verdade ou não, isso me fez comprar 4 livros sobre vida após a morte e lê-los um a um. Não que isso chegara a me preocupar ou balançar meu agnosticismo bem resolvido, ou aumentara ou diminuíra meu medo da morte. Não tenho medo da morte e raras as vezes penso nela. O que acho que me levou a ler tal literatura foi minha propensão a achar ridícula a pretensão de nossa infância do pensamento. Minha concepção secreta da existência é que existe uma continuidade após a morte, o que como funciona ou o que acontece são mistérios insolúveis para mim. O mais próximo que minha imaginação chega é que tudo é uma transformação termodinâmica para que se mantenha o fluxo de energia. Talvez a consciência não exista propriamente como a temos nessa vida, e o que resta dela se densifica em outra matéria. Talvez não precise de deus para isso, apenas uma versão básica inevitável da condensação. Tenho sido possuído por uma convicção descansada esses últimos anos de que somos parte do universo, assim como tudo aquilo que nos assusta: temos o mesmo direito de pertencimento no universo que as tempestades e os buracos negros, e somos tão seguramente arregimentados pela força quanto qualquer fenômeno extraordinário que nos pareça distante ou fantástico demais. Isso faz com que o romantismo bombástico das sinfonias chorosas da filosofia perca consistência. Se somos parte da ciência, e não vítimas de sua oposição niilista, qual propósito tem caras como Sartre e todos aqueles que confeccionaram teorias pesadíssimas sobre a grande noite profunda de nossa solidão cósmica? Seja o que for em que nos transformamos após a morte, se um fogo-fátuo do qual se descarrega todas as lembranças, a única certeza é que não estamos sozinhos, e estamos impossibilitados por uma mera questão de reaproveitamento contínuo de um espaço definido em sermos atirados ao nada. O nada não existe.
Agora tais livros falam de algo mais, de algo realmente incrível. Falam de uma ordem matemática com departamentos e burocracia própria. Tá bom, tá bom. Não são livros quaisquer, ou ao menos um deles não é qualquer livro. O mais importante deles se chama 20 casos sugestivos de reencarnação, de autoria de Ian Stevenson. É um autor extremante conceituado e respeitado. O próprio Carl Sagan disse que esse livro deveria ser lido. Pesquisem sobre ele. É um clássico e uma excelente leitura. O cara escreve muito bem. O mais baixo dos livros é um do tal Brian Weiss, uma espécie de Paulo Coelho da reencarnação. Um livrinho de cento e poucas páginas que comprei novo por nove reais, Muitas vidas, muitos mestres. Merece cada um dos atributos de suspeição que inspira. É escrito com leveza programada e no final se sai com a impressão de que se trata de uma enorme besteira. O autor mostra uma tendência à egolatria, e, ao contrário de Stevenson, não apresenta os mínimos dados ou a comprovação de seus dados científicos. Mas, de novo entra o Foster Wallace, que gostava e lavava a sério a literatura de auto-ajuda. Foi o primeiro livro que transita por essa seara que li. É tão irrisório que, dessas encruzilhadas da vida, gostei do livro. Pesquisei sobre Weiss, vi entrevistas e palestras dele pela net, vi que tem um culto às avessas para desmascará-lo. Um outro livro merece atenção pelos tantos enigmas que evoca: O experimeno Scole_ evidências científicas de vida após a morte. Não vou dizer nada sobre ele. É algo que deveria ser noticiado, nem que fosse por essa linha de programas do Globo Reporter ou Fantástico da minha infância que falava sobre fenômenos paranormais e me assustavam. O mínimo que pode suscitar, parafraseando Borges, é uma boa literatura fantástica. O outro é um livro que tem seu valor e sua seriedade: Evidências da vida após a morte, de Jeffrey Long e Paul Perry. O engraçado é que mesmo o clássico do Stevenson é publicado por uma editora cujo símbolo é um unicórnio, o que não serve para angariar o aspecto requerido de campo novo da ciência que o autor pretende.
O básico de minhas reflexões sobre tais livros (e em especial o de Stevenson) é o seguinte: se for verdade, se somos imortais, se a ciência conseguisse provar isso, o que aconteceria? Passei dias cogitando situações. O mundo melhoraria, ou, emulando o pensamento excessivamente darwinista do narrador do livro de MacEwan, a ausência de certezas transcendentes é uma necessidade para nossa sobrevivência biológica e como espécie? Alguém em uma vida infeliz, um neo-escravo por exemplo, diante a constatação certa de que possui uma alma impossível de morrer, se contentaria com as imposições dessa sua situação passageira na Terra? Um imortal se submeteria às linhas de produção massacrantes das fábricas chinesas da Apple? Não prendo mesmo ser o Conan Doyle dos escritores brasileiros caso eu lance um livro meu no prelo, e não digo que acredito nessas coisas. Mas também, estejam certos, eu jamais digo que não acredito. Como costumo repetir aqui a frase de um personagem que foi a vida toda ateu, em um romance de Saul Bellow, em um momento de insight de abalo às suas certezas de ateu: "Nada é absurdo o suficiente para existir, então, talvez, Deus exista." Essa é uma das frases mais revolucionárias da minha vida e um resumo da obra de Bellow, que acreditava na sobrevivência do espírito. Analisando friamente, a possibilidade das coisas levantadas pelo livro de Stevenson é mais absurda do que, vamos dizer, o bóson de Higgs, ou a teoria das cordas, ou os buracos de minhoca pelo universo, ou a preocupação de parte da imprensa científica de que os enormes aceleradores de partículas que por si mesmos já são o fantástico em um cotidiano mesmerizado de carros engarrafados nas grandes cidades possam destruir a galáxia com a produção de um buraco negro? Por que falarmos de uma sistemática da sobrevivência da consciência fora da matéria é coisa de ridículos e doidivanas, mas termos a certeza empírica de que no interior de um átomo exista energia suficiente para destruir o mundo é algo sério e indubitável. Apenas porque a segunda hipótese, antes absurda, já foi comprovada e a primeira não? Por isso, por esse preconceito e essa falta de ginga em abordar esse assunto de frente, muitas pessoas circunvagueiam o tema para conservarem seus respeitos sociais. No final de O homem sem qualidades, Musil começa a falar de Swedenborg, místico que Borges tinha uma verdadeira fixação também disfarçada de interesse pelo exótico. Bellow é cheio de percepções desse mesmo calibre, e seus personagens preferem os textos religiosos e esotéricos. Nooteboom fala em seu magnífico Dia de finados sobre uma experiência de quase morte, uma cena belíssima que se conclui com o personagem pensando mas deixa para lá, não é seguro falar sobre essas coisas no mundo de hoje. E assim vai, não vou amolar com mais exemplos.
O que quero dizer é que, analisando bem, não encontrei religiões que tratem com seriedade a possibilidade da vida após a morte. No meu entendimento, estranhamente, tirando o hinduísmo, o budismo e o judaísmo antigo, todas as outras religiões são essencialmente niilistas, e mesmo essas usam a sobrevivência do espírito com o referencial de devoção a uma causa política ou a um organograma social. O cristianismo talvez seja a mais niilista das religiões, pois nenhuma de suas vertentes oferece outra coisa que o sono profundo depois da morte, o sono em que Jesus voltará no dia do advento para retirar os escolhidos. Ou seja, isso não passa da mais pérfida e plástica versão do niilismo da morte eterna. O que me faz entender ainda melhor quando Nietzsche falava sobre a religião de rebanhos, a religião de escravos, cuja piedade é um cabresto amarrado no fiel em função de que ele cumpra seu papel na ordem estabelecida e nunca se revolte. Não existe, até hoje, uma religião profunda, libertária, verdadeira, mística, transformadora, carregada de amor sincero. Todas as religiões são consequências históricas, são aparatos para a preservação da estrutura banal do mundo o qual elas simulam mentirosamente repudiarem em seus cernes. Todas as religiões são ardilosidades criadas pelos inimigos do conhecimento e das revelações que uma religião utópica impossível promete vir oferecer. Por isso essa insolvência entre ciência e religião, pois a ciência, em um momento fundador pretérito, se firmou como opositor à instituição criminosa e assassina das religiões, com seus papismos e luteranismos de múltiplos atrasos. De forma que os homens livres que outrora faziam o frescor da ciência promulgaram o repúdio a toda forma de religião, o que impossibilitou ainda mais que a verdadeira religião pudesse algum dia vir à Terra.