terça-feira, 31 de julho de 2012

William Faulkner no Balcão


Nas fotos ele sempre aparece muito senhor de si, com um certo ar distante de artista a quem não interessa a vanguarda, como se obedecendo um antigo e arraigado conceito adquirido nos pátios da infância quando se deparou pela primeira vez com a obscura imagem de algum poeta francês morto e há muito esquecido e que então passou a ser a atmosférica mitológica não revelada de tudo que escreveu_ não revelada e nunca manifesta em nenhuma palavra sobre sua particular urdidura artística, a não ser nessas fotos, em sua pose de barão destituído de quem nunca tirarão a última filigrana de honra e sobrevivência familiar e de impecabilidade estampada no branco anódino de seu terno. Em algumas fotos, não de todo inconscientemente desprovidas de intenção, ele aparece em situações mais íntimas, sem camisa e de calção sentado em uma cadeira de praia, em mangas de camisa, furtivamente flagrado na sacada de sua propriedade rural, por entre as pilastras, depois do que parece ser o cotidiano árduo não da escrita, mas do bruto trabalho no campo. Isso casa bem com suas declarações de que não se considera mais que um fazendeiro, de que não lhe interessam viagens para o exterior, de que as rodas de conversa das quais participa não são as dos salões literários mas as que ensejam os funcionários de suas terras, a maioria negros e o absoluto deles iletrados e só intuidores, sem que isso lhes desperte importância, de que o patrão exerce hora ou outra algumas tarefas referentes a um mundo estrangeiro distante de brilho inapreensível.

Nada revela mais sua fragilidade física que vê-lo pessoalmente, aquém dos efeitos helênicos das fotos em preto e branco prontas para reforçá-lo inigualavelmente em peso e imortalidade nas paredes das universidades. Sua magreza, sua baixa estatura, seus cabelos brancos e o erradio ar distraído que se salienta ainda mais pelo indelével afundamento das bochechas_ revelando a falha arcádica dos molares, um indicativo a mais de sua origem advinda do mais fundo e imolável sertão sulista_, não o torna diferente da imagem do homem mais prosaico e invisível de um povoado do interior. O que ao mesmo tempo refirma essa característica e a contradiz é seu olhar reservado, dirigido para dentro, distraído, alheio, intenso no centro das rugas da pele das órbitas, mediativo sem ostentação, como se voltado para assuntos de armazéns e medida de gebras, a imagem perfeita de avô que atravessa anos de juventude deformada pela ausência de cicatrizes e só encontra sua constituição verdadeira quando o corpo envelhece, quando a pele perde o frescor e se entremeia de sulcos da experiência. Como a velhice se assenta bem com seus livros, o leitor visitante pensa, como a sua juventude que o enfraquecia na falta de simpatia e incompatibilidade com seu conteúdo deve estar por detrás de seu fracasso inicial, da falta total de crença dos editores naquela púbis que desperta apenas significados rasos de garoto leviano e evasivo. Aos 50 anos, como se reconhecendo o valor necessário da degradação para efeitos mercadológicos, ele aparenta ter 60 ou mais, ele finalmente alcançou o aspecto que o torna eloquente nas fotos, que o torna compatível a toda a densidade de seus escritos.

Se bem que ele não chegou a ser velho. A velhice cronológica era um luxo pouco alcançado para os da sua geração. Morreu, como se sabe, em cima de um cavalo, passeando, como fazia todos os dias, pelos campos de sua propriedade. Enfarto cardíaco fulminante. Bebia compulsoriamente e como por força de uma religião desesperançada dos que acreditam num mundo impossível de altos padrões humanos, de altos sacrifícios e absurdos silêncios como arma falível à intolerância; bebia como todos de sua geração, não pelo sabor ou pela adstringência da loucura, mas pelo costume vernacular  de ter de fazer os gestos necessários da ortodoxia em determinadas horas do dia. Os heróis dos livros que inventou são todos de diferentes matizes coloridos, mas todos subtraídos a um espectro próprio do negro, como se suas cores houvessem sido decantadas por centenas de anos e o rosa, o azul, o verde, tivessem se degradado para um filtro univoco de sépia que sela seus personagens com uma suprema exaustão. (Como se fossem eles combalidos por um traço divinatório incômodo que tudo o que fazem parece ser determinado por um mecanicismo e automatismo alheio às suas vontades, se tivessem vontade; como se estivessem se observando além do corpo, calmamente e já sem crítica, a seus assassinatos, a suas compulsões pelo sustento, às suas submissões aos efeitos terríveis do calor do dia.) Por um bom tempo foi considerado pelos existencialistas o mais corajosamente e independente dos existencialistas, pelos hispano-americanos o mais colombiano e indígena dos autênticos romancistas no exílio, pelos sociólogos combativos o mais defensor do direito das minorias, e por quase a totalidade desses como o escritor que subliminarmente mostrava o quanto somos falíveis e sem redenção. Daí lhe deram o prêmio Nobel e ele consertou a coisa lendo, do alto de seu balcão hierárquico em Estocolmo, do lado do  espadaúdo Bertrand Russel (que o apequenava ainda mais em sua estatura física), e demonstrando para o espanto da platéia que havia recuperado a segurança que todos haviam julgado perdida ao verem-no mal se sustendo de bêbado, o seu discurso sobre a perseverança e persistência do homem, a sua crença no homem.

Existem tantas lendas a seu respeito que elas já passam a ser suspeitas de fatos. Era egresso da Universidade do Mississipi, em Oxford, mas não aguentou um ano e desistiu, indo trabalhar em uma livraria de Nova York. Era visto imóvel na mesma posição durante uma hora, em profunda contemplação interior. Passou por vários empregos: quando era carteiro, cartas não chegavam a seu destinatário; quando era mineiro, escreveu todo um livro, intitulado Enquanto Agonizo, com o caderno e o lápis por cima de uma debulhadora, nas horas de descanso. Nas poucas vezes que saiu de suas terras e do horizonte reduzido de sua infância_ quando já mundialmente conhecido_, diz-se que em Paris entrou num bar para ver James Joyce, olhou de longe e saiu. No Japão do pós-guerra, foi um dos únicos, senão o único, escritor americano que foi ouvido completamente por japoneses inteirados em diversas palestras sobre a natureza humana. Coetzee escreveu um ensaio em que realça o substrato de seu alcoolismo, as tantas vezes em que sua esposa fugiu dele, o quanto sua filha não guarda boas lembranças do pai que esmurrava as portas da casa. Talvez tivesse sido um homem cujos demônios afloravam com frequência, como ocorre com todos os homens. Talvez não tivesse sido um bom pai, talvez tivesse sido apenas um patrão estagnado em sua postura vestigial de patriarca satisfeito com suas posses de cabeças humanas, talvez sua irresponsabilidade e sua completa ineficiência social revele, em última instância, a preguiça dos que não se importam com nada mas que tem que fazer o teatro da consideração de alguma forma (a dele sendo pelas letras). Mas o Faulkner que vem à cabeça e no coração do leitor que o viu em vários perfis é o que escreveu de forma inigualavelmente profunda, verdadeira e humana, as razões por Thomas Sutpen ter se tornado tão inumano_ sua rejeição e sua solidão na infância_ naquelas páginas de reminiscências acidentais que equivalem a uma abdução violenta do leitor para uma dimensão de ternura quase insuportável. Vem do mesmo diagnóstico reafirmado em Joe Christmas, em Luz em Agosto

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Aqui do Lado



Já há algum tempo leio os blogs destinados a escritores e suas obras. Leio-os assiduamente, toda a vez que ligo o computador. A maioria dos dias, tais blogs são a razão única que me sustenta na web. Há, entre esses sites, fundações em nome de escritores (como a de Saul Bellow), jornais com uma tradição já consolidada na decifração e estudo aprofundado da obra (o melhor entre estes é o destinado a Thomas Pynchon, que mostra um grupo de gente realmente empenhado), e locais esparsos, oficiais ou não, onde textos exclusivos são escritos pelo autor e postado lá (o de Philip Roth se distingue). Entre os da nossa raça, claro que eu lia fidedignamente o do Saramago, que, apesar de tanto ler dele, o que mais senti com a sua morte foi a interrupção definitiva desse contato diário de intimidade. Um dos meus preferidos é o poderoso blog do Javier Marías, escritor que vem sendo uma das minhas novas obsessões. Lá, encontro postagens atualizadas com empenho em que Marías, um dos maiores escritores do mundo e um cara simplesmente inigualável (tem entre seus admiradores gente como Coetzee, Husdie, Vila-Matas_ e Bolaño, o zinca do Bolaño, quando falava de rivais de profissão, admitiu que Marías era o melhor escritor em espanhol das últimas décadas), textos que tratam sobre política europeia atual, sobre literatura, sendo entre estes um gratificante estudo sobre ninguém menos que William Faulkner.

Pois bem. Eu nunca pensava que um dia a web iria ser levada a sério e de forma tão desencanada assim por grandes escritores. Que facilidade há ali no blog do Marías. Ele se deixa aparecer com uma vaidade saudável, faz um mural de suas realizações, algo que deve alimentar muito a tietagem mas também se mostra uma arma honesta para se discutir e apreciar literatura de uma forma ampla e moderna. Tais blogs me mostraram que os escritores souberam reverter a net para seus benefícios e para o benefício dos livros. Não sei onde li um desses doutores afirmar que a o afã de coisa inigualável da net passou, e ela está se desmaiando calmamente em seu devido lugar de mais um utensílio de comunicação, sem mistérios e sem perigos, como o telégrafo e a televisão. A net perdeu seu caráter ofensivo e ameaçador, e o Facebook, segundo esse mesmo autor, em dez anos não será mais lembrado (fica fácil dar corda a esse prognóstico ao ver o prejuízo que tal empresa está tendo após abrir suas ações na bolsa, e a crise relativa por anunciantes _ a General Motors, sua principal patrocinadora nos EUA, não renovou o contrato para os próximos anos).

Renovei meu espanto por me ver próximo a um escritor estimado ao postar um comentário em um blog português hoje. Há muito não leio Lobo Antunes, uns cinco anos; mas o li muito, com afinco e deslumbramento. Li os Cus de Judas, O Esplendor de Portugal, O Conhecimento do Inferno, e mais uns três ou quatro. Antunes é um desses escritores perigosos para um escritor aspirante ao mercado de publicações. Ele é tão deletério quanto Hemingway. Ao se ler Antunes, a pessoa passa a escrever tudo e qualquer coisa com a voz do Antunes na cabeça.Parece uma possessão demoníaca. Até um simples recado preso à geladeira para a esposa tem um acento consonantal que cheira nitidamente aos longos parágrafos polifônicos carregados de metáfora antuneanas. Quando eu lia Hemingway, até para conversar pedindo o troco ao cobrador do ônibus soava com a macheza de índio lacônico do autor das aventuras de Nick Adams. Deixei de ler Antunes não por causa disso, mas porque ele passou a seu o autor mais pós-revolucionário e pós-literatura dos últimos tempos. Seus mais recentes romances parecem ter sido contaminados por um vírus de computador. Textos desalinhados, várias vozes falando ao mesmo tempo, um desconstrutivismo que simplesmente me expulsou de vez. Uma das coisas que mais lamento, por certo, no universo literário é esse fato do Antunes ter-se finneganswakeizado. 

Mas a coisa que eu estava a falar era sobre a intimidade da web ao nos aproximar de escritores.Pois postei um comentário sobre Antunes em um blog falando sobre um de seus romances, e quem parece que aparece no comentário debaixo, senão o próprio Antunes? Não examinei a veracidade da coisa, mas pelo atenção severa que dei ao caso, creio que é o Antunes.

Ainda bem que não falei de todo mal do cara, só o que falei aí em cima. Acho.



domingo, 29 de julho de 2012

Immortal Beloved ~ Ode To Joy Scene




Assisti à Minha Amada Imortal no cinema, e depois, incontáveis vezes em VHS e DVD. Essa cena acima me limpou a alma. No todo é um filme mediano, mas cuja cena especificada é de uma sublimidade pouco alcançada por outros filmes maiores. Lembro que chorei, tomado por uma infinita sensação de beleza, e como nas experiências estéticas extremas, me senti preparado para morrer naquele momento. Diante o lago e as estrelas refletidas, tive aquela convicção perigosa dada pela inesperada intrusão da beleza, de que de tudo até então, aquilo era o ponto culminante e já me bastava. O problema é que sempre que escuto a Nona, e começa o último movimento, me é impossível dissociar a música da cena.

Um Desses Domingos Desterrados do Infinito



Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (Friedrich Nietzsche)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Romances-Moradias (Divagações)


Os escritores de língua espanhola atuais nos reservam o grato reconhecimento da mais alta tradição literária em suas obras. Lê-los não é só rememorar constantemente um caminho percorrido da leitura, com suas nostalgias da adolescência e a percepção segura de um aspecto valioso da verdade só conseguida com  o que a maturidade nos antepõe de preparo diante a página aberta, mas também um elogioso afago ao nosso imodesto conhecimento livresco. Então que livros como Seu Rosto Amanhã, que não trata de forma tão explicita da metalinguagem literária como O Mal de Montano (e os demais de Vila-Matas), nos dão a impressão deleitosa de estarmos andando através da margem do Sena onde ficam as bancas de livros usados, ou de sempre estarmos atravessando as escadas que nos levam a um apartamento pequeno mas acolhedor de cuja janela observamos a dama obscura, detentora de alguma auto-revelação infeliz que a torna perigosamente isolada no apartamento de frente, ou vemos na janela mais distante, numa noite de chuva londrina, o bailarino que em altas horas executa seus passos de dança no silêncio junto a uma negra de beleza portentosa e uma loira de vestido vermelho elegante; alguns desses tantos sinais distribuídos generosamente entre as palavras acentuadas com um tom ligeiramente antiquado a propositadamente tangente ao obsoleto, maneira astuta infalível de restituir ao livro seu caráter mobiliário, de coisa que se pode habitar, de conforto físico de seda e veludo, de sapatos retirados ao lado da cadeira, de sonoridade imprecisa intermitente que se repete a um nível subsônico (uma abelha na vidraça do quarto dos fundos, a chuva sobre o telhado, as folhas das árvores revoando singelamente, ou mesmo uma surreal motorneira ou uma força indistinta que simula o som de impacto abrupto arrastado de uma motorneira a três quarteirões de distância na noite escura e vazia), que embala nossa atenção languidamente ao sabor da prosódia descansada e profunda do livro (descansada, tensa e magneticamente profunda quanto A Arte da Fuga que escuto agora pela undécima vez enquanto escrevo, e que é a trilha sonora magnífica para tais leituras). Seu Rosto Amanhã nos restitui, a nós, os leitores insubmissos a fórmulas pequenas de grande sucesso ou apenas às triviais trapaças de mercado que apontam novas modas do romance para ver se pega, o direito de desprovermos de qualquer necessidade de cor para nos declararmos despreocupadamente como velhos leitores, portadores de carteira do clube e com direito a admissão seleta a qualquer hora, com café ou chá à espera, com nossa poltrona pessoal de couro, com a caixa de som de madeira em forma auricular apontada para o lado das cortinas, em que a música se distribui na melhor e mais apropriada acústica. Conhecer Javier Marías ano passado foi equivalente em intensidade ao recolhimento da descoberta de Thomas Mann aos 16 anos, em que Doutor Fausto me abriu as portas do gabinete do clube mesmo eu estando em uma chácara mineira da minha avó, com ganços e fogos-fátuos surgindo no campo de madrugada. Há poucos livros que se permitem morar neles; mesmo Doutor Fausto não é apropriadamente um deles, mas Thomas Mann foi o que mais criou romances-moradias, romances-castelos medievais, romances-asilos europeus (há uma redesignação deles em romances-salões de baile, Tolstói sendo seu representante máximo); há de ver que Montanha Mágica é o maior desse gênero de romances (por vezes ao ano, geralmente no inverno suíço, eu deito sobre  o meu divã e faço os três movimentos virtuoses que aderem plenamente o cobertor de couro de camelo por sobre meu corpo), mas também há a mansão em processo de falência dos Buddenbrooks, e todo o recanto oriental da aldeia de José e seus Irmãos. Javier Marías é o mais eficiente sucessor de Mann, considerando que seu conterrâneo, Vila-Matas, muitas vezes perde a maestria ao evidenciar demais os mobiliários e assoviar em volume impropriadamente alto, ou deixar o fogo da lareira descuidadamente um pouco acima do limite ideal, fazendo que fagulhas pulem para fora e queimem o feltro dos chinelos dos sócios. Só Javier tem a medida correta de acalanto, de rumorejo, de irresistibilidade, de pertencimento, de sossego despreocupado. só ele tem o volume valvar da voz que silencia tudo em torno e nos afunda no mundo. Bolaño conseguiu construir seu romance-moradia em 2666, mas o decorou com cores aberrantes demais (o que não é de se criticar, pois é um dos poderes do livro), que ofuscam as vistas para o enquadrar no cânone dos romances arquitetônicos. Junto a Marías, eu conheço, entre os escritores vivos, apenas um outro com a mesma genialidade estrutural, o italiano Claudio Magris. Mas Danúbio não é propriamente um romance, o que, apenas pelo valor conjuntural, coloca Marías na frente.

                                                     *****************************
Louis Gabriel Eugène Isabey- "Interior of an Alchemist`s Study"


Não à toa esses escritores_ os dois espanhóis, o castelhano e o italiano_ devem muito a Borges, o construtor por natureza de clubes de recolhimento nos quais se entra pelo fisicamente reduzido portal de um conto. A diferença do conto-moradia de Borges é que mal se senta em sua poltrona e distrai-se a olhar para as luminárias a meia luz do teto, já se tem que pegar seu bilhete carimbado de volta do mordomo perfeitamente cavalheiresco da entrada, e se dirigir para um outro ambiente com outra luz e canção atmosférica subliminar, pois um conto pode ser infinito mas materialmente mais curto que a biologia determinada do leitor por feixes neuronais que só se aquietam com uma longa e mimada constância. Mas em Borges, esse excepcional arquiteto, esses autores não bebem apenas a sua riquíssima criação autoral, mas também os outros arquitetos milenares da escrita que a erudição gigantesca de Borges surrupia e os usurpa como sendo seus. Borges tem tanto para ensinar a esses erguidores de palácios, que mesmo um outro autor de romances-moradias (um tanto sombrias e rumorejantes, mas ainda assim, ou talvez em razão disso, insuportavelmente sedutoras), Franz Kafka, recebe um olhar carregado de ineditismo, aponta marquises e ângulos de canto que o simples pernoite na obra original não nos deixa ver. Borges tem as lentes certas e os candelabros raros de luzes mais sofisticadas para nos guiar pelos clubes de construtores como H. P. Lovecraft, Arthur Machen, Sheridan Le Fanu; e é tanto maior o charme do recolhimento ao vermos que são mansões e casarões espaçosos cujo interior aquecido em nada adverte contra as charnecas cercantes e a aparência externa geral de total esquecimento e abandono. Borges reforça com tanto brilho os tons de malta do interior dessas moradias que nos torna improvável acreditar que um dia elas poderiam estar esquecidas. Magris tem a mesma dívida que Vila-Matas tem a Borges: o imaginário literário que o argentino guarda na maçonaria de seus conhecimentos históricos sobre o universo dos livros. Borges dá a cada página a esses escritores os marcos na paisagem em que eles devem se deter e observar, e Magris deve-o mais por escrever com semelhante requinte borgeano de insinuar espaços e tramas maiores que o poderiam comportar o parágrafo de um autor menos capaz e de menor talento. Em Magris constantemente vemos o movimento da paleta de Borges, sua forma de apreender uma verdade inalcançável através de gestos estudados de enfado altaneiro, como quem diz que sabe muito mais que anuncia, que vê mais que a fisiologia dos olhos ou a cegueira capacita (por isso a mim parece que entre as maiores páginas de Borges estão suas resenhas e prólogos minimalistas que cobrem meia página ou tão somente uma página inteira: como o dilema resolvido de Borges partisse de que tudo o que escreveu repete o ponto concêntrico no porão de onde se vê todo o universo, no O Aleph). 

                                                    ***************************

Em uma das partes mais magistrais de Seu Rosto Amanhã, o narrador conversa com um colecionador de livros, e ambos dividem o apreço que sentem por um dos autores borgeanos que nunca ouviu falar de Borges, o escritor galês de contos de terror Arthur Machen. O colecionador de livros, que é manco e sempre está na presença de seu cão com três patas, diz que a narrativa de terror surge pela união de elementos estranhos e incompatíveis, que de outro modo que não fosse o propósito de confeccionar o implausível aterrorizante jamais a providência dos fatos deixaria que se encontrassem. Assim, ele explica, apontando pela janela do apartamento londrino do narrador a bela vendedora de flores da esquina, se juntarmos o meu cão de três patas e aquela moça das flores, já temos ambiente mais que suficiente para o desdobramento de um passado escuro que transverte a singeleza da moça em crimes escondidos e monstruosidade. O colecionador diz que seu cão perdeu a perna ao serem ambos atacados por uma turma de delinquentes, que, ao verem-nos saírem de um pub, o espancou e prendeu seu cãozinho nos trilhos diante o trem que se aproximava. Isso aconteceu, conclui, por eu ter levado uma vida desregrada que me permitia frequentar lugares perigosos, em horários impróprios, de forma que levar pela vida toda a minha manqueira e meu cão se suster em três pernas em vez de quatro não é tão uma fatalidade quanto parece, mas uma consequência matematicamente plausível de que em algum momento o pior iria acontecer. Mas se víssemos aquela doce florista com um cão de três pernas, aí sim teríamos muito o que pensar e temer. A moça jamais deve frequentar ambientes reclusos e suspeitos, deve sair de sua barraca de flores e voltar cordatamente para a casa da mãe; sua vida é tão frugal e previsível, que a companhia de um cão de três patas revelaria a necessidade de que um desvio padrão acontecera em sua calma instância espiritual, um surto de loucura, em que ela teve por um momento em mãos uma faca, a chamada de intensa fúria reprimida pelo cãozinho que se esconde por debaixo da estante da cozinha...

terça-feira, 24 de julho de 2012

Rosa

A Caminhante me desafiou já tem uma semana. Ela lerá o Ulisses se eu finalmente ler Grande Sertão: Veredas. Pois andei por toda a cidade à procura do livro do Rosa e só fui encontrá-lo hoje. A trigésima terceira edição da Nova Fronteira. Li a primeira página e, confesso, fui alvo de uma intensa preguiça. Isso requer explicação: eu me considero um exímio leitor, um leitor profissional. Sou assolado por uma intranquilidade infinita quando leio apressadamente. Há um ano li Seu Rosto Amanhã, do Javier Marías, em alta velocidade, e saí com uma impressão ruim desse cultuado romance. Semana passada adquiri as outras duas partes da trilogia do Marías e, de birra, reli a primeira parte com uma renovada atenção, e eis que tive opinião totalmente oposta do primeiro enfrentamento da obra. Seu Rosto Amanhã é esplêndido! Lembrei de um personagem do Saul Bellow (creio que Charles Citrine, o narrador de Humboldt`s Gift), que percebia a afasia que o cotidiano lhe causava ao se diagnosticar a velhice das leituras desatentas, ele que também se deliciava por sempre ser um leitor vigoroso. Pois a releitura do Marías me fez ver passagens do livro que me fizeram perguntar: por que não sublinhei isso da primeira vez? Pois foi esse cansaço que me pego tendo no vislumbre da primeira página de Rosa. Abrindo meu consciente, o que me suscitou dos neologismos de Rosa deve ser a mesma coisa que a lâmina de barbear cruzada por sobre o espelho de Buck Mulligan deve ter provocado na Fernanda: o desestímulo diante a palavra. E esse é o maior dos pecados, sempre combatido por mim. E Rosa me causou_ e ainda me causa isso. Rosa, o sertão, o brasileiro, as tantas escolas próximas com suas ortodoxias pesadas que rumorejam por detrás das páginas do Maior Romance Brasileiro de Todos os Tempos, aquele português sertanejo do qual eu não esperava ter que enfrentar logo agora, logo agora, que tenho tanto para ler, mas que interrompi a lista cronológica para aceitar um desafio de alguém que não conheço pessoalmente mas prezo muito. A única coisa que sobra de boa dessa péssima impressão, dessa impressão desonesta e preocupante, é que os maiores livros da minha vida, ou grande parte deles, vieram desse mesmo cansaço. Ulisses, Absalão Absalão, Tristam Shandy, Memorial do Convento, e muitos outros... A leitura guarda uma alegria suprema mas às custas de disciplina acirrada. E repito o que costumo dizer por aqui e por outras paragens: não é o leitor que aceita o livro, mas o livro que aceita o leitor. O leitor que tem que estar à altura do livro, senão, mesmo que apenas pela força física extenuante de atravessar maquinalmente 600 páginas, tudo será tempo perdido. Estou bastante ocupado hoje e não posso me alongar. Mas, conforme combinei com a Fernanda, começaremos hoje o desafio. Às nove horas vou para meu refúgio e me revestirei de humildade e atenção para que Rosa me aceite em toda minha estrangeridade e extravagância.

domingo, 15 de julho de 2012

Uma Experiência Religiosa


Quinta-feira passada fui à casa de um conhecido para fins particulares e sua esposa me pôs sentado à espera no sofá ao lado dos dois filhos, de frente à tv. Era o horário da novela mais assistida da Globo, a assim chamada Avenida Brasil. Já havia visto algumas cenas esparsas dessa novela, nessas causalidades inevitáveis das quais seria de todo impossível da minha parte identificar onde, em qual aparelho de tv ou em qual casa vi tais cenas, já que na minha casa nós nunca ligamos a tv na rede Globo. Minha esposa e eu, a título de rendermos a vênia vestigial à mídia corporativa das tvs, às vezes deixávamos o aparelho ligado em qualquer dessas outras emissoras de canais abertos (não temos antena parabólica e nem tampouco tv a cabo), só para fins incompreensíveis de promover algum barulho idiota como fundo a conversas soltas ou cafunés, enquanto falamos sobre o dia. Mas a maior das vezes, ficamos todos em outras atividades, como ouvir música, brincar com as crianças, olhando o teto, folheando livros infantis ou fartamente ilustrados.

Mas nessa quinta-feira, deslumbrei-me diante as cenas da Avenida Brasil. Vou descrever o que vi: um homem e uma mulher deitados no chão, cada um deles comendo um sorvete no palito. Os dois falavam sobre algo que parecia, a um não iniciado como eu, ser uma conspiração contra alguma pessoa, visando lucro_ um roubo, um sequestro, a venda de fotos obscenas, algo assim_, mas o que interessava mesmo eram as caras e bocas que faziam para demonstrar o quanto o sorvete lhes deliciavam. O sorvete, como aparecia claramente na embalagem, era o Magnum, da Kibon, recheado com creme e coberto com chocolate. Eu ali assistindo, fascinado. Em certo momento, flagro um improviso da atriz (Adriana Esteves, se minha memória não falha); um pedaço da cobertura de chocolate do ator cai no chão, e ela o acompanha com os olhos, e fica com os olhos por um bom tempo ali, nas coxas do rapaz, enquanto sua inteligência de profissional tarimbada se põe a pensar o que fazer, voltar os olhos para o moço e fingir não ter visto o acidente era algo amador e irreal demais; pegar a casquinha exigiria um desvio no roteiro que se embrenhava cada vez mais na intensidade dos projetos nefastos do casal, o que seria um anti-clímax (e a cena era toda em uma só tomada, para não supra-numerar o paladar de ambos com repetidos sorvetes a serem degustados). Ela então, num ás de esperteza artística, decide atacar o sorvete do amante. Enquanto ele reclama não sei do quê (se a demora da conclusão do plano; se o atraso na captura do refém; se a arma certa para a consumação do roubo), ela morde o sorvete dele, faz uma cara depravada, e aí então, avalizada por essa ousadia quebradora da uniformidade congelante diante as armadilhas do acaso, ela finalmente pode ter de volta o domínio de cena e erguer os olhos e seguir adiante com o script.

Passado esse momento de tensão, o rapaz (um antigo ator que não sei o nome, cuja idade já deve estar beirando os 50), vestido apenas com um short, se levanta e vai até o banheiro, levanta a tampa do vaso, arreia o short para baixo, e, enquanto vai mantendo o diálogo febrilmente coloquial com a Adriana, se põe a soltar um aguaceiro vertiginoso. Adriana pára ao lado das panelas que estão por sobre o fogão, pega uma, olha com aquela cara toda cheia de esteriótipos muito Globais e muito esteverianos que fazem os/as espectadores/as do outro lado da tela dizerem em uníssono nacional algo do tipo nossa, como ela é esperta: descobriu tudo, ou hahahaha, ela é muito má, nada passa batido para ela (enfim, alguma frase muito bem engendrada pelos psicólogos conhecedores do espírito brasileiro que escrevem as tramas, e que criam os esteverianismos para exercer a devida catarse na mulher padrão, dona de casa e emaranhada numa rede insípida de repetições cotidianas, afim dessas se sentirem vingadas pela cafajestagem ácida e simpática, o espalhafamento e a falta de decoro da Adriana), e então, Adriana leva a panela para a porta do banheiro e olha fixamente o seu macho. Este, como foi deixado momentos atrás, ainda está concentrado nos prazeres da micção cavalar (os publicitários deveriam prestar atenção nesses mínimos detalhes, vai que um sujeito mais sensitivo começa a associar ao picolé da Kibon propriedades altamente diuréticas), de maneira que demora a baixar a cabeça e abrir os olhos deleitosos para ouvir, com cara de tô ferrado (que meio Brasil repete em coro, em meio à mordida na coxinha do frango, ou na troca da fralda do bebê, ou na sombra da cortina puxada por sobre a janela para mandar a mensagem ao vizinho enxerido do apartamento ao lado se ele se manca e para de ficar espiando as pernas apijamadas). Adriana inquere violentamento ao ator quem lhe fez a janta, já que ele estava sozinho e sem grana para comprar comida de restaurante. Isso demora uns bons 3 minutos, em que Adriana monta no rapaz, já se deixando (claro que ela tá fingindo; ah...ela vai dar o troco!) ludibriar por suas desculpas, e o morde e o ameaça com a franqueza séria de uma viúva negra, de que se descobrir que ele a está traindo, o mata.

Nisso meu colega chega, me cumprimenta, e, olhando a tela, pergunta se poderíamos acabar de assistir à novela antes de irmos conversar na sala. Eu, verdadeiramente agradecido, digo que sim. Prossigamos: a Adriana sai do chalé em que deixa o amante (curioso, os personagens podem estar no fundo do poço e no mais bestial martírio social, mas seus redutos sempre são aprazíveis chalés, apartamentos ou casas de uma espécia de classe média de realidade alternativa, onde a miséria poupa atingir o sagrado mobiliário humano, daí as tantas lâmpadas acesas nas paredes, nos suspensórios da copa, nos interstícios finamente arquitetônicos das salas, como se as potestades que determinam a amargura vilã desses enredos desconsiderasse com benemerência o alto custo das tarifas elétricas), e, na cena seguinte, está beijando com carinho matriarcal o marido. Daí entra esse ator cujo nome já é por si mesmo um estudo sociológico sobre os efeitos da indústria cultural no país, Cauã Reynolds. Das cenas que vejo, ele sempre está num choro peripatético motivado por alguma angústia existencialista que eu nunca entendi bem qual é. Sempre ele está chorando, o que julgo ser uma artimanha de promover sua estética que preenche o zoom das câmeras e enternece o coração das expectadoras. Chora, chora, chora. Não pude mais entender nada, afora que há um núcleo à lá Oliver Twist centrado no lixão de São Paulo, um lugar dantesco e horrível em que um personagem  constrangedoramente estereotipado de capitão Gancho procura não sei quais tesouros escondidos.

Acabada a novela, meu colega se vira para mim e diz: puta que pariu, como eles trabalham bem! E a coisa está justamente aí: a novela global é, por excelência, o mais bem acabado e excelente produto cultural brasileiro. Não há nada tão primoroso e rico como as novelas da rede Globo em nosso país, e não há nada tão poderoso quanto elas. Elas são tão fundamentais ao gosto e à personalidade do brasileiro, que basta prestar atenção e concluir: a Globo se sustenta apenas com as novelas. Tudo o mais na Globo é coadjuvante e infinitamente menor. E os gerentes da Globo sabem lucidamente disso já há anos. O jornalismo da Globo é péssimo; seus programas de auditório são estúpidos; suas manhãs são desimportâncias consentidas apresentadas por senhoras protegidas por regimentos contratuais; suas tardes são filmes mortos e auto-promoção das novelas e dos atores dessas novelas. Mas nada há que se compare, no mundo, com as novelas globais. Fazia tanto tempo que eu não as assistia, que muito foi meu espanto ao ver o quanto evoluíram e atingiram um nível sublime e inalcançável. Os atores são excepcionais. Cauã Reynolds não fica a dever nada aos mais promissores atores hollywoodianos. A câmera, agora, é a mesma usada em cinema, com definição limpa, ressaltando com uma beleza clássica os rostos e ambientes. E os diálogos! Assistam aos diálogos das novelas da Record, e depois assistam aos diálogos da Globo. É como comparar o mais esquecido dramaturgo português do século passado com James Joyce. Isso não é exagero, dentro dos parâmetros normativos do gênero desses espetáculos de entretenimento. Nas novelas da Record, um ator fala, depois cede a vez para o outro ator responder, como um jogo de crianças respeitosas; já na Globo os diálogos dispendem de um enorme talento de concentração, desembaraço e improviso, pois um fala por cima da fala do outro, expele saliva, continua falando ao caminhar para a saída de cena. Anthony Burgues, o grande romancista inglês, numa entrevista a uma revista brasileira, ressaltou a genialidade de Chico Buarque, mas quando perguntado festivamente sobre as novelas, respondeu secamente que eram estúpidas, sem o mínimo conteúdo artístico, sem a menor relevância. Não ouso contrariar a um escritor que foi capaz de escrever um romance tão extraordinário quanto Poderes Terrenos, mesmo porquê, longe da influência hipnótica de Avenida Brasil, posso ver com a devida distância o quanto de artifícios plásticos ultra-sofisticados encobre o silêncio das musas. Os romancistas latino-americanos como Vargas Llosa e Garcia Márquez, que apreciam muito as novelas e, inclusive, já escreveram sobre elas (Llosa em Tia Júlia e o Escrevinhador, sobre as novela de rádio; Márquez, escreveu toda uma temporada  de O Direito de Nascer, como confessa em sua auto-biografia), talvez não imaginassem o quanto elas se tornariam destemidamente imbatíveis em suas eficiências sociais. O que sei é que não me aventuro mais à sugestão provocada pela sua longa exposição.

Postinho:  eu poderia ter colocado o mais que bem treinado Eric, de 3 anos, para capitanear esse momento histórico, mas nada seria mais bombástico que, no lugar de um menino já bastante articulado na fala e nas ideias, a protagonista fosse uma mocinha inofensiva de menos de dois anos, de vestidinho rosa e fitinha no cabelo, que pronuncia suas palavras com o acento de distorção terno das crianças dessa idade. Por isso, ao fim de incansáveis três meses de treino, eis que a Júlia, minha filha de 1 ano e 9 meses, realiza o prodígio. Um grupo de senhoras de 60 e 70 anos passa diariamente de frente aqui de casa e, com o didatismo manso e sem surpresa de acirradas empreiteiras evangélicas, põe-se a falar de Jesus para a Júlia. Você já aceitou Jesus, mocinha?; papai e mamãe já te levou para ver Jesus? essa última frase acompanhada de um olhar enviesado e admoestador para o pai sentado na cadeira, com sua barba não muito promissora nas hostes ecumênicas, e o livro em mãos não sendo o Sagrado. Fala pra mamãe levar o bebê para a igreja no domingo para ver o culto e receber a unção de Israel, fala. Nisso, sinto o ar se carregar de tensão na sala, e a Dani, minha esposa, fugindo pela tangente para a cozinha ao ver que a Júlia, enfim, se prepara para realizar o ensinamento. A Dani pediu peloamordavirgem que eu não ensinasse isso, com aquele sorriso traquinas de quem adoraria que eu fosse dissoluto o suficiente para continuar a ensinando. E quando se desenha no cérebro da Júlia o momento propício para o feito, quando ela levanta a mãozinha e olha atentamente para controlar os dedos no gesto aprendido, a Dani diz avemariavaiseragora, e sai pela tangente não controlando o riso. Uma das senhoras retira os óculos para ver melhor o que a pequeninha está fazendo, olha só, ela vai mandar beijo para vovó, que coisa linda; a outra das sete velhas diz, não, ela está estendendo o bracinho para pedir a benção. Mas não. Para meu orgulho, a Júlia desce os dedinhos do meio, ergue os indicadores e os mindinhos das duas mãos e mostra o símbolo cornal, dizendo, em seu proto-português bastante distinto: Vovó, vovó, o diabo é o pai do rock.

sábado, 14 de julho de 2012

Três Dedos de Prosa sobre Isolamento Doméstico e Fetiches da Escrita



Minha paz foi refeita ao comprar há dois meses duas estantes de madeira para colocar os livros sobressalentes espalhados pela casa. Adquiri-as por 450 reais cada, e são da melhor madeira disponível no mercado_ deveria saber o nome da madeira, mas nem minha esposa, que tem uma prodigiosa memória catalográfica soube me responder. Tem cinco andares espaçosos e largos, de forma que cabem livros de todos os tamanhos em duas fileiras, com conforto e sem perigo de causar estragos aos volumes. Coloquei-as na sala dos fundos da minha casa, um cômodo pequeno mas muito acolhedor, que tem uma janelinha bem em cima, pequena e quadriculada e que jamais abre, por não ter sido feita para abrir, e uma janela grande mas que dá para o muro da casa do vizinho, que por ser um prédio de três andares forma uma eterna sombra crepuscular que refresca e me lembra_ a mim, cuja vida é intimamente dependente da memória dos livros_ os muros das histórias de Kafka, o muro de Bartleby, o muro do hotel onde Fante escreveu Pergunte ao Pó, o muro do sanatório em que Walser viveu seus últimos anos, o muro da cela de Edmond Dantès, o muro da cela de Dostoiévski e Soljenitsin; enfim, me lembra coisas que para a maioria dos mortais seriam impressões opressivas, mas que para mim são ternas e recolhidas.

Neste pequeno cômodo coube quatro estantes com tudo que tenho em matéria de livros. Acho que dão uns dois mil livros. E é engraçado pois nunca pensei nos termos de ser um dono de uma biblioteca. Acho que o Milton Ribeiro disse ter 6000 livros, mas não é o tipo de informação que me cause inveja. Desde que comprei as estantes, porém, uma compulsão por comprar mais livros me tomou conta. Qualquer ganho a mais que eu tenho em atendimentos particulares como veterinário, invisto-os em livros_ até então, os depositava em uma poupança; mas imagino ser uma graça irresponsável passageira. Como ficou um andar em uma das estantes por preencher, venho inventando todo tipo de subterfúgios para tornar à minha consciência de pai progressista econômico crente nas teorias de prosperidade financeira weberianas baseadas na vida frugal susceptível a abrir uma exceção a um livro indispensável, proverbial, que dará ótimos resultados ao crescimento espiritual das crianças e à harmonia interna da casa. Como, por exemplo, ficar sem os desenhos de árvores retorcidas e vilas medievais de Três Sombras, nessa altura do frio caudaloso que faz por aqui, em que tais visões devam dar uma ampliação na sensibilidade das crianças para compreenderem melhor, compreenderem emocionalmente, o esoterismo do inverno?; ou como não reler Além do Bem e do Mal, na tradução premiada lançada pela Companhia das Letras, depois de ser confrontado em uma conversa de escritório com um colega que defendeu torpemente e com certezas fundamentalistas a maravilha humana do neoliberalismo?; pois só Nietzsche me armaria da munição certa para contra-atacar um desafeto tão ofensivamente moral (e tome em cima do maldito o homem sem peito, e a flacidez e a morte da arte e da filosofia surgida com o consumo sem freios). Ou como não atender à urgência inexorável de ler o recém lançado romance de Vila-Matas, para ver outra coisa da Espanha que não seja sua derrocada vergonhosamente mostrada nos telejornais? Um país inteiro dependendo de mim e eu não vou dar ouvidos a um clamor desses? (E o pior é que quase fiz o passo que determina a condição de vício adquirido, o de alugar uma caixa postal nos correios, para que as chegadas contínuas das caixas da Livraria Cultura todas as semanas não comece a despertar a sanha investigativa da minha esposa_ ou evite que o Júlio, o carteiro que perdeu 30 quilos desde que assumiu o cargo conquistado em concurso público ano passado, estacione sua bicicleta diante o portão e me diga que parte de seu salário está sendo pago por mim, que se dependesse de pessoas como eu os correios brasileiros jamais correriam perigo.)

Pois bem. Jamais imaginaria que duas simples estantes me proporcionariam uma reviravolta determinante em  minha vida. Há alguns meses a Dani identificava certos comportamentos impacientes, certas mudezas, certas evasivas da minha parte. Ninguém melhor que a Dani me compreende. Afinal ela foi a única que passou por todos os testes da minha personalidade, e ainda continua comigo. E a única que não se assombra e tem uma inteligência inigualável para estar sempre dez passos à frente das minhas manhas e pirraças, em posição segura e altaneira, em absoluto controle da situação. Por isso foi ela que veio com a ideia: por que você não compra uma estante para desatolar essa quantidade de livros pela casa?; e por que você não coloca essas estantes no cômodo dos fundos e passa a chamá-lo, oficialmente, de biblioteca? Pois as comprei, meio com o ressaibo de culpa por gastar com isso, que provavelmente era weberianamente supérfluo e contraproducente à poupança para a universidade das crianças, e a Dani ajeitou os livros em uma tarde em que estive fora, e a Dani ajeitou o cômodo retangular de forma a que ele ficou o dobro do tamanho e o tipo do lugar em que eu pude abrir os braços e repetir a frase imortal de Richard Pryor em Chuva de Milhões: eu gostaria de morrer aqui! E a Dani pôde confirmar suas predigas de cura ao ver que meu humor melhorou poderosamente e minha paz de espírito se refez, pois como ela iria falar abertamente a um pai paranoico que ficar sem responder aos filhos para ficar recolhido em si mesmo não é um ato de violência psicológica, mas de respeito à sua própria incontornável idiossincrasia? Pois nesse quarto, quero dizer, nessa biblioteca, na qual escrevo agora, voltei a retomar projetos inteiramente sérios e despropositados, projetos que são motivos de silêncio e abandono, as únicas áreas de mim mesmo com as quais sou perfeitamente resolvido nas insuficiências, embustes e pretensões. E as maozinhas que vinham bater à porta e me chamar, que tanto me cortavam o coração, mostraram sua independência e compreensão ao não insistirem mais diante a ausência de respostas, passando a se ocuparem com outras grandes alegrias.

P.S.:O propósito deste texto foi testar o delicioso programa que o Cassionei Petry apresentou em seu blog, que faz com que as teclas do computador ressoem o mesmo barulho das saudosas Olivettis. Que delícia! Que vício! Estou esperando a noite cair para ver como esse som se apresentará na solidão da biblioteca. 

Uma Proposta



Não há dúvida de que a densa selva congolesa é profunda, mas seu coração está em outro lugar: nos iluminados escritórios de nossos bancos e empresas de alta tecnologia. Para acordar realmente do "sonho dogmático" capitalista (como diria Kant) e ver esse outro verdadeiro coração das trevas, teríamos de aplicar a nossa situação a velha frase de Brecht em Ópera dos mendigos: "O que é um roubo de banco comparado   à fundação de um outro banco?". O que é roubar alguns milhares de dólares e ir para a cadeia, em comparação com a especulação financeira que priva milhões de pessoas de suas casas e de suas economias e depois é recompensada pela generosidade sublime da ajuda estatal? O que é um chefe guerreiro congolês, em comparação com o presidente-executivo de uma empresa ocidental esclarecido e sensível ao problema do meio ambiente? Talvez José Saramago estivesse certo quando propôs numa coluna de jornal que executivos de grandes bancos e outros responsáveis pela crise financeira fossem considerados culpados de crimes contra a humanidade, cujo lugar certo é o Tribunal de Haia. Talvez não devêssemos tratar essa proposta apenas como um exagero poético ao estilo de Jonathan Swift, mas levá-la muito a sério. (Slavoj Zizek, Vivendo no fim dos tempos)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Um Estranho na Terra


A verdade mais simples sobre o homem é que ele é um ser estranhíssimo, quase no sentido de ser um estranho na Terra. Com toda a sobriedade, ele tem muito mais a aparência externa de quem traz hábitos de outra terra do que de um simples desenvolvimento dela. Ele tem uma vantagem injusta e uma desvantagem injusta. Não pode dormir na própria pele; não pode confiar nos próprios instintos. É ao mesmo tempo um criador que move mãos e dedos milagrosos e quase um aleijado. Envolve-se em ataduras artificiais chamadas roupas; apoia-se em muletas artificiais chamadas mobílias. Sua mente tem as mesmas liberdades duvidosas e as mesmas limitações selvagens. Único entre os animais, é sacudido pela bela loucura chamada riso, como se entrevisse um segredo na forma mesma do universo, oculta do próprio universo. Único entre os animais, sente a necessidade de desviar o pensamento das realidades básicas de seu ser corporal, de escondê-las como na presença de alguma possibilidade mais elevada que cria o mistério da vergonha. Quer louvemos essas coisas como naturais ao homem, quer as vilipendiemos como artificiais na natureza, elas continuam, no mesmo sentido, únicas. (G. K. Chesterton)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A Felicidade Feérica de Cada Semana


Talvez seja uma impressão fundada apenas numa certa exaustão sensorial de quem não gosta de futebol e vive num país onde o futebol é uma marca genética poderosa; e não uma apreensão baseada em fatos. Mas me parece que espocam demais fogos de artifício todas as semanas nos últimos meses, para se comemorar no país inteiro um time estadual que alça à categoria de campeão seja lá de que nome pomposo. Dentro dessa poluição elegíaca à virilidade de um clube de futebol, entremeada a felicidades bélicas do mais primitivo patriotismo bairrista, me parece que a cada semana uma conglomeração de torcedores rivais tem motivos de gastar uma quantidade substantiva de dinheiro em fogos, e uma quantidade ainda maior de ferocidade feérica pela superioridade angariada com a sobreposição anual de sua camisa à camisa de seu inimigo_ ainda que essa superioridade seja marcada pela mais inconsciente ironia, já que dura um ano e no ano que vem uma outra estará cantando as graças olímpicas de seu lugar. Pela televisão vê-se o rosto em prantos de um rapaz agradecendo seu pai por ter-lhe feito amar o Corinthians; vê-se que dois ou três jovens_ os números diante a flâmula incontinente das massas se torna um expoente trivial_ foram mortos nas comemorações da vitória do Fluminense contra não sei quem; um motorista que se viu submetido a uma tentativa de linchamento ao entrar numa avenida urbana tomada pelo campo adversário, teve que sair atropelando meio mundo de pessoas enfiando seu carro e proporcionando cenas que lembram a caça ao mamute de filmes da década de 1920. E não é para menos que os intelectuais_ ou aqueles que mais se adequam ao pragmatismo dessa categoria_ da mídia nacional sejam, em sua retumbante maioria, jornalistas esportivos ou entusiastas fervorosos do futebol, a ponto de cumprirem os itinerários da via sacra de perseguidos e assassinados que em outros países menos direcionadamente passionais vemos ser o sina natural de dissidentes políticos. Não há em nenhum outro país um escritor que tenha parte de sua obra autenticada por um esporte como vemos aqui nas crônicas canônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol. Os que me veem à memória são a tauromaquia de Hemingway, que era usada como artifício filosófico da violência reacionário do homem que fez sua "paz em separado" da sociedade, e as caçadas siberianas de russos como Tolstói e Turgueniev, cada um deles como propósitos cênicos secundários.

Mas em nenhum país um escritor teceu frases tão carregadas de uma filosofia inédita a uma hermenêutica do futebol quanto Nelson Rodrigues, com seus aforismos poderosos de "pátria de chuteiras", etc. E em nenhum pais simples radialistas esportivos se tornam porta-vozes políticos involuntários ao recambiar suas críticas para o terreno da administração do estado, denunciando governadores, sofrendo em consequências perseguições que devastam sua vida pessoas, familiar, e lhe deterioram o espírito. O caso mais claro é o do Jorge Kajurú, que foi defenestrado para fora do estado e se converteu no primeiro exilado político interno que a história do país tem conhecimento. E na semana passada, outro jornalista esportivo foi executado ao sair da emissora de televisão onde trabalhava, em Goiás, por possível desafeto de opiniões esportivas. Se o futebol é tão poderosamente determinante da vida e da morte no Brasil, não seria para menos conjecturar em cima do fato óbvio que esses jornalistas tem uma premência única sobre a formação de opinião popular. O que eles falam é motivo para tremer o sossego de congressistas e políticos tradicionais; e motivar o homem comum que lhes assistem a pensar sobre determinados assuntos. Por isso o meu pasmo ao ver ontem, no jornal da tv cultura do estado, o pai desse jornalista assassinado, o senhor Mané de Oliveira_ ele também notório jornalista esportivo_ dizer numa entrevista, com o rosto encolerizado de indignação e dor: "A pessoa que mandou matar meu filho é muito perigosa; os que o executaram não são perigosos, esses não, pois eles são profissionais e receberam dinheiro por isso. Mas o mandante, esse sim é um criminoso perigoso." Diante isso, e do constante e infinito espocar de fogos de campeonatos, fica o questionamento: a senilidade dos dirigentes espirituais do povo vem de seu isolamento na intelectualidade brasileira, visto sua imensa solidão na batalha contra os poderes instituídos, ou vem de uma espécie de senilidade retroalimentar que emana desse próprio povo?

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Asterios Polyp, de David Mazzucchelli


Apesar do que falam das suas maravilhas de inovação estética (tanto que a Companhia das Letras teve que passar por uma sabatina rigorosa para ter os direitos de publicação da obra no Brasil, para ver se os critérios do original seriam mantidos), o deslumbramento real de Asterios Polyp está menos nos inúmeros detalhes do estilo do lápis de seu autor, David Mazzucchelli, do que em sua indissociável  fidelidade aos mesmíssimos velhos temas humanos, que um dia William Faulkner disse ser, entre outros, a honra, o amor, a morte, a amizade, a abnegação, a memória das pequenas coisas importantes tornadas sensíveis pelo sofrimento. Asterios Polyp também refaz a tradicional trajetória de busca interior que, por estranho que seja vivermos à sombra cada vez mais eloquente do individualismo de confinamento moderno à técnica e ao consumo, move os últimos grandes romances produzidos no país de seu autor. Presos a nossos computadores nas horas vagas que sobram da consagração religiosa a nossos bezerros de ouro cotidianos; vinculados cada vez mais à manutenção de nossos casamentos insípidos e na serialização contínua de treinarmos o melhor possível nossos filhos para os mandarmos na calibração da máquina, sem determos a razão precisa que deve estar na origem de todas essas devoções; ainda assim, nossas angústias profundas continuam sendo as mesmas do homem de trezentos, duzentos, cem anos atrás_ à época em que Nietzsche dizia que os conflitos individuais que engrandecem a espécie seriam tratados como simples inconveniências ressobradas da infância nas salas de psicanálise. Por isso, ao leitor que pensa irá ler algo suficientemente novo e original, ou consistentemente revolucionário, em Asterios Polyp, não terá em mãos nada mais que a matéria repetida ad eternum na liturgia das grandes narrativas (só para citarmos dois importantes romances americanos contemporâneos que perfilam o mesmo tema de Asterios: o magnífico Independência, de Richard Ford, e o elogiado Liberdade, de Jonathan Franzen). E é justo nessa inevitável persistência que está a grandeza dessa obra de Mazzucchelli.

Mazzucchelli é conhecido no universo dos aficcionados em histórias em quadrinhos por suas parcerias com Frank Miller nas reformulações adultas de antigos personagens infantis da DC Comics e da Marvel Group. Graças a essa dupla, heróis como Demolidor, e, sobretudo, Batman, deixaram de ser simples atletas de malhas colantes que deslumbravam leitores adolescentes, para se tornarem representantes de uma nova mitologia de heróis em que esses se tornaram personagens falíveis, perturbados por uma série de diagnósticos psicológicos freudianos, passíveis de se tornarem traidores à pátria e à moral, e se tornarem velhos com demência progressiva. Mazzucchelli está na linha de frente, junto a Miller (que é realmente o fundador da HQ moderna), da espantosa recuperação de interesse do cinema pelos quadrinhos, graças à imensa sofisticação que eles deram a esse tipo de narrativa. Essa repercussão dos novos potenciais dos quadrinhos para a arte trouxe uma reconceituação do gênero que quer aproximá-lo ao romance, de forma que alguns críticos já não veem diferença entre Luz de Agosto, de Faulkner, e Herzog, de Saul Bellow, de Maus, de Art Spiegelman, ou Retalhos, de Craig Thompson. Outros ainda defendem que os quadrinhos estão se tornando a substituição inevitável a um gênero cada vez mais obsoleto em reproduzir o homem moderno, como o romance.

Mas Asterios Polyp segue em frente e se vale por si mesmo, independente da hermenêutica que os teóricos entusiasmados tecem em torno dele. Claro que ele está longe de ter a substância e proporcionar a mesma entrega e refúgio de um bom romance. Em uma semana, eu li 1500 páginas de três importantes obras de quadrinhos, com os pés postos na beira da estante de livros e uma jarra de suco de melancia à mão do lado da cadeira. Mas para ler Guerra e Paz, que oferece a mesma quantidade de páginas, ocupei três meses em que nada me tirava da imersão no universo físico e espiritual criado por Tolstói, nem as noites frias em que eu varava insone sentindo que a temperatura cambiava um distinto fluxo siberiano vindo das frestas do grosso volume. Asterios Polyp ocupou uma hora e meia do meu tempo, na tarde de ontem, em que eu estava esperando em casa o telefonema de minha esposa para que eu fosse buscá-la, a às crianças, no clube. Talvez essa desocupação temporal, essa nesga de recolhimento à concentração, possa mesmo ser o futuro da leitura, conforme nos vaticina alguns autores pesarosos. Mas, como eu disse, esse é um dos trunfos de Asterios. Seus desenhos são propositadamente feios e infantis_ Mazzucchelli é um grande desenhista, por isso deve-se se atentar para os símbolos da ironia trabalhada de pintar Batman com esmero rembrantiano, e pintar um personagem autobiográfico como Asterios com os ângulos embolados simplórios de gibis antigos como Luluzinha.

Essa modéstia em se ver pelo outro lado da luneta é o que potencializa a verdade contida na obra. Asterios é um arquiteto mundialmente reconhecido, professor de universidade e autor de importantes livros sobre sua disciplina.Tem um gosto requintado por linhas retas e um apego à lógica que o faz uma presença temida na sociedade, um temor que vai se decantando com a idade a uma circunferência isolada em que todos, inclusive sua esposa, passam a vê-lo como um ser frio e egocêntrico cujo destino concomitante é a solidão. A obra é dividida em capítulos curtos, cada um com o tom variado de cores baças, azuis e vermelhos inofensivos e desgastados (o leitor chega a cogitar se não foi um erro na impressão). Como na foto autocrítica de Bob Dylan na capa de Blonde on Blonde, o desfoque é o prevalecente. Por vezes, Asterios é desenhado como um protótipo de homem incompleto, um rascunho de cones e retângulos, principalmente nas cenas em que discute com a esposa ou leciona para seus alunos bocejantes. E a esposa, a doce Hana, é uma personagem de traços resumidamente infantis, sem profundidade, como uma japonesa em um mangá_ a forma como Asterios a vê. Sendo que Hana é o único personagem com legítima profundidade, o que rende momentos tocantes em que Mazzucchelli, com invejável domínio de espaços significativos súbitos para outros níveis de compreensão esotérica, a faz dizer interioridades reprimidas que retiram o leitor do horizonte de conforto. Na extraordinária cena final, em que Asterios e Hana se reencontram_ uma cena gêmea à do reencontro final do casal protagonista de Liberdade, só que com os papéis invertidos_, Hana aparece com algo impreciso mas distinto que configura uma expressão mais sofrida a seu rosto, um ar adulto nas olheiras e na postura cansada, como agora pode vê-la um Asterios que perdeu um olho e que atravessou a pé campos gelados pela nevasca. E cada personagem tem sua grafia própria nas letras dos diálogos, que expressa de forma única um tanto mais de suas personalidades. Asterios Polyp foge de ser um romance. É desenhado com o desencanto e a despretensão de um mangá: há várias cenas que ocupam páginas sem um único diálogo. Há uma profusão de pessoas que beiram o esteriótipo, como a mulher mística intuitiva que vê a áurea e conhece suas encarnações passadas, a do roqueiro com ideias superficiais sobre a revolução socialista, a do diretor de teatro performático baixinho e insuportavelmente senhor de si, do compositor erudito que compõe segundo a estética impressa das partituras; mas em cada um deles Mazzucchelli imprime uma candura e uma urgência de reconhecimento que os legitimam. Asterios Polyp, pois, é um enlarguecimento da expressão confessional de um artista maduro sobre a degradação e resignação, ao nível dostoievskiano (com um enfeixe sarcástico indispensável), e uma fiel manutenção das origens de interesse dos tradicionais dramas humanos.


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Amsterdam, de Ian McEwan




Dos livros que li do inglês Ian McEwan, o melhor é essa curta novela premiada chamada Amsterdam, que serviu a fundamentar a mestria do autor na grande tradição anglo-saxônica de misturar suspense popularesco com literatura cerebral sofisticada. Eu leio tudo de McEwan desde que recebi esse cartão de visitas de seu incontestável talento, mas McEwan nunca afigurou nem como presença secundária em meu cânone particular de autores modernos. Leio-o com o mesmo prazer que há 15 anos eu lia Stephen King: sem compromissos mas com deleite, e sem a mínima sensibilidade de me indignar se o produto oferecido não corresponde ao esperado. (O anticlímax febril é destinado às decepções provocadas pelos escritores que amo; daí eu ser tão descontente com Uma fábula, e Henderson, o Rei da Chuva.) Desde que vi o esquematismo por detrás da legitimidade de obras como Amsterdam e Reparação, já situei sem mágoas McEwan como um Graham Greene mais pobre, cujas armas de ofício são suficientemente visíveis para o leitor adulto que assistiu demais a filmes de espionagem para apontar os cacoetes de estilo e os maneirismos da narrativa. McEwan, que foi autor de roteiros televisivos, talvez tenha abandonado tarde demais essa antiga profissão, antes que pudesse imunizar-se dela pelo abraço mais perfuntório à arte romanesca. Daí ser fácil visualizar o real McEwan, escritor talentoso e válido, que consegue imprimir prazer suficiente em sua escrita para se continuar todos os anos comprando seu mais novo lançamento, do McEwan hipertrofiado das críticas festivas ou dos informes publicitários disfarçados de revistas especializadas, que querem vê-lo com o mesmo peso de Philip Roth ou Henry James. E por isso Amsterdam é seu melhor e mais bem escrito livro, já que permite distinguir o mobiliário padrão e os recursos cênicos de praxe em bem menos páginas que se leva a ver a mesma coisa, exaustivamente, em obras mais caudalosas como Reparação

Amsterdam é rápido, digestivo, muito bem escrito, londrino, noturno e discretamente ensolarado na medida certa, e tem um final que com um pouco de boa fé agradecida aceita-se como exemplo de humor metalinguístico e não como fragilidade formal. Basta ler seu primeiro parágrafo para perceber que McEwan o escreveu com o prazer outorgado pela, enfim, mestria manifesta. Para se chegar a tal nível de proficiência, McEwan cometeu uma série de histórias competentes mas que ecoam inevitavelmente a  impressão de coisa muito vista antes não se sabe onde, como a novela manniana Ao Deus Dará, ou à releitura involuntária de Fim de Caso, de Greene, em Cães Negros, que são, repito, boas e muito legíveis, mas que nada acrescentam. Então sobreveio aos ombros persistentes de McEwan a inspiração de Amsterdam, que mesmo tendo a estrutura de uma novela de William Golding, Homens de Papel (com sua paisagem de fundo sendo a morte de uma mulher; ter a cena semelhante de má interpretação por parte de um dos personagens em um passeio bucólico pelo campo; e o final teatral muito, mas muito parecido) ainda assim é deliciosamente original por ser deliciosamente mcewaniana, com o tempero de ser a mais despretensiosa de tudo que se seguiu dele depois disso.

O clima de loucura progressiva dos dois personagens principais tem a adstringência de não requerer nenhuma linha de condução psicanalítica ou operística_ não fica tão perene a armadilha em que McEwan cai frequentemente de se mostrar consciente de estar escrevendo um grande romance_, mas ocorre num nível tão cotidiano que mesmo sendo a coisa mais esperada, ainda assim não poupa o leitor de uma dose de assombro. Um traço distintivo de McEwan é que em cada um de seus livros há uma descrição didática exaustivamente pormenorizada de um evento que, não raramente, está no núcleo do tema. Em Reparação encontramos uma série delas, desde o exame da funcionalidade biológica das mãos pela garotinha do início da trama, as arrumações dos cenários da peça infantil que é encenada, as localidades de guerra documentadas com pedantismo, os sinais do Alzheimer; em Sábado há um longuíssima cirurgia cerebral; em Solar, uma palestra feita pelo herói da trama, que não difere em nada dos libretos soporíferos de entidades ecológicas. Mas em Amsterdam, o detalhismo de McEwan recai em páginas fascinantes sobre a intuição musical de um dos personagens ao vislumbrar paulatinamente a linha principal da sinfonia que pretende compor. Essas páginas já valem o investimento, talvez sejam o tesouro da narrativa anglo-saxônica dos últimos 15 anos. E as tramas paralelas que recheiam um programa tão curto formam outra parte do mérito, com a chantagem a um político; os bastidores corruptos da grande imprensa de mercado e suas caças aos furos de reportagem; a degeneração cerebral. Li Amsterdam três vezes, e me aguardam novas leituras.

"Um Corte de Seda e Algumas Frutas"_ o Valor Pago por Pablo Neruda a um Estupro



Há um trecho bastante surpreendente, para não dizer chocante, das Memórias de Pablo Neruda que trata exatamente do espaço excrementício invisível e do que podemos descobrir quando o sondamos. O evento descrito ocorreu quando ele era cônsul do Chile no Sri Lanka (Ceilão):

Meu bangalô solitário ficava longe de qualquer construção urbana. Quando o aluguei, tentei descobrir onde ficava o banheiro; não o vi em lugar nenhum. Na verdade, ficava aqui perto do chuveiro, nos fundos da casa. Inspecionei-o com curiosidade. Era uma caixa de madeira com um buraco no meio, muito parecida com o artefato que conheci quando criança no interior do Chile. Mas nossos banheiros eram construídos em cima de um poço profundo ou de água corrente. Ali, o receptáculo era um simples balde de metal debaixo do buraco redondo.
O balde aparecia limpo todas as manhãs, mas eu não fazia ideia de como o conteúdo sumia. Certa manhã, acordei mais cedo do que de costume e me espantei ao ver como acontecia.
Dos fundos da casa, caminhando como uma estátua sombria, veio a mulher mais linda que eu já vira no Ceilão, uma tâmil da casa dos párias. Usava um sári vermelho e dourado do tipo mais barato de pano. Tinha pulseiras pesadas nos tornozelos nus. Dois minúsculos pontinhos vermelhos faiscavam de ambos os lados do nariz. Deviam ser de  vidro comum, mas nela eram rubis.
Ela andou solenemente até a latrina, sem me olhar nem uma vez sequer, sem se incomodar em reconhecer minha existência, e sumiu com o receptáculo nojento na cabeça, afastando-se com os passos de uma deusa.
Era tão adorável que, apesar do serviço humilde, não consegui tira-la da cabeça. Como um tímido animal da selva, ela pertencia a outro tipo de existência, a um mundo diferente. Chamei-a, mas não adiantou. Depois disso, pus algumas vezes um presente no seu caminho, um corte de seda e algumas frutas. Ela passava sem olhar nem escutar. A rotina ignóbil fora transformada por sua beleza escura na cerimônia obrigatória de uma rainha indiferente.
Certa manhã, resolvi ir até o fim. Segurei os pulsos dela com força e fitei seus olhos. Não havia idioma em que eu pudesse lhe falar. Sem sorrir, ela se deixou levar e logo estava nua na minha cama. A cintura finíssima, os lábios cheios, as taças transbordantes dos seios a faziam igual às esculturas de mil anos do sul da Índia. Foi a união entre um homem e uma estátua. Ela manteve os olhos bem abertos o tempo todo, completamente sem reação. Tinha razão em me desprezar. A experiência nunca se repetiu.

Então Neruda simplesmente passa para outras coisas. Esse trecho é notável não só pelas razões óbvias: uma história descarada de estupro, cujos detalhes sujos foram discretamente omitidos (“Ela se deixou levar e logo estava nua na minha cama”. Como ela ficou nua? É óbvio que ela mesma não se despiu...), a mistificação da passividade da vítima em indiferença divina, a falta elementar de decência e  vergonha por parte do narrador (sentia-se atraído pela moça, mas não se envergonhava de saber que todas as manhãs ela cheirava, via e descartava sua merda?). A característica mais notável é a divinização do excremento: uma deusa sublime aparece no mesmo lugar onde os excrementos se escondem. Deveríamos levar a sério essa equação: elevar o Outro exótico a divindade indiferente é rigorosamente igual a tratá-lo como merda.
                                                (Trecho retirado de Vivendo no Fim dos Tempos, de Slavoj Zizek)

sábado, 7 de julho de 2012

O Fim da História, de Francis Fukuyama


A leitura de O Fim da História e o Último Homem, livro de Francis Fukuyama que se seguiu a seu polêmico ensaio de 1989 sobre o fim da história, me fez relembrar de dois fatos cabais que se casam bem com o tema da obra. O primeiro é o filme divulgado ano passado de uma menina de 4 anos que, atropelada numa rua comercial chinesa, morre diante um séquito de pessoas desatentas ou meramente indiferentes que passam por sobre seu corpo ensanguentado como se fosse um obstáculo inoportuno que os arrancam por segundos de seus celulares ou de seus i-pods. O outro fato é um incidente de compreensão que deveria ser irônico mas se restringe a seu devido lugar bestial no cotidiano da cidade onde eu moro: um radialista foi processado por difamação pelo prefeito municipal, e a justiça determinou que ele pagasse uma indenização de 1500 reais, e se submetesse compulsoriamente a uma retratação escrita pelo prefeito e publicado no blog pessoal do réu e no jornal de maior circulação local. A retratação, repito, escrita pelo próprio prefeito (ou por sua assessoria, mas devidamente autorizada por ele), diz: "o sr. H.M., radialista, deve pagar em 10 parcelas, o valor de 1500 reais, por ter divulgado publicamente atos de improbidade administrativa  do sr. D.S., prefeito de I." Não mais do que isso.

Façamos um retorno a Fukuyama para a costura das ideias expostas no parágrafo acima. O livro de Fukuyama é espantosamente verdadeiro! Mesmo seus opositores ideológicos mais bem preparados, como Zizek e Perry Anderson, não poupam elogios à sua coesão filosófica e ao seu profundo conhecimento político, e à extrema perspicácia de seus argumentos. Eu mesmo nunca li em nenhum outro livro uma explicação tão límpida sobre Hegel como a que está neste livro. Perry Anderson salienta que, apesar do enorme talento de Fukuyama e do caráter idiossincraticamente imbatível de seu livro, Fukuyama é um agente do governo dos EUA, um dos intelectuais importados já na geração de seus pais para o universo acadêmico norte-americano, sendo, então, um defensor congênito do neoliberalismo. Fukuyama faz parte das fileiras do inimigo. E embora essa apologia contundente ao neoliberalismo (palavra nunca encontrada em Fukuyama, mas o termo assepsiado democracia liberal) seja latente nas primeiras 300 páginas da obra, nas últimas partes e sobretudo no capítulo intitulado O Último Homem, sua lucidez avaliativa dos prós e contras do capitalismo irrestrito sofre uma interessante auto-traição dialética, chegando ao nível prefigurado por Adorno do que vem além do esclarecimento, em que Fukuyama cai quase involuntariamente na armadilha em negativo de sua própria defesa. No começo, Fukuyama analisa a derrota espantosa dos regimes comunistas do século XX, o surpreendente evanescimento da União Soviética (o livro foi lançado em 1992), a força propulsora da história que recai não na necessidade econômica (desconsiderando firmemente as teses de Marx) mas na luta pelo reconhecimento, no desejo de liberdade e de respeito pessoal inerente ao homem, o que levou os povos sob a opressão das ditaduras de esquerda a martelarem em definitivo quaisquer novos experimentos políticos autoritários. Essas partes do livro são escritas com uma visão abrangente de todos os lados que beira a radioscopia mais clinicamente perfeita_ nada escapa à lucidez calibrada de Fukuyama. Fukuyama gasta páginas e páginas seguidas destrinchando calmamente as ideias contrárias ao capitalismo e à democracia liberal, com um calma e educação extraordinárias, como se fosse aceitar, depois dessa viagem pormenorizada ao campo exterior, que sua tese está errada; mas então, ele aplica em enfeixe artesanal de molde coeso e infalível que cessa toda passagem de fluxo para estancar de vez as alegações restantes de que exista outro sistema apropriado ao homem moderno que não a da liberdade de consumo e a do mercado global cuja única lei de controle é a da própria auto-concorrência.

Até aí, tudo bem. Vinte anos passados serviram para desequilibrar essa segurança lapidar de Fukuyama sobre as maravilhas do capitalismo, e a inserir uma série de rachaduras iridescentes à muralha inviolável de suas certezas. O livro, magnífico em todas as suas confecções acadêmicas e de seguimento meritório da tradição dos grandes livros políticos (uma obra recomendadíssima para quem quer se enriquecer do mais alto estilo e da mais lúcida visão da situação moderna), peca, contudo, pelo que tem de melhor: se lança tão fundo na filosofia que se perde dos marcos mais evidentes, hoje, das distorções apocalípticas do capitalismo. A evidência de sua velhice está na ausência total de referência de Fukuyama aos pecados mais pragmáticos do capitalismo: as bolhas econômicas já não mais toleráveis das especulações dos grandes bancos, e os índices prostituídos de crescimento econômico que não levam em conta nenhum medidor real das mazelas internas da enorme quantidade de miseráveis e famélicos que é escondida sob as radiosas cifras financeiras. Fukuyama, que condena Marx por sua visão unilateral da economia como mote da história, resvala feio na desumana computação de vidas perdidas como resto matemático necessário à saúde do sistema. Sua erudição cavalheiresca não se firma de forma tão plena ao transitar com uma leviandade soberba por sobre o abismo dos exilados e dos excluídos, relegando todos eles a um simples efeito colateral  de uma realidade que não acontece num mundo de febres e injustiças violentas, mas na racional e burocrática realidade confeccionada por doutores de Harvard e Oxford. Em última instância, se o leitor prestar a dar ouvidos aos ecos instigantes que a escrita de Fukuyama desperta, verá que Fukuyama é uma contradição sofisticada, um pensador altamente capacitado que oferece todas as chaves para ser resgatado, ainda que jamais admita o que as entrelinhas metafísicas de seu discurso esbraveja. Partindo de Hegel e da interpretação de Hegel por Kojeve, Fukuyama conclui que o homem não se interessa por dinheiro ou por riquezas, não sendo estas as razões da batalha cruenta que começou a história; Fukuyama responde à eterna efigie lançada pelo Sombra de Orson Welles sobre o que se esconde no coração do homem, com essa solução: no coração do homem se esconde a necessidade vaidosa de reconhecimento social; de dignidade entre vizinhos; de ascensão ou igualitarismo, dependendo dos expoentes psicológicos de cada um. O homem é movido por três forças capitais: o desejo, a razão, e o thymos, ou seja, o espírito platônico de integridade individual para o qual não há dinheiro que compre. Esse thymos, na concepção de Fukuyma tomada de empréstimo da análise hegeliana, é determinante de toda vontade por conquista do homem, razão da qual grandes pensadores políticos, como Hobbes, Locke e Rosseau, diagnosticaram que o contrato social, sob as suas diferentes formas, obedece à necessidade de isothymia das sociedades, ou seja, da igualdade entre os homens. E só a democracia liberal, entre todos os sistemas de controle social, consegue com real eficácia manter a isothymia entre os homens, pois libera o homem da oposição entre senhor e escravos e cria um equilíbrio em que o mercado determina que todos são senhores de si mesmos, livres para a competição e submetidos à catarse de não desejarem a dominação de um sobre os outros pelo desejo escoado no consumo eterno. O homem deixa de ser bélico, para ser um animal consumista apaziguado e saciado. Só a democracia liberal acaba com a megalothymia dos ditadores e patriarcas, de esquerda e de direita, e dá a legítima liberdade ao homem, que, conformado com o conforto, se torna o último homem, aquele que não precisa mais criar grandes tragédias e cósmicas fúrias para fazer girar a já imobilizada e finada roda da história.

Pois bem. Essas são as primeiras 300 páginas do livro. Já no capítulo sobre o Último Homem, Fukuyama se embrenha na filosofia existencialista, trocando Hegel pela tese do homem sem peito de Nietzsche. O filósofo, em Além do Bem e do Mal, tece uma série de magistrais aforismos em que condena a igualdade entre os homens, e Fukuyama segue a trilha considerando que, apesar de Nietzsche não ter produzido nenhum esquema lógico político ou minimamente praticável, está certo em suas predições de que a democracia liberal porá fim não só à história, mas à filosofia, às artes, à ciência, e a toda produção thymótica humana. O homem apascentado e confinado em um consumo irrefreável será um ser frouxo, sem substância, sem inteligência; o homo sapiens dará lugar ao animal-homem, e o espírito desaparecerá. Esse capítulo, como eu disse, revela um Fukuyama compenetrado demais com as inconstâncias de sua defesa ao neoliberalismo, o que, para o leitor mais atento, o retira da mera digladiação partidária para o posicionar num campo esotérico que transcende a polêmica bastante circunscrita dos confinamentos políticos. E aqui, o estado e a função de Fukuyama, seu status de funcionário muito bem pago a uma causa fundamentada, o destrói no que poderia oferecer de um pensamento realmente gradioso. Fukuyama será lembrado como importante pensador político, mas as páginas mais febris de seu livro se chocam e se calam diante seu bom-mocismo ultrarrealista, diante sua plácida posição de peão de um xadrez burocrático.

Estava lendo hoje uma reportagem na Veja-online sobre as declarações da romancista Jennifer Egan sobre o que a tecnologia faz à inteligência. O livro, ela diz, torna os homens mais inteligentes, e a morte progressiva do livro está a criar um ser robotizado incapaz de perceber os mais singelos matizes do pensamento. No exemplo que dei no primeiro parágrafo isso se revela. Qual meu espanto ao ver que ninguém com quem eu falava percebeu que o radialista, no fim das contas, saiu vitorioso, tanto sobre o prefeito corrupto, ao fazê-lo, involuntariamente, confessar suas improbidades administrativas, tanto sobre a justiça que impôs sua retratação e a multa. Ninguém percebeu, nem mesmo o radialista, nem mesmo o prefeito. Seria uma ironia genial o inimigo ter sido pego por sua própria burrice, mas essa ironia se perdeu num ambiente de alienação assustadora quanto aos matizes da palavra. Sobre a garotinha chinesa teria muito mais a dizer. Mas a simples lembrança de seu martírio num mundo ultra-indiferente e desumano fica como reativo a todas as novas notícias de terror que diariamente vem sobrepujar o espanto, customizar a crueldade.