terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Ioan



 Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

A chegada dos hunos



 Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia "Valentina"", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico, "Mais valia". Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer "Mais valia". Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?


Daí foi que notou que uma voz próxima à cabeça era talvez mais aflitivo a longo prazo do que a visão de luzes. Se deu por isso quando estava sentado no sofá com Eike, assistindo à final do campeonato Macarrões Tornytonny de perguntas e respostas na televisão, um programa com índices de audiência devastadores para a economia do país que tinha que parar e fechar as portas dos comércios mais cedo, e que a secretaria de transportes públicos tinha que espremer todas as cartilhas de gestão de riscos para fazer os metrôs e ônibus chegarem com a frota aumentada em seus devidos pontos e estações meia hora antes dos horários costumeiros e assim antes do espetáculo começar afim de evitar qualquer comoção social, qualquer guerrilha ativada pela astúcia da história, e que só os macarrões Tornytonny era quem lucravam com essa bem arranjada estratégica das agências da mídia. A massiva exposição das embalagens coloridas do macarrão instantâneo, que obedecia à ordem do prisma de degradação da luz branca assim como cada luz correspondia a uma foto suculenta de sabor_ vermelho para camarão, amarelo para frango caipira, verde para molho de verduras, marrom para picanha_, fazia com que os receptores neuroniais que se desembocavam nas papilas gustativas ficassem em estado de frenesi paranoico pavloviano. Eike estava devorando seu prato de macarrões Tornytonny sabor pimenta dedo-de-moça, os filetes helicoidais tensionados no alto do garfo próximo à boca descendo por trinta centímetros de rastafári de materialização química suculenta, enquanto à sua frente descansava no colo uma massa quatro-queijos de macarrão Tornytonny cujo abandono paulatino de vapor o transformava em algo próximo à condição sintética, quando a voz voltou com tudo. Tinham passado a tarde daquele primeiro dia (ele e a voz), em estática entrevista sensual de namoro, sentado sozinho no apartamento competindo com as palmeiras quem simulava com mais sucesso indiferença ao ruído dos carros que passavam na rua abaixo, ela lhe contando sobre as regiões de pura eternidade que deixara para estar ali com ele, e ele às vezes pontilhando a sinfonia sincopada com monossílabos de inadvertência que deveriam reforçar a simbiose inter-genérica que se formava entre eles. Estava mesmo ficando louco, pensava, enquanto balançava a cabeça afirmativamente para não ser indelicado em deixar a voz pensar que falava sozinha. Seu sistema mental estava em franco erodimento, agora de uma vez por todas e sem desculpa. Suava frio e agradecia por estar sozinho para suportar aquilo: o dia em que o cérebro de Eme Skhole enfim se transformou em geleia. Talvez por o medo ter se acentuado demais nele, a voz por finesse resolveu dar um tempo, como uma dama que percebe que os coquetéis que tomou a mais começam a abalar as boas maneiras exigidas pelo anfitrião da casa. Ele pôde restaurar a fundação sobre a qual se equilibrava o antropológico aparato de suas certezas motivadoras básicas, e prosseguiu. Até o momento em que o apresentador do perguntas e respostas do Macarrões Tornytonny fez a sua primeira pergunta para os dois participantes, aqueles dois hunos apostólicos que impiedosamente escalpelara mais que metaforicamente todos seus adversários em dez semanas cruentsa até chegarem ali em glória diante toda a nação para concorrerem ao prêmio de meio milhão. As perguntas começaram com pouca dificuldade, referentes a ciclos geodésicos e estações do ano. Para um cidadão comum eram algo impossível para seus cérebros mutilados pela passagem por um rápido e circunstancial sistema de ensino responderem, e que tinham uma poesia embotante tecida propositalmente para levemente insinuar acolhedoras situações para se comer o Macarrão Tornytonny. Até que Eme deu-se por vencido de que ele próprio, saído de um ciclo nababesco de carros de motores injetados e sexo nos banheiros da escola com meninas destinadas a integrarem o exército do assistencialismo público, não poderia saber as respostas às perguntas mais complicadas dos últimos blocos do programa. Mas mesmo assim, as respostas lhe vinham assopradas no ouvido: u`+ u3 - u, Zona de Convergência Intertropical, Kaminaljuyú, Soledad Orozco, Plutão, nó de escota, Marlene Dietrich e não Karoline Herfurth. Repetia baixinho somente para si mesmo, para confirmar a cola soprada pela entidade imaterial, sem que Eike ouvisse, e segundos depois a mesma resposta aparecia sendo dita na tv. Foi para o quarto antes da pergunta final e se olhou no espelho, tampou os ouvidos com força até que só pôde notar a retumbância do zunido pulsando nas têmporas, e bem na superfície daquele isolamento de músculos e nervos contraídos escutou com cinzelada nitidez a voz lhe sussurrar uma palavra. Maersalalhasbas. Voltou para a sala enquanto os confetes e serpentinas caíam por sobre o ganhador, um rapaz de óculos com uma camisa negra de mangas compridas dos cortadores de pulso fracassados que permanecia congelado em incrédulo contentamento no meio da euforia caótica de plateia e apresentador estridentes, e fez a pergunta mais angustiante de seus treze anos de casamento por ela não ter nenhuma salvaguarda de trivialidade que deveria ter, ao que Eike lhe respondeu sorridente, se afundando de alívio no sofá junto com 40 milhões de outros espectadores pelo país: qual o nome do filho de Isaías?, dá para acreditar que perguntaram isso? quem iria saber?

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A perrenga entre o Bom Samaritano e o Falo Ancestral (curtas sobre sexo)


 Sem exceções, todos os homens da família da minha mãe, uma ora ou outra na vida, já destruíram suas vidas por conta de sexo. Há inúmeras histórias sobre esses homens que começam nelas como desbravadores incautos, animais superiores com amplos recursos de competição, e terminam em camas de hospitais, no bilhete não escrito do suicídio tentado, na bancarrota financeira, na separação de filhos e esposas. Entre eles, literalmente, dois ficaram loucos: um deles deixou tudo que tinha e sumiu no mapa, tendo-se notícias não confiáveis de que vaga pelo sul do país, em estado de semi-indigência; o outro ficou em coma por dois meses, depois da surra do marido da amante, e quando acordou a primeira coisa que disse, ainda entubado, era que precisava sair dali para ir atrás daquela que era o amor da sua vida.


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Todos eles, uma ora e outra, confessaram sem mistérios para mim que o sentido de suas vidas era "a buceta".

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Um desses tios, quando se deparou com uma namorada minha saindo da casa da minha mãe, me chamou de lado com a cara séria de quem iria me dar um profundo conselho filosófico, e me disse: "Fica de olho nela, porque senão eu como".

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Daí fica fácil entender que desde criança, despertada em mim a sexualidade, eu vi a obsessão sexual como uma sina a qual eu deveria combater. Senti o furor da co-sanguinidade avuncular tentar várias vezes me atirar no fundo desse poço. Todas as pessoas tem muitas histórias escusas para contar sobre sexo. Todas. Talvez seja o assunto mais rico para a literatura. Meu pai certo dia quis me ensinar sobre masturbação, enfiando a mão dentro de minha calça e me afagando com carinho didático. Eu fugi e encenei assombro sobre o que era já uma prática adquirida que eu conhecia há tempos. Muitas vezes na adolescência aquilo me cansava; eu repudiava sem nenhuma força de vontade o que eu sabia ser um fator fisiológico vazio, bestial, que a evolução havia exagerado demais em seus símbolos e seus terrores como se não confiasse nem um pouco que nossa espécie teria ensejo por conta própria para prosseguir se reproduzindo. Freud e todas as patologias mais grotescas surgidas por conta do sexo na verdade traz a assinatura paradoxal de que a evolução supervalorizou o fetiche do sexo temendo que as raízes perniciosas da filosofia ascética e da contemplação esotérica no homem o extinguisse pela ausência da libido. Sexo não traz redenção. É uma estupidez certos gurus, escritores e religiosos acreditarem que o sexo é divinatório. Sexo só é destruição e morte, escravização cultural e de gênero, infantiloidismo do envelhecimento que não se aceita.

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Minha primeira vez foi aos 15 anos, com uma prostituta grávida de seis meses que me convenceu facilmente a não usar camisinha. Estava eu na companhia de dois amigos, no puteiro histórico mais pérfido da capital, hoje fechado há muito tempo. Um amigo me aconselhou ficar roçando o bico do peito para facilitar a excitação. Todos nós estávamos ali para perdermos a tal virgindade. Eles foram primeiro, cada um de supetão, vencendo o enorme terror, e escolheram suas mulheres. Fiquei por último, pensei em fugir e mentir depois, já que não havia testemunhas. Mas fui. Cegamente. Ela estava escorada na parede, falando com um rapaz, e se surpreendeu quando lhe perguntei se ela poderia... Levou-me até a porta do quarto, e, com uma singeleza que denunciou que ela era também bastante infantil, perguntou se não se importaria com sua gravidez de seis meses. Aí que eu vi sua barriga. Eu me desculpei, disse que não tinha visto, que não dava, e já me afastava quando ela me segurou pelo braço e pediu um misericordioso "por favor". Fiquei com pena dela e de mim, e entrei no quarto, me despi, e ela pediu que fosse sem camisinha, pois a machucava. 1989, a AIDS em todo vigor, e eu aceitei. Talvez porque queria acabar logo com aquilo, talvez porque tinha absoluta certeza de que não teria uma ereção e isso me salvaria, talvez porque fosse uma das minhas táticas inconscientes para combater o Falo Ancestral assegurando que experiências realistas iria acabar com o fetiche exagerado do sexo. Mas consegui; não senti o mínimo prazer. Meu sucesso foi tanto contra o Falo Ancestral que passei a pensar que a evolução descartava sem muita atenção homens dispostos à assexualidade como eu; em sua eficiência de milhões de anos, o gene vestigial era desprezado com uma matemática facílima, com uma indiferença voraz.

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Demorei 4 anos para voltar a fazer sexo. Minha primeira namorada. Ambos virgens. As primeiras vezes foram catastróficas. Direcionamento manual, complacência, carinhos de consolo. Daí, como se o Falo Ancestral contra-atacasse, de madrugada no SBT vi um filme pornô. Uma suruba de mulheres loiras e homens com cara de eunucos atarefados com desconsolados pênis super-explorados no mercado de trabalho à custa de rebites. Essa namorada, uma loira de um metro e oitenta, se parecia com uma das atrizes. Daí foram 4 anos de sexo intenso com essa namorada. Aonde íamos tínhamos que transar. Uma vez fizemos num estúdio da faculdade de jornalismo. Outra vez na piscina do primo dela. Outra no quarto de um apartamento em uma festa de aniversário infantil de gente que mal conhecíamos. Fiquei tão obcecado que vendi livros do Garcia Márquez por conta de pagar simples três horas em um motel fuleiro. Sei que pouquíssimas pessoas tiveram experiência sexual tão plena quanto eu e essa namorada. Fiz uma sucessão de besteiras no término do namoro. Minha chance desperdiçada de honrar a estupidez dos machos da família. Quebrei o pé e fiquei meses encamado, até que a fúria se escoasse. Não sobrou nada. Fiquei novamente em paz, imunizado. 

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Eu tive uma vida sexual movimentada. Até os 35 anos fui um cara bonito. As mulheres que estiverem lendo isso, por favor, não caiam na besteira de me mandarem cantadas achando que sobrou alguma coisa. Hoje sou um senhor distinto, e indisposto a novas adolescências. Mas teve épocas em minha vida que se abriam para mim oportunidades tantas de cometer sandices e destruir-me por conta do sexo. Quando falo em minha luta contra isso, falo seriamente. Fui criado em meio de mulheres, o que me fazia mais consciencioso. Uma vez fui assediado por uma tia de um amigo, uma mulher que eu tinha absoluta certeza de que seria um erro fenomenal. Ela me daria aquilo que costumam chamar entre o credo maçônico de "chá de buceta", e eu me arrastaria a seus pés, venderia minha mãe para poder voltar a lamber os pés dela. Nos encontramos em uma festa, em que eu estava com esse meu amigo, ela me chamou para dançar, me levou a um canto e me beijou. Dessas mulheres em que o homem é que é a mulherzinha dominada. Era uma nêmesis, linda até o podre da alma. Ela me ligava, falava coisas que me deixavam ainda mais recolhido em minha mulherice ameaçada. Marcamos um encontro na porta do apartamento que um outro amigo me emprestara para a consumação de meu defloramento, ela dizendo que seria possível pois seu marido, um policial militar, estaria viajando. Eu esperei ansiosamente uma semana por esse dia e, pausa, não fui. Isso eu tinha 25 anos. Esses dias a encontrei pelo Facebook. Ela estava inchada, com outro marido. Pelo que li de alguns posts, em que agradecia a deus, ela sobrevivera a alguma doença séria.

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Não gosto de pornografia. Não sou desses que olham a bunda de mulheres na rua. Não olho sequer para mulheres na rua. Não gosto de sexo na literatura. Acho chatíssimo sexo na literatura. Como se, existindo literatura entre as abelhas, a experiência estetizada da cópula do zangão antes de ser deportado para morrer fora da colmeia fosse algo passível de significados profundos. O único sexo que dá certo na literatura é a sua contestação, assim Philip Roth, assim Nabokov, assim Houellebecq; o sexo fisiológico, simples e besta, tipo Henry Miller, é descartável, ainda mais na época em que o sexo é escrachadamente visual e gratuito como hoje.

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Teve aquela vez também, em que o Falo Ancestral fez com que eu seguisse o carro de um colega até que ele deixasse sua namorada, que havia me passado um sinal no barzinho que acabávamos de deixar, em casa. O colega assim que dobrara a esquina, ela veio na surdina e entrou em meu carro. Ficamos no agarro várias horas, mas ela disse que só iríamos transar no próximo encontro, afinal toda imoralidade é relativa. Esperei em febre os dias passarem até o domingo marcado, em que eu iria na hora marcada em sua casa. Eu voltava da capital, sob uma chuva violenta, e estava em cima da hora, mas daria tempo. Daí, no caminho, entre duas cidades que ficam num localização anterior à cidade onde eu moro, me deparo com um acidente de carro. Uma caminhoneta capotara. Paro no acostamento e presto socorro ao casal de senhores que estava no veículo. A mulher com escoriações que não pareciam graves pelo corpo, e o homem com a articulação do úmero na escápula aparecendo bem pelo buraco da carne como em um filme de terror. Levo-os para a cidade mais próxima, quase uma aldeia, sem atendimento médico, postos de saúde fechados. Encontramos o médico em sua casa, ele examina, diz que se o homem não obter tratamento imediato poderá perder o braço. Não há ambulâncias na cidade, eu teria que levá-los até a cidade mais próxima. Eu faço isso, mais 120 quilômetros contando ida e volta. Chego em casa quatro horas depois, já noite alta. Ela sequer atende o telefone. Meses depois o casal encontra minha casa e me leva uma cesta de queijos, e quando eu digo que qualquer um teria feito o que eu fiz, o homem terminantemente diz que não, vários carros tinham passado e ninguém tinha parado. Filme do mês: A Batalha Final Entre o Bom Samaritano E o Falo Ancestral.

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Existem as nêmesis. Para cada homem existe um número regrado delas. Em minha vida encontrei uma, uma veterinária com quem me envolvi por oito meses, e que tudo acabou em desgraça. As nêmesis só trazem desgraça, como paga pelo sexo mais infernal e demoníaco que existe. Eu viajava por três horas para me encontrar com essa nêmesis, com uma ereção contínua. Transávamos por horas seguidas, e nunca era o bastante para mim. Lembrava-me daquela piada em que alguém chama o outro de piolho, e apanha sordidamente; o outro pede para ele o chamar de piolho novamente, e ele o chama; volta a apanhar; e assim vai, até que o cara está todo destruído no chão de tanto apanhar, não conseguindo falar mais, e o outro fala: "me chama de piolho agora, me chama", e o cara no chão faz aquele gesto de unha contra unha que as mães fazem quando esmagam os piolhos retirados da cabeça dos filhos. Assim era eu com a nêmesis. Fiquei de olhos fundos, apoplético. Assim vivem continuamente meus tios. Foi a lição de misericórdia que o Falo Ancestral me concedeu, em nosso último combate. Tudo acabou em desgraça, eu quebrei de novo meu pé, como uma tradição de expurgo, e fiquei dois meses acamado até que a compulsão se esvaísse. A gente sabe que foi uma coisa vazia, um estrondo cujo terror demonstra seu histrionismo diabólico justamente por se revelar sem conteúdo depois que passa, pois a nêmesis é plenamente esquecida. Eu nunca penso nela, não sinto mais a mínima atração por ela. Ela é esvaziada tão profundamente no sobrevivente que, entre todas as mulheres, ela é a última que despertaria atração.

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Mês passado eu vi uma outra nêmesis. Assim que entrei nos correios e me sentei esperando ser chamado o número da minha senha, a vi em pé diante o caixa. Uma moça morena, de short, que era invisível para todos os demais, mas que eu não consegui despregar os olhos dela. Retrospectivamente percebi que desde a entrada eu sentira o poder dela, mesmo sem a ver. Eu não me movi, deixei que ela fosse embora, montasse na moto, e sumisse. Não haveria continuação à perrenga do cordel do Bom Samaritano Contra O Falo Ancestral.

(2016)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Assim



 É costume aqui onde eu moro as pessoas que sentem a patológica necessidade de passarem a ilusão de serem ricas comprarem Hilux. Ontem ouvi uma dessas pessoas, no círculo de iguais, dizendo que está procurando uma Hilux para comprar. A reação foi como uma festa viking: todos a congratulando, dizendo "nossa, agora você vai ficar metida, hein!", e gritinhos eufóricos. O segredo é comprar uma caminhonete dessas com dez anos de uso, pois a lei diz que são isentas de imposto. Como uma nova custa 300, esses testes de laboratório do vazio cósmico as compram por 190: uma economia de uma vida para isso. Daí esse cidadão-cidadã médio sai com seu belo tanque cromado, com pneus altos para dar-lhe a sensação de ser um faraó agraciado pelo deus sol, vendo o restante do populacho de cima, com a cabeça erguida dizendo de toda forma metafórica possível: "Viram? Eu sou Elite! Sou superior e detentor de toda glória eterna e divina!". E etc, etc. Há dois anos, duas dessas Hilux foram roubadas na mesma noite de domingo. Uma delas, seu dono estava na Assembléia de Deus agradecendo por ser um Escolhido. Como esses macacos de realejo não tem mais grana alguma para pagar o seguro astronômico desses veículos, um roubo significa um prejuízo imenso, lembrado por anos quando todo mês tem que pagar a parcela do financiamento. Daí eu faço igual o Hermann Hesse, me aprofundo na carência regressiva que fez surgir esse sujeito espiritualmente mutilado até achar a criança primeva que me possibilite ter alguma empatia, e penso na minha vida. Eu só não suicidei porque tive filhos. Não é uma frase de impacto. Eu não teria me dado um tiro na cabeça nem saltado do décimo andar. Eu só teria bebido e comido até que meu corpo, um belo dia, bum!, explodisse. E teria sido, a seu modo, muito divertido: cada dose de scotch vislumbrando um cenário cifrado no rock inglês ouvido na acolhedora sombra noturna do quarto. Antes eles teriam que me aposentar, os amigos que resistiriam por alguma ameaça cristã de reciprocidade, e eu teria que fazer alguma memorabilia para ser cantada em odes menores nos primeiros dias de luto, depois que o IML me retirasse com a porta arrombada: eu teria que dar um piti numa festa de confraternização, quem sabe cantando a esposa do dono da casa, com meu pescoço gordo e meus olhos empapuçados, mijado na churrasqueira, abraçado cada um até cair no chão enquanto declamava Whitman ("Ah, como ele era culto e dizia coisas elevadas que ninguém entendia..."), e na certa nem teria sido expulso. Coitado, abandonado, sem filhos, sem esposa, um solteirão nerd cujo cérebro se liquefizera nos livros. Mas não choremos. Uma moça se grudou em mim por algum motivo e me passou o golpe da barriga (ela não lê isso aqui, portanto não precisamos usar esse tom sussurrado). Quando minha mãe soube que eu seria pai ela falou: "Meu Deus, o que vai ser da criança...!". Mas, contra todas as expectativas, inclusive as minhas_ eu odiava crianças!_, eu me mostrei um pai bem acima da média. Já escrevi vários textos chorosos sobre isso, mas é verdade mesmo, fazer o quê?, quando vi a Júlia ali na sala dos bebês, pela primeira vez, eu senti claramente que estava tocando o sol. Foi algo tão devastador que eu fui esfolado de dentro para fora e sofri uma mudança irreversível. Esses dias revi por acaso a primeira foto entusiasmada que tiramos da Júlia e dei um pulo de susto: era um ratinho indefeso e fragilíssimo que apresentei para todos como eu sempre a vi, desde aquele momento transfigurado, como o ser mais perfeito e poderoso que algum dia existiu. Há um poema de Brecht que diz que ele iria se conservar saudável e atento para não morrer prematuramente, assim não deixando abandonada a pessoa que ama. Demorou um pouco para que eu consertasse as coisas, mas então eu me mantive sóbrio e saudável, pesando o mesmo tanto de quando eu era um jovem Hércules de vinte anos. Eu não aconselho a ninguém que seja pai e mãe. Aconselho o contrário: fiquem de boa, sigam seus propósitos, não entulhem o mundo de lunáticos de coração triste, a não ser que VOCÊS TENHAM TALENTO E PREDISPOSIÇÃO E DEEM TODA A SUAS VIDAS PARA OS FILHOS (pronto, agora poderemos baixar o tom de voz e voltarmos para o nível elegante). Eu doo toda minha vida para meus filhos. Não cedo a extorsões sentimentais e sou grosseiro quando quero estar em silêncio e em paz, e muitas vezes meu carinho é brusco. E eu me esfoço para que o amor não me perca na missão de ensiná-los a serem seres humanos dignos. E blá, blá, blá, isso aqui não é texto motivacional. E o que essa coisa toda tem a ver com Hilux? Eu não poderia ser bom pai e ter Hilux? A resposta é não. Conhecimento de classe, psicopatologia cotidiana, honra ao Espírito, sentir lucidamente as emanações do apocalipse ecológico, dinheiro como liberdade educacional e não como impostura, não viver a vida que se exibe, não abrir tão ferrenhamente as portas para a depressão diante o vazio cultivado, não seguir o senso comum, não ser parte da manada, etc, etc, etc.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Fissuras




 Tudo havia naquela manhã para fazer com que Natália Mendes não saísse de casa, o aguaceiro de proporções bíblicas que começara a cair do céu, a indisposição da vizinha em cuidar de sua filha doente, até mesmo a insurgência de um vírus que as autoridades sanitárias passavam a dar particular atenção; mesmo assim, Natália achou bastante justificável do ponto de vista da lógica passar por sobre essas circunstâncias e ir à agência de correios retirar uma fantasia de feiticeira que encomendara da China. Não lhe passava despercebido, porém, que essa teimosia disparatada escondia um indicativo de um transtorno mental. Em pé na fila de espera dos correios, após ter enfrentado um trânsito que o radialista pelo rádio do carro disse ser “uma troca de rancores não direcionados”, atrás de um senhor que era a metade de seu tamanho e seus olhos magneticamente se prendiam em sua tonsila  avermelhada que em nada poderia produzir uma distração de melhor nível, Natália se fazia uma análise do que poderia ser os sintomas de que seu aparato interno estava por implodir, com um estrondo talvez semelhante ao da tromba d`água que se chocava do lado de fora da porta rotativa. Ela era uma mulher que certa vez um namorado casual lhe descrevera ter uma estética retilínea, coisa que ela tomara como retrato preciso de seu caráter. “Se fosse uma obra de arte”, o mesmo sujeito prosseguiu em sua piada de gosto duvidoso ou sua cantada ruim, “seria um Modigliani com a inovação de umas pinceladas sombrias”. Ela tinha sobrancelhas retas, o porte alto e esguio, o queixo mais pronunciado do que gostaria, os lábios finos e retos que tanto a incomodavam na adolescência (mas que agora, fruto dos efeitos da hidrostática, já lhe eram resignadamente indiferentes). Reconhecia que era uma pessoa com arestas, seca, monotemática, autodisciplinada em modo espartano para conter uma profusa rede de compulsões, sem simpatia e sem potencial para ser odiada, com a deferência sem vantagem da neutralidade deixada em paz das ferramentas altamente funcionais. Ela se fazia essas avaliações sem qualquer culpa ou necessidade de estorno emocional, como alguém que contempla um frio jardim de inverno observando com langor o traçado do vapor liquefazendo-se no vidro de proteção. A verdade era que ela daria tudo para sair daquele apartamento de capa de cd de música de câmara, com a meia luz descendente que vai enfraquecendo com uma errática impressão de charme assim que se saía da sala para o quarto. O quarto de tantos sonhos ruins, aplacados com dois comprimidos de Amitriptilina todas as noites. 

           Não era fácil ela dizer isso, mas ali naquele ambiente de pobreza protocolar e descaso, com uma estante tripla na parede atrás do balcão com as depressivas caixas de encomenda e um boneco em uma cadeira de rodas com o uniforme dos correios, ela sabia que fugia de sua filha Sofia. Aquele ambiente não oferecia nenhum escoro estético, nenhum refúgio para dissipativas ilusões sobre outros mundos possíveis que estivessem lá fora, além da tempestade, a aguardando. Se havia uma fixação na ausência de eufemismos, aquela sala seria a borboleta mais exemplar pregada no isopor, a amostra perfeita. Natália sentiu algo como os músculos da nuca se contraindo sob o poder daquele tédio em estado puro, de forma que não teve como conter um suspiro. O homem da tonsila se voltou para ela dando algo como um muxoxo de reconhecimento e movimentou as sobrancelhas, como a dizer “o que fazem a gente suportar, não é mesmo?”. Mensagens mal interpretadas e a fugacidade da simpatia urbana, é o epitáfio da sociedade do século XXI, ela pensou. Era uma frase típica de Thomas, o seu marido, o que ele diria para ela se estivesse ali, com a voz propositalmente entonada o tanto acima do sussurro para que o outro pudesse ouvir. A sua estranha necessidade de audiência, não para ter algum tipo de fetichismo tolo de reconhecimento por sua perspicácia afiada, mas porque era esse o atendimento a algum protocolo interno que nem chegava a ser manutenção do amor próprio, mas uma espécie de registros catalogados de seu estoicismo diante o mundo. Ela fechou, dessa vez, bem forte os olhos, para ao mesmo tempo expulsar e reter esse diagnóstico, queria desviar sua mente daquilo e ao mesmo tempo preservar a frase para quando chegasse o momento inevitável que teria que confrontar o tema. E nessa hora ela apenas pensaria, em silêncio consigo mesma, que também o século poderia ser definido pela empáfia das frases de efeito que para nada serviam vinda dos homens elevados. Elevação! Fez um esgar alto com a boca a ponto de temer que algumas gotas de saliva tivessem partido para a ilha na cabeça do baixinho à sua frente, e ficou retesa esperando que ele se virasse novamente, não mais tão estupidificado pela solicitude. 
          Mas não, tudo transcorrera mais uma vez em seus circuitos particulares, tudo estava em sua cabeça. Todas as dores, a solidão, a sensação de um abandono anestesiado e docemente dispensado de transcendência, aquele descuido com a alma que talvez fosse outra marca do século, apenas que ninguém mais aceitava tais palavras sem uma culpa diante a prepotência, tudo isso dentro fervilhando, aumentando a pressão e logo tendo sua defasagem calórica em alguma atenuante oferecida por outras sublimidades comezinhas do pensamento dentro dela, provocando ruído que não se excedia nem um milímetro para o ambiente atulhado de tédio e falta de misericórdia, ela e os demais sete ou outro pacientes da fila com suas torrentes de angústias e ânsias e severas distrações, viajando naquele mundo afundado em uma tempestade cuja mais benemérita era a que se ouvia lá fora, balançando a placa de proibido estacionar de frente ao prédio. Pois bem, que calma, apesar de tudo. Que silêncio. Nos jornais se parara de noticiar as tragédias entre vizinhos por causa desse direito salutar já desistido de se ter, não se computava mais os assassinatos, os crimes passionais, motivados pela cobrança de um instante só de silêncio, de sono regido pelo apagar profundo sem interrupção de fora, e ela entendia que não porque o ser humano houvesse tido algum istmo luminoso e repentino de evolução no sentido da cordialidade e do altruísmo, mas porque os medidores sistemáticos da loucura, a polícia, os médicos legistas, mudaram o procedimento, lançaram aquela realidade inexorável na fluidez das estatísticas gerais, talvez eles mesmos precisassem desse consolo, dessa ilusão.
        E era em ambientes arruinados como aquele que ela conseguia esse silêncio. Aquele amarelo antigo, alguma tinta que apesar de tudo tinha sua qualidade primeva porque tantos anos e sob o ácido de tantos suores ela ainda resistia, como uma combalida vítima de radiação, mas resistia, conservando uma integridade de certa nobreza já que se via o efeito dessas fricções de décadas no esmorecimento de sua força mas não em descasques e fissuras. Será que eles repintavam aquilo?, ela pensou, com apreensão. Será que eles vinham com uma tinta cuja fórmula só eles detinham e repunham aquela tristeza fria, desprovida até o grau mais profundo de graça, em algum domingo em que a agência estivesse fechada e assim conservasse o teor secreto daquela secular conspiração. Ela sorriu, isso seria o tipo de observação que teria alegrado Thomas, o teria feito soltar seu sorriso residual da juventude, em que passavam tardes assistindo as cópias piratas do programa de televisão do Monty Python, o ministério dos passos idiotas, o papagaio morto, o futebol dos filósofos. 
         Ela pôde ouvi-lo, dessa vez falando baixinho apenas para que ela ouvisse, chegando a boca próximo ao seu ouvido não dispensando a insinuação sexual do arrepio, que ela não tinha jeito, que imagem de soberba leveza, era assim que ele falava, sempre colocando as grandes palavras esvaziadas para que elas voltassem a ter um sentido no anacronismo das ruas, soberbo. Natália olhou à frente e havia mais cinco pessoas, duas tinham sido dispensadas pela atendente. Ela recolheu seu queixo para dentro da gola do casaco de feltro, assegurou num lance rápido de olhar se não havia nenhum alguém pelos cantos que ela não tivesse visto anteriormente e que pudesse a molestar olhando-lhe naquela sua intimidade e não viu ninguém, assim pôde usar a mão enluvada para esconder do vazio o sorriso aberto que tais pensamentos lhe provocava. Tinham tido a sua porção de felicidade, era isso. A felicidade nesses termos pequenininhos, quase invisíveis, tracejado na nota de rodapé das situações bombásticas, era a mais democrática das sensações para todos. Tudo mais foi um grande mar de agruras e incomunicabilidade. Mas vamos lá, vamos fazer um diagnóstico, ela voltou a pensar. Seria a reinante depressive personality, a patologia com etiqueta, que enfim insistia para tomar rumos bem menos retóricos nela? Thomas fora acometido com isso, e como foi terrível seus últimos dias. Um filósofo catedrático, era esse o fim que sua mãe jamais suspeitara que o destino agiria com tanta desfaçatez para lhe oferecer, ele lhe dizia, um outro tipo de alacridade instalado em seu humor como aquelas usurpações corporais progressivas dos filmes de invasão alienígena. De tais ele não apreciava muito, o horror de uma ciência que não passava de crendice popular insuflada pela linguagem pomposa dos jornais. Toda a apreensão científica se deve à maquiagem das fotos, ao cinemascope. Quantas horas são precisas para filmar uma sequência em slow motion de um sapo projetando sua língua para pegar a pobre libélula, e era isso que ficava na mente das pessoas, essa fórmula fractal de uma perfeição de relojoaria suíça, escondendo a abjeção, as falhas, os acidentes de percurso, os dejetos biológicos, as chances minúsculas que a vida real tinha para se preservar. 
        Mas ela gostava desse tipo de entretenimento, a banalidade era uma salvaguarda, os efeitos especiais que a cada ano pareciam mais ridículos a adstringência ao requerimento de certezas e precisão. Thomas, Thomas, como ela gostaria que ele tivesse resistido um pouco mais, mais uns anos, camarada. Ela teria sido submissa a um nível humilhante, se ele precisasse isso, ele, tão loquaz e charmoso, tão na verdade cândido em sua aparente frieza, tão incapaz do mal em sua indiferença que muitas vezes a sufocava. Ele era um especialista excelso, doutor em história em um grau avançado o suficiente para que as pessoas sentissem aquela convecção de uma presença física de seu poder, sentiam que era alguém que elas não gostariam de imolar. Nos jantares oficiais que ela tinha que ir, sua arredia e silenciosa esposa, ela percebia numa observação perscrutadora o quanto o simples silêncio avaliativo dele entre uma fala e outra, ou quando se preparava para responder a uma pergunta, a mais trivial delas, todos ficavam em uma expectativa suspensiva, como se algum prejuízo pudesse sair daquele totem da sapiência que engendrava vários fios do futuro individual. Alunos, colegas, chefes em busca de votos para cargos da reitoria, as orelhas da imprensa nos informantes à caça do q eu pensam as mentes potentes sobre a situação mundial e as novas promessas da política. Natália era atrofiada nesse nível de influências, mas não era tola em não pensar que por sobre suas conexões obtusas a tensão sexual desses elos secretos e proibitivos pulsava entre mestre e alunas. Teria tolerado que ele tivesse um caso com algumas delas, se isso servisse para poupá-lo porá mais alguns anos, o suficiente para Sofia entrasse de vez dentro de uma maturidade que fosse razoável para ela. Talvez não fosse tão ruim se pensasse apenas pela ausência de competição animal visto que no departamento em que ele trabalhava todas as mulheres fossem iguais a ela mesma. Pare com isso, Natália, ela se admoestou, que infantilismo tolo. Teria doído muito, teria transfundido a depressão dele para ela com força total. Ela teria virado a histérica que sabia ser abaixo, bem abaixo, do seu autocontrole maciço. 
             A verdade é que ele desistira. Ela olhava agora um dos adolescentes se virando e saindo com os passos retesos, mascando um chiclete e esfregando o nariz com a mão, o moletom em cores escuras, vermelho e negro, má percepção da moda, ou será isso que os motoboys das empresas estão usando agora, um a menos na fila e um a mais no tumulto do trânsito lá fora. Estava próximo para ser atendida. Era uma tolice ficar na fila, já que alugava uma caixa postal e a atendente lhe ter dito várias vezes que o contrato reza a preferência, só entregar a notificação de chegada e assinar o documento de recebimento. Mas Natália gostava de seguir o modo operante básico. Não saberia o que responder se alguém a cobrasse de furar a fila. Suas arestas ficariam boiando na liquidez de suas estampa cubista e sua presença estudada sofreria um severo prejuízo. Quem sabe não era isso que estava dentro dela à espera para colocar os monstros para fora? Quem sabe ela não recorreria a uma fragilidade que tentaria fugir na surdina e seria uma forte candidata a aparecer nos vídeos de fúria da internet. Eram assim as pessoas ponderadas descobertas em seus redutos mais secretos, explosivas, surpreendentes, subitamente se vendo dominadas em seus atos libertários por eros e pela ira. Baseado nessa precaução de reconhecer que o animal antropológico não resolvido, provocado nessa prisão urbana opressiva em todo seu medo assassino, que existe dentro dela, era que a fazia esperar cordatamente a sua vez.
          Ela olhou à sua frente. Havia sete pessoas na fila, duas delas senhoras com casacos compridos e que, olhando-as pelo ângulo das costas, os ombros encolhidos e as perninhas com meias abertas a uma distância condizente com o nível seguro de equilíbrio da idade (um tanto comicamente afastadas uma das outras), podia-se saber que já passavam dos setenta. Os outros cinco se dividiam na malta de jovens ouvindo música por fones de ouvido, um rapaz muito magro de olhar nervoso que uma vez se virou para trás para trocar como ela um contato precognitivo, e o senhor calvo de baixa estatura com o desenho geográfico-cubista no alto da cabeça. Além delas, havia a moça que os atenderia, claro, que Natália conhecia e, em ampliadas perspectivas, poderia dizer que era amiga. Sopesou essa palavra, “amiga”; não era uma pessoa sentimental e se dava demasiadamente bem com sua solidão para se deixar aventurar por tais conceitos muito desgastados, mas olhando-a dali, no momento em que seu pensamento pareceu ter-lhe tocado em uma outra comunicação metafísica mais consistente, de modos que a moça parou o que estava fazendo e ergueu a cabeça do prontuário que preenchia de um cliente, devolveu-lhe o olhar e sorriu, Natália sentiu com uma acalorada certeza de que eram amigas. Uma ternura agradecida fê-la sentir o que havia por detrás dessa palavra, amigo, e porque de certo modo as pessoas que levavam tal palavra a sério destinavam-lhe tamanha importância. Talvez seu problema seja, afinal de contas, só a velha carência, a patologia social moderna do século XXI, ela pensou, com os olhos brilhantes voltando a averiguar a atendente em busca de um outro contato. (Contudo, ela se lançara em uma atarefada ocupação de digitar algum formulário no computador.) 
          Natália tinha dificuldade em lembrar-lhe o nome, um de seus defeitos sociais mais angustiantes. Precisava chama-la pelo nome assim que chegasse a sua vez e ela se pusesse de frente ao balcão; viu que era de sumária importância fazer isso, de modos que estava decidida a virar as costas e sair dali se não tirasse o nome dela do inconsciente. Sua mente ainda era uma massa de conexões fresca e saudável, felizmente, apesar de às vezes achar que a aproximação dos cinquenta a deixasse um tanto retardada e amortecida. Pegando o rumo de uma série de sinapses que vieram-lhe em ajuda, ela se lembrou de quando a amizade surgira, o que se tratava de um acontecimento de certa forma memorável. Foi há dois anos. Um motorista incauto direcionou sua banheira sobre quatro rodas, um Ford Galaxy branco de mafioso italiano, para uma vaga de estacionamento de frente à agência. O carro dera uma estabanada bruta de ré em uma adolescente que estava sentada em sua bicicleta esperando na linha da calçada, e a menina foi lançada para debaixo da grande raia esmaltada do para-choque do veículo, o motorista, um velho marujo de bermudas cáqui e camisa entreaberta no peito, não tendo-lhe passado por cima porque as pessoas começaram a gritar. A balbúrdia chamara a atenção de Natália, que estava entrando na agência com seu olhar fermentado de íntimas distrações, se preparando para o arroubo de sinestesia entediante que o ambiente lhe oferecia. Nesse momento da lembrança, como num flash, o nome da atendente lhe surge: Erica. Como pudera esquecer? Natália levou Erica e sua filha para o pronto socorro. Olhava pelo retrovisor a cândida atendente chorando representando tudo o que ela demonstrava ser detrás do balcão, comedida, voz suave, uma batalhadora que sabe o quanto custa a vida. Alguém que deveria ter tido uma educação severa, uma mãe que agora ela lhe saíra uma cópia em termos de monasticismo e aflição. Mesmo tendo ficado evidente, ao longo do tempo em que conduzia o carro numa linha equilibrada entre cautela e urgência, que a menina estava bem, que fora só um susto, a pobre criatura parecia uma pietá com a cabeça da criança no colo, e era algo belo de se ver. Não pode espantar os indícios de que aquilo era uma mensagem direta para ela, que os arranjos da aleatoriedade disfarçada de sentido fizera para a educar. A pessoa podia ser educada pela ação das circunstâncias, não podia? Natália aceitava esse caridoso cuidado, seja de quem fosse, numa altura de sua convivência com sua filha em que ela tinha tudo para reparar nos seus desmazelos como mãe, em sua incapacidade de digerir as péssimas influências que recebeu no ciclo descendente de filiação. Sua mãe havia sido uma triste sofredora, sem canais comunicantes que dessem lugar ao terno reconhecimento da miséria mútua, que Erica parecia tão bem ter tido comunhão com sua mãe. Erica chorava, puxava a massa líquida que se produzira no nariz, depois apertava os lábios com uma lisura composta e, lá de trás em sua moldura renascentista, erguia a cabeça e olhava-a pelo retrovisor. 
           A amizade se firmava ali, naquela troca de olhares que Natália fingia não ter tempo para levar a sério porque não queria lhe afligir ainda mais a fazendo pensar que poderia ocorrer mais alguma agrura no trânsito, entre motoristas tão ofensivos. O médico examinara os tornozelos da garota, olhara o fundo dos olhos com uma luz estetoscópica, e educadamente retirara quaisquer dúvidas que pudessem ficar nas duas mães. Não havia nada, nenhum trauma além do trauma psicológico. Natália levou as duas para um prédio de lajota azul, de quatro andares e sacada pequena (o tipo de detalhe arquitetônico que evidenciava o tempo da república nova em que fora construído, sem funcionalidade que coubesse um ser humano ali em pé à frente da janela, apenas um adendo que só numa aposta muito particular se veria alguma preocupação estética em desafogar o olhar dos moradores dos espaços quadriculados em série que tendiam ao vazio de suas linhas amplas e sanitizadas de humanidade). Fora convidada a subir pelas duas, que mal lhe falavam no carro, mas que trocavam afagos em voz baixa, e ela, talvez numa falha de etiqueta que suportara por uma necessidade angustiante de manter contato mais aprofundado com aquela mulher, aceitou. Ela observou bem no rosto dela mas não viu nenhum repúdio, saiu do carro pela porta traseira segurando a filha e depois lhe dando uma espécie de concessão de toque no ombro que a autorizava a andar sozinha, embora ela tenha pego a sua bolsa e a pasta de materiais escolares da menina. Subiram as escadas escuras e comprensadas até o terceiro andar, Natália se sentindo uma prestidigitadora convidada em uma apresentação ao ver que sua estatura e seus traços singulares ganhavam uma estranha áurea de graça na espiral e na sobriedade anacrônica, como um ser vampírico que se equilibrava bem sem se apoiar nas paredes. Era apenas dois apartamentos por andar e o apartamento, ao contrário do que se via de fora, não era nada deprimente. As duas, talvez mais por empenho da mãe, gostavam de plantas, espalhadas em ângulos

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Cary Grant



 A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.

A mulher das fotos era simplesmente deslumbrante. Era perfeita! O rosto dela era tão cheio de detalhes significativos que era impossível ver tudo de uma vez. Era preciso fazer pausas e retornar à cartografia daquele terreno de altíssima octanagem um sem número de vezes. Era como o rosto do Cary Grant, se o Cary Grant fosse uma deusa loira dos olhos azuis. Eu pensei que era muito desprezo por parte da Dani pelo meu lado icognoscível e fiquei pensando se haveria na história matrimonial algum episódio de desavença por ciúme antecipado e criado pelo próprio acusado. Eu mesmo jamais, JAMAIS, deixaria que a Dani chegasse sequer perto de certo ortopedista de queixo quadrado e enfadado ar ibérico que mora na cidade.
Mas tudo bem, vamos lá. Era uma incomodação ter que me haver de novo com já acomodadas áreas de uma antiga vaidade, e em vez de ir de bermudas e chinelas eu me vi com calças compridas novas e uma camisa social fina mas não o suficiente para mostrar premeditação.
Estacionei o carro a uma certa distância, me admoestando por perceber que o fazia para não mostrar à deusa que eu não vinha com um Porsche 911 mas com um carro popular normal. Entrei na marcenaria, me dizendo que era uma atitude estúpida eu andar espichando a incipiente escoliose para ressaltar meus 1,90 metros, e perguntei pela mulher a um dos funcionários, citando o nome da beldade. Fui até onde ele me indicou e entrei no pequeno escritório. Bom dia, eu disse à moça, a senhora M. está? A moça sorriu de modo simpático e respondeu: "Sou eu, em que posso ajudar?"
Comprei a mesa, efetuei o PIX, saí com os ombros relaxados e entrei em casa feliz. A Dani me esperava com seu sorriso sarcástico. Eu parei de frente a ela e suspirei aliviado. Não era um teste, era óbvio, mas ela contava muito com o pouco caso que eu dou às formas a que chegou o autoengano na era cibernética.
"Você já tinha ido lá, né?", eu perguntei.
"Não notou o tanto que a cadeira dela fica distorcida na região da cintura, nas fotos?", a Dani disse, rindo com um ar cheio de faceirice.
"Será que não é um estratagema comercial? A pessoa chega lá apreensiva, e tem o choque de achar alguém igualmente consoladoramente humano?", eu ainda insisti.

Virtù

 



Ser filho de um casal que se divorciou quando eu tinha 8 anos desenvolveu bastante a noção do que meus pais temiam fracassar em mim. Os dois tinham pavores opostos. Meu pai, nos nossos encontros mensais, na certa passava noites sem dormir quando ouvia minha voz fina, o jeito sensível que um menino na ingenuidade do deserto hormonal tem de caminhar e de se portar. Minha mãe via em mim um pervertido, na linha contrária, que apesar da minha timidez patológica sempre dizia para eu ficar longe das primas. A natureza da supressão nos torna maquiavelicamente lúcidos, e eu recebia essas coisas com um ar terno, ainda não conseguindo verbalizar a verdade intuída do quanto eles, que eram pais tão jovens, se rendiam ao desamparo.

Um dia eu saí do banheiro e minha mãe entrou, fazendo uma cara de nojo profundo, cheio de temor averiguativo, por ter pisado em uma gota fria.
_ Calma, mãe!_ eu disse_ É só sabão.

A real

 



Cheguei à meia idade com a descoberta que só tenho um talento. Eu assobio muito bem. Uma coisa que não serve para nada, não atesta superioridade em relação a nada, e que sempre incomoda. Ao longo da minha disciplina por não assobiar perto de outras pessoas eu venho percebendo que o assobiador equivale ao cara que tem suvaqueira da braba: todo mundo faz cara feia e repudia mas nunca faz o que deveria fazer, que é chamar o sujeito num canto e falar a real para ele. O assobiador e o suvaqueiro, por isso, podem levar toda uma vida de má fama e ser enterrado como uma lenda nefasta, na completa ignorância de seu problema.

E, olha, não é por nada não, mas eu assobio que é uma beleza (aiiii!). Sei assobiar sonatas para flauta de Bach inteiras, assim como o concerto número cinco para flauta de Mozart (agora mesmo, enquanto escrevo, estou fazendo o bico). Esses dias, por uma grave falha, assobiei uma canção do George Gershwin, "There's a Boat That's Leaving Soon for New York ", no trabalho, e vi que alguém lá no fundo da sala assobiou em protesto, imitando, como um "cala a boca!", ou um "vá limpar esse suvaco!". É um dom que tenho que manter em segredo, sem nenhuma esperança de reconhecimento póstumo.

Pois bem, vou chegar onde quero. Não podendo exercer minha genialidade asquerosa senão em casa, aqui eu me dou a liberdade de ser uma Anne-Sophie Mutter dos beiços estendidos. Ando pela casa, que é grande, espaçosa, com quintal, me sentindo como se estivesse no Carnegie Hall, como se fosse uma noviça rebelde livre e solta, e só não estendo os braços para os passarinhos pois como bom conhecedor da minha arte sei que tal não é a posição propícia para o uso correto do diafragma para que ela se externize plenamente. Então assobio, assobio, assobio, até que...

...até que a Dani se vira para mim de súbito e solta um: "Nossa, mas assim você vai ficar bicudo!". Assim mesmo, na lata! Quinze anos de casamento, e só agora, ela me joga essa sobriedade inesperada na cara. Eu disfarço, rio sem graça, recolho meu instrumento passando a língua para umedecê-lo: a umidade da vergonha. Vou para o quintal e me sento na cadeira para digerir aquela revelação. Então a Dani suportou isso por 15 anos. 20, se contarmos as vernissages que eu fazia nas nossas andanças apaixonadas de madrugada, quando éramos namorados, eu assobiando o Principe Kalender enquanto a levava na garupa da bicicleta. Fi fufi, fifufifu, fi fu fi fi fu fi fu fiiiiii...

Eu ensaio ficar amuado, tentando acender um ressentimento manhoso. Penso em contra atacar mandando uma indireta no estilo "nossa, mas assim você vai virar uma Maria Callas", em referência à sua mania de cantar o dia inteiro. Mas, infelizmente, já passamos há anos por essa fase, e eu já me peguei deitando o livro no peito e cochilando embalado pela voz dela. A Dani canta muito mal, e ela mesma sabe disso, mas eu gosto de ouvir sua voz pela casa, cantando.

Nem estou com vontade de me vingar. Só me vem na cabeça uma música. Também é de um álbum do Miles. Como é que é mesmo?
A Don't Wanna Be Kissed (By Anyone But You). Firulivi fi, firulivifirí...



sábado, 29 de abril de 2023

"Eu também não sei, sinto muito!"


  

   _ Sr. Flibas, é o senhor?_ uma voz denotando vir de alguém muito ocupado falou do outro lado.

 _ Sim, quem fala?

_ Aqui é Salmásio Allende, o detetive particular. Como vai o senhor, sr. Flibas?

 _ Senhor Allende. Não esperava de maneira alguma que o senhor me ligasse. Pensei ter deixado claro da última vez que não temos assunto nenhum em comum para continuar nos falando. Como achou esse número? Aliás, que ingenuidade a minha. Deve ter conseguido através do trabalho que tem em me seguir e pesquisar os detalhes mais insignificantes da minha vida.

_ Não diga isso, senhor Flibas. Nada é insignificante na vida de ninguém. Creio que já mencionei a inclinação que tem se desenvolvido em mim nos últimos anos para escrever minhas memórias profissionais, e o senhor se assombraria em ver quanto material tenho colhido de tantos e tantos clientes.

_ Senhor Allende, tenho certeza de que o senhor sabe o que está dizendo mas não desejo e nem deixo de desejar que leve a diante esse seu plano literário. Isso não me diz respeito e está longe da área de alcance de meus interesses. O que eu reafirmo ao senhor é que nós não temos nada para tratarmos. Isso posto, se o senhor me permitir interromper essa ligação por agora, eu ficaria agradecido.

_ Não, por favor, senhor Flibas, não desligue. Se não for para tratarmos do assunto de interesse entre nós, que pelo menos essa conversa sirva para abrir a possibilidade não de que sejamos amigo, mas, quem sabe, o senhor e eu pudéssemos ao menos nos relacionarmos como uma consultoria. O senhor é a pessoa mais culta que eu tive o privilégio de conhecer. Como eu já disse antes, o sr. Vergue me contou coisas muito profundas a respeito do senhor.

_ Peço que pare com essa bajulação, senhor Allende. Não vamos chegar a lugar nenhum com isso.

_ Não chegaríamos pela ótica do senhor. Ao porto que cheguei os passarinhos cantam e as aves marulham com louvor_ ele disse, falando dissimuladamente para si, em voz um pouco mais baixa, mas que não passava despercebido que o senhor Flibas ouvisse.

  O senhor Flibas ficou estático, ainda em pé, pensando na caçarola com água que colocara na boca do fogão elétrico. Havia aprendido lendo o manual da máquina sobre os detalhes de seu funcionamento e nisso se ocupara por um bom tempo daquela manhã, totalmente absorto. Como o silêncio por parte do detetive continuava, por um momento ele cogitou, assustado, que a ligação houvesse sido interrompida por ele.

   Mas de súbito, a voz intromissa, um tanto indecente, do detetive, retornou:

  _ O senhor precisa me ouvir com atenção. O menestrel urbano tem algo muito interessante para lhe falar.

  O sr. Flibas começou a ter a certeza de que a capacidade de irritar daquele sujeito era de um nível profissional. Talvez ele estivesse usando com ele técnicas cênicas de convencimento, como os detetives dos filmes antigos. Uma bem engendrada ciência para tirar do sério e levar qualquer um a aceitar o grau de irrealidade da situação. Era o tipo de expediente que não tinha outro recursos senão desligar abruptamente o fone, mas uma polidez e uma curiosidade remanescente faziam com que isso fosse impossível para o sr. Flibas.

   O detetive havia pronunciado a frase cantando, como se fosse uma canção infantil. Ele cantava mal, de forma que parecia um velho marinheiro sem jeito tentando parecer divertido.

  _ Vamos dizer que eu tenha tempo agora, coisa de alguns minutos, já que a água que eu coloquei para fazer meu chá já se esfriou, e lhe pergunte o que seria de tão importante para que nós tivéssemos de nos encontrar._ o sr. Flibas disse.

 O homem pareceu se ajeitar na posição em que estava_ novamente a capacidade expressiva de seus menores movimentos era algo que se fazia totalmente assimilável pelo sr. Flibas. E começou a falar em outro tom, se sentindo autorizado a colocar toda sua perícia técnica para fora.

   _ O homem que é objeto de nosso interesse. Sr. Flibas. O nômade cujo nome é Eustáquio Bavilacque. Julgávamos que ele fosse alguém solitário, vindo de uma família destruída, tendo problemas sociais severos vindos do que ao tratados de direitos humanos dizem ser a desigualdade social e bla bla bla. Virou moda afirmar esse álibi antecipado a todo criminoso sem dinheiro hoje em dia. Eu não caio nessa, mas levo em consideração a força retórica desse tipo de discurso. Mas esse sujeito tem uma filha. Isso o senhor na certa não sabia.

    O sr. Flibas sentiu o impacto de ouvir aquele nome, que ele se proibiu de pensar por duas décadas, e por um momento ficou atordoado tentando se lembrar quem era. Ele se acostumara a se dirigir mentalmente ao homem com um sinal gráfico, um pequeno e conciso hieróglifo mental que era inverbalizável mesmo para ele. O ato em volta do homem o havia reduzido a algo animalesco, as tantas palavras para nomeá-lo pareciam impróprias. Se bem que os micróbios tinham nomes longos e intrincados. O detetive, o sr Allende, fazia o sr. Flibas transcender além do ponto de conforto. O sr. Flibas, por inércia, pôr o apartamento estar escuro e a áurea de isolamento ter se mostrado totalmente fantasiosa, resolveu esticar um pouco só a corda.

    _ Uma filha. E essa mulher sabe que virou alvo de um detetive por causa dos pecados do pai?_ sua ironia era uma via de mão dupla, ele sabia, que iria mais autorizar do que coibir que o detetive seguisse em frente naquele assunto delirante.

  _ Disso eu tenho certeza que ela não sabe. Eu cheguei a vê-la com atenção para os mínimos detalhes físicos e alguns traços de seu caráter em uma lanchonete. Uma dessas vezes ela estava na companhia do pai. Mas ela acha válido atribuir parte da responsabilidade pelo pecado do pai ao estado.

  Ele devolvia a artimanha ao senhor Flibas, fingindo às vezes ser detentor de uma pureza ocupacional que o impedia de captar as nuances semânticas da conversa. Talvez ele fosse mais uma personalidade literária das tantas que rondavam Vergue, homens do livro, sujeitos nascidos para o quarto semiescuro, vivendo com seus pensamentos peculiares, tentando driblar suas imperícias no trato com o mundo.

  _ Ela está processando o estado?

 _ O rapaz sofreu uma lesão irreversível na cabeça e não consegue andar como antes de ser preso. Parece que a coisa envolve a antipatia que ele criou entre seus colegas de cela, que lhe deram uma surra violenta. Ele ficou no ambulatório da prisão por dois meses.

  Ele talvez quisesse despertar algum sentimento de desforra no sr. Flibas, que achou que seria uma concordância esperada entre os dois do que ele estaria autorizado a sentir sem peso de consciência.

 _ Eu sinto muito por ela. Pelo que me lembro do processo judicial e do tribunal de júri não havia a informação de que ele tivesse algum membro familiar. O advogado constituído que o estado lhe destinou para a defesa alegou esse fato para solicitar uma redução da pena. Um total abandono do estado, de forma que não se deveria punir com rigor exagerado alguém que desde o início não fazia parte do contrato social.

  _ De toda forma não é conveniente que tenhamos essa conversa pelo telefone. Preste atenção nos ruídos de fundo, está ouvindo?_ ele ficou em silêncio, sem que o sr. Flibas percebesse algum propósito_ linhas cruzadas, conversas interceptadas. Hoje é muito mais fácil fazer isso do que em nossa época, sr. Flibas. Eu também sou uma remanescente dos velhos tempos, dos tempos românticos.

 _ Não estou ouvindo esses ruídos. Quem se importaria em ouvir essa conversa? Algum centro de pesquisas psiquiátricas?

_ Que maravilha o senso de humor aparecendo no senhor! Eu sabia que por detrás dessa estampa altamente formal existia um fino humor britânico. Groucho Marx era inglês? Mas não se adequa. Estaria mais para Evelyn Wright. O senhor com certeza já o leu.

  _ Eu não o tenho em má conta, sr. Allende. Só tento me resguardar de uma dor que há muito aprendi a conviver, e sei que o senhor tem se mostrado sensível o suficiente para perceber isso.

  Ele fez uma pausa considerando as palavras do sr. Flibas.

 _ Isso tudo pode parecer parte da miséria do mundo, sr. Flibas. Eu ia desconsiderar esse trabalho depois da nossa última conversa, mas analisei bem a informação da existência da menina. Eu costumo guardar essas cartas na manga, talvez para usar como conteúdo exclusivo na possibilidade de escrever aquele livro. O senhor já deve ter ouvido sobre o coração terno. Creio que foi Tchecov que disse isso. E há muito coração terno nessa reviravolta de Eustáquio Bavilacqua ter uma filha.

 _ O senhor estava guardando para si essa informação? Não a contou para Vergue?

_ Bem. Eu não poderia escondê-la de Vergue. Sou um dos mais confiáveis e seguros profissionais da cidade, sr. Flibas.

_ Ah, então Vergue sabe.

_ Como não saberia? Ele se deliciou com isso. Ele faltou pular de sua cama e dançar pelo quarto.

_ O senhor comunica pessoalmente suas descobertas para Vergue?

_ Isso é o que me estranha no senhor, que é tão similar ao meu contratante. Ele odeia a comunicação por telefone. Por celular é algo descartável, se chegar a mencionar isso ele é capaz de rasgar o contrato de serviço e chamar uma junta advocatícia para que a outra parte não receba nenhum tipo de acordo.

  O sr. Flibas ficou pensando em Vergue, no pouco tempo que lhe restava e como parecia que aquela alegria esfuziante diante os mexericos vinham de outra pessoa. Não faria parte do jogo, fazê-lo se sentir menos vivo por não compactuar com tal frenetismo diante as ricas fraquezas morais da humanidade expressas nas delícias de sua comédia patética? Allende era cheio de armadilhas, um homem bastante sagaz. Talvez ele devesse vê-lo, o sr. Flibas pensou. Um cérebro desses, nesse canto da sarjeta onde estava, não era para se desperdiçar.

   _ Vou poupar o nosso tempo, sr. Allende. Me diga seu endereço que vou aí numa hora combinada.

  O homem pareceu ter sido pego de surpresa. Não esperava que além do humor aquele idoso de faculdades intelectuais elevadas o suficiente para alimentar certa misantropia também fosse aberto à experimentação. Para um homem que se gabava de conhecer a fundo a natureza humana, ter suas expectativas confrontadas era um presente para o dia.

   _ Eu posso poupar todo esforço para o senhor e aparecer aí mesmo em sua casa hoje ainda. A sua inquilina só volta daqui seis horas e, a propósito, me encontro a exatas três esquinas daí.

 _ O senhor é um tipo bastante pitoresco, sr. Allende. Falava de ruídos, e não ouço nenhum ruído de buzinas e de conversa para alguém que deve estar num orelhão no centro de uma das maiores cidades do mundo.

 _Oh, me fiz entender erroneamente, sr. Flibas_ ele sorriu. Um sorriso cascateado, como sílabas interrompidas e encavaladas, como alguém com uma modéstia suficiente para rir afim de amenizar um elogio que achasse ser desproposital. O sr. Flibas imaginou uma papada se balançando sob a força daquela alacridade._ eu não me encontro numa calçada, à mercê de carros e passantes apressados, sr. Flibas. Quando o senhor me ver pessoalmente vai entender que seria o mais arriscado e contraproducente dos artifícios para alguém do meu ofício. Minha aparência é totalmente conspícua e, infelizmente, eu chamo atenção de longe pelos fatores mais prosaicos. Sou excessivamente alto e minha cara exala prisões e mandatos de prisão. Uma vez um foragido da justiça se entregou para o primeiro policial que se encontrou ao sair de uma boate julgando que eu estivesse em seu encalce, e eu estava num outro caso, de fraude de seguro. Não é uma qualidade boa para se ter. Como o diabo diz, sua maior força vem de sua aparência de bom cordeiro. Eu falo de uma lanchonete. A garçonete daqui é um affair que eu tive há algum tempo, e ela me concede essa regalia no furo de suas desassistência das leis trabalhistas, se é que me entende. A gente vive sobre a opressão do capital mas se diverte o máximo que pode. Os prazeres da falta de altas expectativas.

   Ele sorriu do mesmo modo, como se fosse uma fita gravada que rebobinasse a bel prazer.

  O sr. Flibas cogitou a possibilidade de receber aquele homem incomum no apartamento da sra. Adele. Não havia nada que o proibisse disso, e se Adele visse o detetive iria até sentir um interesse pela absoluta incorreção da coisa. Uma cozinheira não se abstrairia do prazer de mexericos picantes. Ela tinha algo do barbeiro da aldeia, mas era elegantemente dissimulada em controlar as palavras para não soar impertinente.

  O sr. Flibas contorceu o corpo, erguendo-se sobre os solados dos pés, para ver como estava o céu pela janela. A faixa do canto da cortina se balançava levemente devido a uma corrente de ar que entrava pela janela semiaberta, e o escuro que seus olhos se apercebiam agora em toda sua intensidade não podia proceder do horário. Deveria ser três horas da tarde, um pouco mais tarde talvez, e o ar elétrico que se sentia por alguma percepção antropológica naqueles prédios que pareciam grandes grutas agrupadas confirmava que viria chuva.

  _ Estarei esperando pelo senhor. É no terceiro andar._ ele sorriu, desconcertado, e finalizou a conversa_ como se fosse preciso lhe dizer isso, sr. Allende.

  Colocou o fone no gancho não sem antes ouvir o detetive tentar dizer alguma coisa em sua defesa, aquelas considerações modestas cheias de um humor viril defasado e obsoleto. O sr. Flibas ficou parado por alguns segundos, esperando que sua consciência emitisse o sinal de alerta por ter agido com desfaçatez. Não sentiu nada, só um sossego brando que bem podia ser efeito da inesperabilidade daquilo tudo, detetive, o assassino de sua esposa, a filha bastarda reaparecida. Ao organizar o pensamento dessa forma o alerta enfim veio, diminuído, como se acionado em zonas distantes de sua mente. Como uma chama num monte crepuscular longínquo, visto de quilômetros. Era nisso que ele iria entrar, nesse revival de antigas desgraças, esse remoer de traumas à custas, pelo visto, da vontade de Vergue e da admissão de que sua velhice era uma planificação insossa e tediosa, que necessitava do velho teatro de sangue e criminalidade para lhe dar um sentido significativo. Ele bem poderia colar sua presença na de Toledo e preencher suas horas vazias com aquelas preocupações pueris mas carregadas de frescor do velho cunhado de sua inquilina. Ele o admitiria com agradecido prazer em suas engenharias caseiras. Toledo sim sabia envelhecer, tinha a sabedoria de conhecer os limites de sua maturidade para reduzir aquelas escatologias urbanas para suas dimensões particulares. Os cupins da estante de livros do professor de letras tinham o mesmo valor que o novo assassinato da vizinhança. Como era verdadeira as acepções mística sobre os loucos de deus, os santos russos que vagavam em suas absolutas simplicidades por todo império. Toledo lhe parecia um monge de um mosteiro medieval perdido nas pradarias de Katchkanar, com seu pomar e suas orações madrugadinas. Era mais uma das confirmações do grande dispêndio inútil de energia em dedicar a vida para os livros. O entretenimento eterno para distrair-se da distração pela distração. Já não tinha nenhum apetite e pegou a caçarola de cima do fogão jogando a água na pia. Analisou sua estrutura fisiológica maquinalmente, como se fosse um perito observando as reentrâncias de um motor, e não percebeu nenhum traço de fome. Alexandra lhe disse para sempre ficar atento à afasia, que para alguém com a carga de debilidades pela qual passara recentemente seria perigoso cair num quadro de desnutrição. Tentou pensar em algum substituto ligeiro para o chá, querendo ganhar tempo para se trocar e esperar que Allende fosse anunciado por Toledo pelo interfone. Daí se lembrou que, se Toledo lhe batera à porta, era porque o interfone deveria estar novamente quebrado. Abriu o armário embutido e deu de cara com os pratos. De súbito notou que havia esquecido onde estavam as bolachas. Ficou imóvel, os braços espichados, ainda segurando com as mãos os puxadores prateados das portinholas, imergindo sua mente para dentro de si mesma na tentativa de decifrar aquele minúsculo mistério essencial. Estava numa tendência à neurastenia nesses últimos dias, e o Alzheimer era o terror pulsante e onisciente escondido por detrás daquelas suas falhas de localização. Mas Adele guardava bolachas de água e sal e maizenas ali, justamente por serem os locais mais fáceis de se alcançar. A realidade era que não estavam, não iriam aparecer por mágica no simples intento de lhe aliviar, e fechou as portas de uma vez, quase com violência. Como era cansativo o fardo da carne. Talvez o que estivesse ocorrendo fosse uma revolução de seu espírito, tão ocupado em ser levado pela transcendência se sobrepujando ao corpo nos mínimos arrebatamentos dos ornamentos cotidianos, que resultava naquelas surpresas desconcertantes, naqueles mal funcionamentos pelo pouco uso. Daí se lembrou, como se por resposta imediata de um cérebro ofendido, e se inclinou dando dois passos e viu as bolachas no balcão próximo ao chão, pelo vidro transparente perfurado. A coisa toda voltou em sua mente como se fosse a mais poderosa lembrança que tinha, dando-lhe explicações lógicas de que ali era o melhor local para que as bolachas não se oxidassem e se tornassem murchas.

   Pegou um pacote aberto de biscoitos de maisena, cuja ponta estava amarrada pela fita vermelha adesiva retirada quando aberta, e devorou cinco unidades. Era uma enganação de seu corpo a aparente falta de fome, pois foi colocar aquelas linguetas de farinha compactada na boca ele foi tomado por uma compulsão que revelava uma fome vigorosa. Fechou os olhos, com o pacote nas mãos, mastigando os biscoitos que estalavam e emitiam sons de uma secura quebradiça agradáveis de se ouvir e sentir, sentindo o prazer que elas lhe davam. Abriu a geladeira, indo contra sua indisposição a bebidas geladas no café da manhã, mas enfiou seu extenso braço até o fundo da prateleira média e pegou uma garrafa pela metade de leite. Como só tinha uma pequena quantidade, duzentos mililitros talvez, ele sorveu o leite pelo bico da garrafa, dois fios descendo rápida e inesperadamente pelas laterais de seu queixo e caindo numa velocidade selvagem pela blusa do pijama. Estava fresco ainda, o que lhe causou surpresa pois ele mesmo havia aberto a garrafa e tomado dela há uns bons quatro dias, o que seria natural que o paladar do líquido estivesse comprometido. Seria parte de seu rol de doenças se aquele deleite vindo do leite fosse imaginário, as papilas gustativas enlouquecidas produzindo reações que não comportavam a ativação apropriada gerada pelo material biológico putrefato e em decomposição, e o sr. Flibas deixava essas suspeitas penetrarem nele como parte da incorreção em que se lançara de diversas e variadas maneiras desde que acordou.

    Enxaguou a garrafa na torneira da pia, balançou com determinação a água no interior para que todos os resíduos translúcidos fossem colhidos pelo verte do pequeno furacão, e despejou o líquido remanescente no ralo. Fez mais duas vezes o mesmo procedimento, usando um fio do detergente que retirou do suporte de plástico ao lado da pia, e depois enxugou a garrafa e a colocou com cuidado e ordem no aparador já cheio de pratos e copos. Provavelmente a garrafa era descartável e melhor teria sido se a tivesse jogado no cesto de lixo na porta dos fundos da cozinha, mas ficou um longo tempo apreciando a garrafa deitada junto às colheres e garfos, ensombrada pelo exército em descanso dos copos de cabeça para baixo em seus ganchos. Era uma bela garrafa, ele pensou, e um enternecimento poderoso vindo de raízes obscuras o fez encher os olhos de lágrimas. Alguma coisa muito potente acabara de passar no substrato de suas emoções naquele momento e ele a respeitou, aceitando seu lugar de revelação. Talvez dissesse respeito às tantas garrafas de leite que seus olhos emancipados pela leveza de tantas manhãs de divagações haviam apreendido, e por um momento o sr. Flibas achou uma síntese perfeita, a mais preciosa das invocações do pensamento: tudo o que sobrava eram invólucros de calor sensorial. Estava tratando sobre assuntos terríveis, cheios de incorreções malucas e distorções, e o sentido disso era para que o calor sensorial de experiências primordiais fossem resgatadas, lhe voltassem como iluminações repentinas.

    Ele foi para o quarto, olhando por impulso o inútil relógio de ponteiros sem pilha parado nas dez para as dez, e retirou o pijama, descendo as calças com as pernas. Entrou debaixo do chuveiro do quarto e ligou a ducha, se colocando bem no centro de sua boca de múltiplos furos. Nunca urinava no piso do banheiro, para que a água do chuveiro debandasse a urina pelo ralo. Uma antiga pressuposição vinda dos tempos de casado indicava não ser uma atitude respeitável do ponto de vista higiênico, e sempre satisfazia essas exigências biológicas no vaso. Desse modo, ainda com o corpo por sob a ducha, se declinou um pouco para o lado até alcançar o vaso e descarregou um jato de urina para o interior da porcelana. Deu descarga antes de terminar o procedimento, admitindo a crença fajuta e autocontestada de que assim a bexiga se obrigava a se esvaziar mais rapidamente, e depois que acabou de tomar o banho, lavando os cabelos com shampoo e condicionador e esfregando as costas com uma bucha orgânica, desligou o chuveiro e escovou os dentes, olhando-se pelo espelho. Esfregou a toalha para desembaçar o espelho e se viu, os cabelos molhados, o ar de desamparo mortuário do seu rosto devolvendo-lhe o olhar. Com a voz baixa, um pouco acima do sussurro, respondeu à imagem: “eu também não sei, sinto muito”. Abriu a porta que ficava por detrás do espelho e guardou a escova de dentes e o creme dental. De todo modo era motivo de sorte que não tivesse um espelho de corpo inteiro, não saberia qual resposta dar. Voltou para o quarto depois de ter se enxugado e pendurado a toalha no cilindro de plástico fixado na parede. Se comportava como se tivesse um encontro sério, o que ele delimitava o contorno do conceito sem ter material memorialístico para abalizá-lo. A suspensão de sentido era moldável à ideia de um encontro profissional, pois não era amigo do sr. Allende. Balançou a cabeça e sentiu o sorriso amargo daquela fase da ironia que ia além da simples constatação de que atendia a alguns passos de uma comédia abstrata que, de alguma forma, satisfazia-o como único observador. Até mesmo essa maneira de se referendar no centro da questão perdera muito de sentido com a velhice, pois ele não tinha um ouvinte hipotético para quem contar. Ele simulava entender a graça um tanto chocha de que a história não era isenta de certa relevância se a contasse num jantar, ou numa reunião do clube do livro, ou, quem sabe, numa sessão de terapia (o terapeuta tendo angariado uma intimidade após longos anos de esforços mútuos de entendimento), mas não lhe restara nenhuma outro amigo. Não um amigo com quem pudesse dividir a total falta de razoabilidade que compreenderia com simpatia aquela insensatez.

     O sr. Flibas colocou a roupa íntima, vestiu as calças compridas de brim. Vestiu uma camisa branca de botão e um casaco de feltro leve. Penteou os cabelos, usando uma escova de mão que tinha uma alça compacta por dentro da qual enfiou a mão. Foi para a sala e esperou. Lembrou, um tanto encabulado, que não havia fixado um horário para o homem chegar, o que achou ridículo. Isso o colocava à mercê do sujeito de uma forma que pareceu ser mais uma das astúcias maquiavélicas dele para se sobrepor. Não era mais hora de sentir ódio e se punir por essa fraqueza, mas sabia que sua falta de tato nesse joguinho com um homem como o detetive ainda traria um comportamento melindrado e auto defensivo de sua parte. E Allende é quem, para piorar a situação, lhe parecia ter maior traquejo para colocar panos frios e socializar o ambiente. Não estava querendo ler, cruzando as mãos na altura do rosto. Ficou um longo momento assim, mergulhado em reflexões, até que, com um suspiro, pegou o jornal soviético e ficou folheando, sem ânimo.

   Estava quase se deixando render por uma crítica cinematográfica sobre um filme indonésio_ sobre uma mãe camponesa que luta pela sobrevivência do filho sem pai em uma sociedade machista_, quando foi retirado de volta à realidade com o som de passos vindos da porta do apartamento. Dobrou o jornal, pôs os óculos no rosto e ficou com a boca fechada, relaxada, antecipando sons presumíveis que deveriam continuar o movimento do corredor de fora. Enfim bateram na porta, um toque decidido mas não exorbitante. Se levantou a andou com os passos firmes. Abriu a porta e lá estava o sr. Amásio Allende.

   Ele lhe sorriu, meio inclinado, e se desvencilhou a mão direita do guarda-chuva que lhe custava certo esforço em operar.

   _ Oh, Oh, eis o homem culto! Deixe-me observá-lo para ver com detalhes como ele é. Brincadeiras à parte, é um prazer finalmente te conhecer, sr. Flibas.

  O sr. Flibas pegou a grande mão dele na sua e sentiu um aperto cortês, que ele de imediato identificou como uma estratégia calculada de estender suas credenciais.

 _ Sou eu, sr. Allende. Queira entrar, por favor.

 O rosto dele era grande, imponente, espichado para baixo. Parecia um rosto inglês, desenhado usando uma régua genética de antigos provincianos insularmente isolados com suas noções servis mas participativas da aristocracia. Um rosto que denunciava sua inclinação à ordem, ao fuxico e à manufatura artesã. Indicava que na estratificação profissional a que rendia fidelidade ele poderia ser com igual proficiência um barbeiro, um açougueiro, um sapateiro ou um jardineiro. O fato de ter sido um detetive, porém, parecia não ter sido aleatório, porque nele havia uma confiabilidade que o teria tornado um destaque em todas as áreas anunciadas, o que evidenciava ao sr. Flibas que não se tratava pois de um mero improvisador. Era um homem deveras um tanto alto, como ele mesmo havia alertado pelo telefone, mas talvez bem menos factível de ser evidenciado no meio de uma multidão quanto pretendia. Seus olhos tinham o recurso inconsciente de serem generosos e mansos, o que não eram atributos que chamassem a atenção do vulgo por muito tempo. Talvez ao ter querido passar a impressão de certa imponência ao sr. Flibas houvesse nele uma vaidade em driblar o selo de barbeiro de aldeia que sabia possuir e talvez colocasse em dúvida a sagacidade que se espera de um homem que transita no submundo do crime. Talvez sua aparência dúbia de homem grande mas com ar prosaico atendesse à verdade de que fosse apenas um detetive de temas irrisórios, traições de esposas cansadas, perseguições na surdina de antigos sentenciados cujo único motivo fosse atender à curiosidade de idosos entediados. Idosos ricos entediados, o sr. Flibas se corrigiu, pensando em Vergue. O detetive tinha um bigode muito fino, mal composto, com fios grossos entortados e com as beiradas de baixo formando um cômico montinho com falhas. Ele entrou e ficou parado à porta, sem graça, ainda repetindo o risinho cortês que não escondia que avaliava avidamente o apartamento. Ele estava tão embrenhado em não disfarçar que o ambiente lhe provocava uma profunda curiosidade que virava o pescoço, arregalava os olhos e depois se virava para o outro lado, como para obter alguma comprovação de uma suspeita. Vendo que o sr. Flibas o olhava, ele se calou, ainda com o sorriso na boca (a ponta da língua se pronunciando ligeiramente como se tivesse um tique nervoso de a mastigar em momentos dispersivos).

  _ Bem, bem, bem, hehehe_ ele estacou os braços.

 _ Era como o senhor havia suposto?

 _ Ah, o apartamento? Eu não imaginava que fosse tão soturno. A sua inquilina me parece alguém com um senso feminil de organização muito desenvolvido, de modo que esse ar circunspecto, que remete muito mais ao senhor do que a ela, me cause certo assombro.

  O sr. Flibas seguiu em frente para levá-lo ao sofá na sala, não querendo demonstrar que caía no conto da carochinha de que ele era um gigante ingênuo que não percebia uma caçoada. Não lhe pegou o casaco amarelo que usava e que estava molhado, ainda que não muito, não o suficiente, pelo menos, para que ele se preocupasse com o tapete e os móveis. Allende não parecia ser susceptível a esses cuidados profiláticos, nesse ponto ele parecia ter uma distração sincera. Pensando assim, o sr. Flibas achou por bem se virar e pedir seu casaco, para evitar danos maiores, ao que o homem o passou (não sem antes fingir surpresa mais uma vez, uma tática que servia como um agradecimento). Não haviam porta casacos no apartamento, e o sr. Flibas levou a peça até a mesa e a colocou no encosto de uma cadeira. De todo modo reconhecia que era quase tão displicente com esses detalhes caseiros quanto aquele gigante, o que o sr. Flibas ficou consternado, lamentando não ter a percepção certa para ver se estava cometendo algum deslize que chamaria a atenção de sua inquilina. Bom, o que fazer, deixa pra lá, ele deu de ombros e voltou para a sala.

    O homem já havia se sentado. Sem o casaco sua barriga era visível, pronunciada mas não patologicamente chamativa. Não parecia que vivia para os prazeres da mesa, mas ser o efeito colateral de uma vida ocupada, um cotidiano do monastério da profissão que o fazia desleixado com a dieta. Um regime alimentar fomentado em bares e sanduíches comidos dentro do carro. Quando viu o sr. Flibas entrando na sala ele deu outro de seus sorrisos, havia um grande cabedal deles, pelo que o sr. Flibas suspeitava, cada um querendo emitir partes peculiares do discurso. O sr. Flibas se sentou de frente a ele e o observou, com as mãos unidas.

  _ Bem, aqui está o senhor._ o sr. Flibas disse.

 O homem parou de sorrir, deu uma volta de olhos mais uma vez pelo apartamento, como se tivesse em um local cuja excepcionalidade faltava na percepção acostumada do sr. Flibas, e olhando novamente seu anfitrião, ele disse:

  _ É um ambiente fabuloso, sr. Flibas! Confesso ao senhor que me escapava a intuição de como seria. Eu sou amante de habitats íntimos, principalmente aqueles que ficam intocados à mercê dos mesmos moradores por anos, como este. Impregna como o quê a personalidade dos que vivem nele de modos que parecem extensões, como novos braços e pernas. Não estou me expressando bem e não queria manter essa imagem equivocada cheia de fisiologia. É mais algo puramente espiritual.

  O sr. Flibas o olhava impressionado, mas continha qualquer emissão sensorial. Não eram matérias a serem trabalhadas instantaneamente aquilo que o homem dizia. No fundo de sua canastrice havia um conteúdo legítimo, não sabia ainda se derivado de algum poder de percepção saudável da mente.

 Como o sujeito ficou calado em evidente espera de que ele lhe completasse com alguma resposta aquela observação, o sr. Flibas disse:

 _ Esses traços de personalidade são puramente de minha inquilina, a sra. Adele_ olhou em volta por inércia, atendendo ao que os dois esperavam que se fizesse_ Acho interessante que o senhor tenha tantos dons de um bom observador. Mas, se não for desrespeitoso, gostaria que iniciássemos o que estamos aqui para conversar.

    Sem nenhuma outra solução de continuidade, dispensando trejeitos, o sr. Allende abriu o grande envelope branco que trazia ao entrar e retirou documentos dele. Não havia mesinha de centro naquela disposição do prolongamento da personalidade da sra. Adele, o que o sr. Flibas percebia ser uma falta_ ou resultado do fato de que ela não recebia visitas que lhe traziam dossiês de vidas alheias. As folhas que saíam como da cartola de um mágico, lisas e foscas, um momento de cada vez captado por aquele homem cuja única ocupação era esperar e colher pelas beiradas os pequenos despojos de um conjunto de crimes maiores, aquilo que as pessoas que eram seu alvo deixavam sobressair pela distração ou pelo automatismo.

   _ Eu gostaria que me explicasse primeiro o que o senhor vem descobrindo sobre o rapaz. Mostrar registros sem fazer esse apodo não melhorará meu parco entendimento a respeito.

 _ Pois não. O senhor está certo._ ele procurou em torno algum local onde deixar os papéis, mas não achou. Segurou-os desajeitadamente por sobre o peito, olhando-o como uma criança crescida que tem brinquedos importantes que não podem cair na sensaboria do mundo dos adultos.

 _ Em nossa conversa eu disse ao senhor que ele tem uma filha. A moça tem 19 anos. Foi concebida na cadeia, no período de vinte anos que ele ficou preso. O senhor sabe, talvez, que ele cometeu outro assassinato no presídio. Por este, ele foi condenado e sua pena se elevou em mais nove anos.

    _ Eu não acompanho a vida dele, sr. Allende. Por algumas vezes Vergue queria me informar sobre o que acontecia com ele nesses anos, baseado em sua aplicação sempre para mim misteriosa e incompreensível por se manter a par de tais coisas, mas eu reiterava minha total falta de interesse no assunto. Como o senhor conhece Vergue, sabe que nada o demove a realizar suas obsessões, de forma que ele me contava mesmo assim. Não adianta muito se zangar com alguém que é acometido desde de sempre por compulsões peculiares. Vergue não é bem um maníaco, mas alguém movido por hobbies íntimos específicos não pautados pela conveniência.

  _ O sr. Vergue é um homem que conserva dentro de si uma criança que nunca cresceu. Ele tem essa chama científica que está por detrás dos grandes avanços da humanidade. O que parece ao senhor um comportamento intransigente, na verdade é a teimosia muitas vezes não politicamente correta dos ímpetos geniais.

  Ele falava sério agora. Seus olhos ficavam cheios de uma severidade trágica. Era um mal ator quando tinha que demonstrar dramaticidade menos rasa do que o âmbito de suas ações.

  _ Bom, deixemos Vergue de lado por um momento. Queira continuar sua exposição, por favor.

  Ele se achegou para frente na poltrona, de modos que os intervalos entre os botões em sua camisa deixavam entrever os pelos de sua barriga. Não tinha retirado o chapéu, uma peça que lembrava o que os atores que interpretavam Sherlock Holmes usavam nos filmes, embora isso devesse ser um elemento fortuito pois ele parecia a atender outros exemplos menos cerebrais. Era um homem de ação, de se deslocar por vários pontos da cidade. Revelava um entusiasmo difícil de disfarçar por ter vindo ali.

  _ A menina se chama Janete, e cursa História na universidade federal. É uma espécie de militante de direitos humanos, uma persona dos livros e das causas dos degradados e minorias, se é que os degradados podem ser vistos como minorias nesse mundo, não é, sr. Flibas. Ela obtêm as mais altas notas. Isso eu não soube por nenhum técnica de investigação mais aprimorada, mas por as notas das provas serem fixadas em murais específicos no prédio da faculdade. Ela tem uma espécie de veneração pelo pai. É estranho que uma estudante de elevados dons críticos tenha esse tipo de abstração suficiente para não cogitar o assassino que a engendrou. Se eu fosse leviano explicaria tal coisa no fato dela ser um ente do sistema prisional, seus genes terem sido concebidos numa cela apertada com vários outros casais copulando ao mesmo tempo. Mas isso não é nem um pouco científico_ ele ergueu seus olhos de ternura canina para o sr. Flibas, uma prega palpebral semifechava o ângulo que os olhos formavam com o nariz realçando algo de buldogue amistoso_ e não falo isso senão como elemento para que o senhor facilite a composição do enredo em sua mente aprimorada, sr. Flibas. Uma menina filha de um assassino reincidente, e de uma mãe adolescente cujo grau de desabrigo familiar e deficiência educacional a fez se apaixonar por um criminoso a ponto de se casar com ele enquanto esteva preso. É uma desrazão tratar o amor de uma filha como um simples componente genético, o pai queiramos ou não, não parece ser um mal pai, mas a fúria que ela demonstra contra o sistema é uma característica nutrida nesse meio.

   _ A mãe dessa menina, o que aconteceu com ela?

  _ Ela está viva. Mora com outro homem, um dono de um restaurante dez anos mais velho e que não quer saber de nada desse submundo. Janete é independente. Trabalha numa loja de roupas durante o dia e cursa o curso de noite. Ela e a mãe se dão muito pouco, em encontros esporádicos. Mas não há nenhuma rixa entre as duas. A garota teve uma educação católica clássica nesse aspecto, embora só na estrutura patriarcal de respeito da grande figura patriarcal que governa a família.

  _ O senhor está falando de heranças genéticas, mas pelo visto essa menina está desenvolvendo qualidades que não haviam no pai.

 _ É justo esse o ponto chave da questão, sr. Flibas. Olhando-a à distância, como me limitei a fazer durante os primeiros meses, ela correspondia com uma precisão suspeita a todas as expectativas da visão progressista sobre os benefícios redentoras da educação. Imagine sair da linha esperada da criminalidade, ou das paixões baixas que levaram seu genitor à criminalidade, e antes dos vinte anos ter a potência intelectual de uma...bem, não tenho a erudição do senhor e me falta algum nome da intelectualidade feminina. Mas eu queria completar essa imagem com o nome daquela escritora judia,  a que falou sobre o mal ser coisa de gente comum submetida a lavagem cerebral, e não uma característica pré definida.

 _ Creio que o senhor está se referindo à Hannah Arendt, que cunhou o termo “a banalidade do mal”.

  O detetive o olhou com os olhos concentrados, prenhes de uma simulada admiração. Na hora o sr. Flibas percebeu que havia caído em outras das estratégias de relações públicas dele. O sr. Flibas parecia estar ali em parte para atender a algum arquétipo que aquele homem alto e inteligentemente maleável havia feito para moldar a realidade dentro do factoide que criara sobre o assassino redimido e sua filha anarquista. Era ao mesmo tempo de uma ingenuidade desconfortante e de uma astúcia da qual o detetive angariava alguns pontos para sua premissa técnica. Queria passar para si mesmo, mais uma vez, numa eterna alimentação de sua autoestima, que era altamente articulado e com certo domínio sobre o ambiente, e tinha algo que deveria deixar o sr. Flibas congratulado por tais joguinhos no modo como o sujeito se sentia realizado por ser ele, o sr. Flibas, um homem de elevados dons intelectuais.

  _ Isso, Hannah Arendt, aquela senhora com o cigarro que mantinha intercurso com o Heidegger e seguiu passo a passo o julgamento do Heichmann.

 _ Olha que prodigiosa a sua memória, sr. Adelle. Um nome apenas e toda uma sequência de fatos é acionada!

  Ele sorriu ao ver que havia sido pego em seu estratagema, mas emitira seu sorriso de menino faceiro. Talvez fosse parte também da jogada a hora certa em mostrar sua modéstia.

 _ Eu li o livro dela, devo confessar. É que eu fico um tanto desconcertado diante de um homem como o senhor, sr. Flibas. É um livro interessantíssimo. Creio que todo pai deveria passar esse livro para que os filhos lessem antes de completarem 13 anos, que é a idade onde o cérebro está ainda bem receptivo mas começa a dar seus primeiros passos à rigidez da aceitação e do comportamento repetitivo. Eu não tenho filhos, mas se os tivesse passaria esse livro e O Castelo, de Kafka, como instrumentos indispensáveis para a formação do caráter.

   O sr. Flibas cogitou haver uma lógica íntima que sustentava essas duas escolhas, e sabia que se tocasse no assunto estaria mais uma vez cedendo às intenções dele. Como um estudante de livros e um interessado na condição humana, era uma tentação muito grande saber o que um homem como aquele teria a dizer. Mas antes que ele abrisse a boca, o detetive se antecipara.

  _ Eichmann, após ser sequestrado pelo Mossad e quando estava no corredor da morte em Nuremberg, recusou um livro que lhe foi ofertado por um dos carcereiros. Ele o devolveu por atentar contra os bons costumes e ao fato dele ser casado e pai. Era o Lolita, aquele romance pornógrafo tão cheio de refinamento e elevação moral. Já notou que os únicos livros sobre sexo que importam sobre os que tratam de tudo, menos de sexo? Tratam de doenças e compulsões, mas não sobre essa sensação soberana de felicidade e autoestima infinita que o verdadeiro sexo dado por deus promove. Mas a questão é que a alta literatura era algo muito impertinente para esse senhor fino e condoído do exemplo moral para seus filhos que organizou a estrutura dos campos de concentração e da solução final.

  _ Eichmann, pelo que me lembro desse livro, se achava superior a seus comandados por, durante toda a vida, ter lido dois livros, enquanto eles não haviam lido livro algum. E esses dois eram dentro do estilo de aventuras exemplares para jovens patriotas, como os livros de Kay May que Hitler era louco por eles.

  _ Isso, senhor Flibas! Meu Deus, como é um presente altamente vantajoso poder falar com o senhor. A gente tem sempre uma resposta sintonizada com as mais altas expectativas, sempre podemos esperar por uma resposta atenta e circunstancial. Nada de assuntos sobre carros, mulheres e programas estúpidos de televisão.

_ Mas o senhor estava dizendo sobre Janete. O senhor a está relacionando à Hannah Arendt.

_ Foi apenas uma maneira de fazer uma introdução auspiciosa ao assunto. Mas eu não a subestimo, nem um pouco, senhor Flibas. Eu trouxe aqui alguns artigos que ela escreveu para o jornal da faculdade, e a garota está francamente incendiada.

  Ele procurou entre os papéis e, erguendo as sobrancelhas e molhando as pontas dos dedos, puxou algumas folhas de cópias de xerox grampeadas no canto superior. O sr. Flibas leu uma tarja adesiva amarela grudada em que estava escrito o seu nome.

 _ É para o senhor. São três artigos. Um deles ela trata do pai, de forma velada e culta, em que só iniciados como eu e o senhor poderemos reconhecer a estratégia de falar de forma abrangente sobre as injustiças do sistema carcerário e a realidade vivida pelo pai. Os outros artigos são sobre temas pontuais, uma sobre racismo em grandes empresas e a outra sobre a real emancipação do poder feminino que é toldado pelos grandes esquemas de marqueting contrário das mídias dos países periféricos.

  O sr. Flibas estendeu o braço e pegou as páginas. Não seria muito diferente do material que lia avidamente na Sentinela Progressista. Ele observou as folhas e a tintura estava fraca, com alguns pontos de impressão tênues e mal visíveis. Abriu as folhas debaixo e viu que problema estava na máquina que a reproduzira, que deveria ser do escritório do detetive. Mas estavam num limite de suficiência que não atrapalharia o resultado, embora exigissem uma certa aplicação da parte dele. Para um bibliotecário aposentado, era um aspecto que não causava muitos problemas.

  _ Ela é como dinamite. Escreve muito bem. Tem um talento enorme, embora se soubesse converter boa parte de sua indignação em estratégias eloquentes evitaria o tom enfadonho típico da adolescência. Por mais que tenha sofrido, ela acredita piamente na capacidade do cidadão engajado em mudar o mundo. É de partir o coração, senhor Flibas.

   O sr. Flibas lia por alto os títulos dos artigos. Não confiava muito em excessos de indignação e o detetive conceituava bem usando o termo enfadonho. Os jovens tinham uma percepção biologicamente distorcida sobre a longevidade da vida e muitas vezes suplantavam a coerência temporal das apostas. Era uma impressão equivocada, promovida por um instinto muito bem arraigado da continuação da espécie, de imortalidade. Não conseguia mais se enternecer com esses inúteis dispêndios de energia, essa balbúrdia mascarada de ideologia, que todas as vezes descambavam em extenuações profundas. Se o experimento social que Vergue queria propor com isso tudo_ porque era certo que ele sabia da existência dessa garota_, era que a escuridão do conformismo lipídico que engloba tudo e todos não poderia decretar suas vitórias de forma tão incontestável. Ele gostaria de ver o rosto dessa menina, diferir a independência e a herança do assassino no contorno de seu rosto_ alguma mácula era deveria ter da intransigente seriedade dele no tribunal, sua empáfia da invisibilidade, sua vontade proclamada pelos músculos faciais _aquela rede ultra calibrada de violência e temor_ de que desprezava profundamente tudo em volta. No assassino aquela fúria havia resultado num ato bárbaro sem razão alguma, uma admoestação vazia contra a materialização errada da padronização que tanto o afligia. Naquela moça, algo substancial havia ocorrido na grandeza do mistério evolutivo em curta escala insuflando um prisma de propósito. O sr. Flibas não podia negar que enfim Vergue havia composto um enredo interessante, hipnoticamente estimulante a um nível que ele não podia mais dispensar.

   Ele ergueu os olhos, saindo de suas divagações, e viu o detetive lhe examinando com o máximo de atenção, como se estivesse suspeitando dos intrínsecos pensamentos passando por sua cabeça. O homem não temia o silêncio, e quando isso acontecia num servidor da lei_ mesmo um mambembe investigador de divórcios sem altas credenciais como ele_ era algo que fazia aflorar um sentimento de apreensão.

  O senhor Flibas se limitou a devolver o olhar, resignado em não ficar na defensiva. O sujeito sabia bem impregnar de tensão as diversas linhas discursivas, como um bom narrador polifônico.

  _ Creio que a história sobre a moça não terminou. Como a história de Kafka, o enigma do que está no castelo é a parte fundamental do que traz o senhor aqui._ o sr. Flibas disse.

 _ Lamentavelmente isso é verdade, senhor Flibas. A parte principal o senhor ainda não sabe.

_ Pois sou todo ouvidos, sr. Allende.

  O sr. Allende se mexeu na poltrona, achegando seu corpo para a frente. O que tinha por dizer parecia ter um peso circunstancial alto, e ele queria que as palavras recebessem a delicadeza possível. Era algo curioso e nitidamente empolgante, visto seu ar disfarçado de deleite, autorizado a não mais ter que ostentar um falso ar de abjeção. Sua barriga se encolheu ou foi escondida pelos panos de um número a mais de sua camisa que sobressaiam na área da cintura, e o branco lhe dava um ar higiênico, o que deveria ter a ver com a impressão que o senhor Flibas tinha_ um pré-conceito_ de que os artesãos dedicados tem uma assepsia natural, como se a dedicação lhes conferisse uma incorporeidade.

  _ Essa menina. Hum-hum..., essa moça, é o termo. Entrou numa grande roubada. É uma dessas histórias a quais podemos definir como zeigeist, como vindas do espírito do século. Tem a ver com cibernética, correção política, apologia à liberdade de gêneros, etc. Tantas e tantas coisas que afloram em ritmo bastante violento nessa Babel em que todo mundo é o algoz e o elogiador de todo mundo.

 _ Sou todo ouvidos, sr. Allende. Continue, por favor.

 _ Um colega de aula de Janete, chamado Nestor Tostes, foi injuriado por uma professora em sala de aula. A mulher é uma nazista sem tirar nem pôr, uma dessas criaturas sórdidas que algum evento que deve ser estudado retirou de debaixo da pedra onde viveu escondida por décadas. Um desses seres cheios de rancor e esbravejando direito por legitimidade que os tempos atuais tem feito surgir. Os que ficaram silenciados nas épocas passadas, quando eu e o senhor éramos homens de meia idade usufruindo da última ingenuidade reinante, que se lamuriavam diante as injustiças e rejeições pelas quais passavam. É estranho que na faculdade tenha muitos desses tipos, mais do que a análise lógica sobre a inclinação desses ambientes para a esquerda crítica leva a pensar. Essa professora é uma senhora que ela mesma teria motivos para não cair tão achincalhadamente contra as minorias representativas. Ela tem, bem, como vou dizer, não quero incorrer em nenhum dos deméritos que estou criticando, mas não tem outra forma de dizer senão com a palavra direta. Ela sofre de obesidade. Ela tem uma rotundez corpórea além de qualquer eufemismo. Mesmo assim, numa sala de aula, durante uma discussão que tomou proporções descontroladas, ela perguntou a esse rapaz o que ele acharia se os “dos tipos dele” começassem a ser mortos em via pública. É algo realmente espantoso de se ouvir, ainda mais em uma sala de aula. Os tipos dele ela queria se referir aos trejeitos do rapaz, que o vulgo costuma chamar de afeminados. Que conversa espantosa essa nossa, aparece com todo o poder os limites do idioma.

  _ A mulher inquiriu o aluno sobre se ele se sentiria confortável se o suposto nicho sexual a que ele pertence sofresse um pogrom?_ o sr. Flibas perguntou espantado.

_ Com palavras muito mais claras do que as que poderíamos usar sob a égide de nosso senso moral, sr. Flibas. Perguntou na cara dura.

_ Eu não tenho requintes de exclusividade em achar que estou sendo poupado de uma atualização absolutamente distorcida das forças da história, sr. Allende, mas isso é uma amostragem pura demais do que minha idade me agracia em evitar. Meu Deus! Essa jovem, Janete, sair em defesa do rapaz é algo obrigatório. Ela tem um grande mérito por não calar, por não se recolher em um canto de observador omisso das derrocadas do mundo, mas ela está provando apenas que é alguém digno que respeita o contrato social.

 _ É o que escreveu aquele poeta alemão, levaram meu vizinho, mas como eu não gosto do meu vizinho, eu não me importei, etc, etc, até que chegaram nele e o levaram e qualquer reação dele já estava atrasada demais. A professora estava usando crachás e adesivos do candidato da extrema direita à presidência, o que é terminantemente proibido em uma repartição pública. Seu objetivo era afrontar, já que toda a classe segue o que ela conceitua como doutrinação da esquerda. Faltou por pouco ela estender o braço e fazer a saudação nazista. Janete se levantou e começou a falar sobre os direitos humanos, a comissão de Genebra, sobre Chomsky, o mundo líquido, o fim das afetividades, a menina é uma fera e sabe conversar como ninguém. Ela apontava o dedo e gritava, mas sem perder a firmeza da voz, apenas para que a mulher gorda perdesse um pouco da progenitura do discurso e falasse menos bobagens. O rapaz, Manuel Tostes, não conseguiu falar nada, estava em choque, encolhido num canto da sala.

 _ Como senhor sabe desses pormenores, sr. Allende? Tem informantes dentro da faculdade também?

  O detetive, ainda sentado com o corpo projetado para a frente, deixando um largo espaço entre suas costas e o escoro da poltrona, olhou para os dois lados, como se tivesse esquecido onde estava, e continuou:

_ Eu tenho o vídeo feito por um aluno, sr. Flibas. Eu o obtive com o dinheiro do sr. Vergue. Não quero entrar nessa parte da história agora, mas o senhor não vai ficar sem conhecer tudo. Apenas me eximo de tratar desse quesito agora por uma questão de respeitar a linearidade da narrativa. Só antecipo que ninguém tem esse vídeo, não está nas redes sociais, está bem guardado em meus arquivos e segurado num site privado de memórias digitais. A professora não se calou. Ela chamou Janete de sapatão, de experimento sociológico de uma filha bastarda de um criminoso que comprova a teoria de que a prole de desvirtuados geram desvirtuados. Essa foi a gota d’água para a Janete, que jogou um livro na cabeça da professora. O livro nocauteou a mulher, que ficou com um galo horrível e com um corte na bochecha. Ao cair ela quicou o rosto no chão e por pouco não teve uma lesão craniana. Janete foi segurada para não desferir chutes na mulher, segurada com veemência por três alunos. Essa parte da gravação começa a perder o foco devido ao caos implantado por esse final inesperado. O diretor e os bedéis entraram na sala e a gravação acabou por aí. A professora foi levada para a sala da diretoria e quando acordou reivindicou a presença da polícia para fazer um inquérito. Ela disse que os adesivos haviam sido grudados nela quando ela estava desacordada, no intuito de cavar uma demissão.

  _ Isso é muito grave. Janete usou de boas intenções cívicas, mas uma vez caído na violência ela perdeu qualquer margem para defesa.

_ Há uma questão que podemos classificar como de uma má escolha exegética para experimentar a força de um livro na prática. O volume que Janete acertou a professora é uma edição traduzida da Plêiade de Leviatã, com oitocentas páginas em capa dura e de quase cinco quilos. Se a sorte tivesse montado esse incidente duas semanas atrás, quando eles estudavam o Contrato Social, as possibilidades de se acertar um livro três vezes menos volumoso seriam menores. Se a mulher não tivesse negado a cabeça num desvio instintivo para o lado, o velho Hobbes mesmo assim não teria feito grande estrago. O lobo do homem acarreta uma áurea involuntária de selvageria maior que o romantismo sem violência de todo homem nasce bom.

   O sr. Flibas sorriu diante a pilhéria. Era um insight realmente primoroso.

_ O senhor consegue ver toda a graça por detrás dessas bravatas ferozes. Não deixa de estar certo, pois todo mal é ridículo. Essa cena seria pavorosa em um prostíbulo, quanto mais em um local teoricamente destinado ao fomento do saber e da cultura. Mas a diretoria acreditou na mulher, diante tantas testemunhas?

_ Não só acreditou como abriu um processo de expulsão da Janete. A professora é filha de um desembargador, tem tios influentes nas empresas da mídia. Um irmão de sua mãe tem um canal famoso, de milhões de seguidores, no Youtube, destinado aos mais atrozes delírios da extrema direita. Descobriu-se depois que o diretor da unidade foi compactuado com os movimentos de extrema direita para não perder o cargo e a escolha da professora foi algo planejado, para conter a onda progressista da maioria absoluta dos alunos.

_ Isso é um absurdo!

_ O curso é praticamente tudo que uma menina vinda de uma família derruída e sem muitas expectativas de ascensão social tem. Retirá-la dos bancos acadêmicos seria um grande acidente na vida dela, um acidente irretornável.

_ Eu lamento muito. A situação da cultura e do pensamento crítico independente no país é catastrófica. Toda essa trama só mostra isso. Não se pode fazer nada para reparar as tantas injustiças nessa história. O rapaz ofendido em sua sexualidade, a menina levada a cometer um ato bárbaro pela falta intencional de controle por parte de sua professora. E o fato de se fazer propagandas desse teor em um local destinado à educação.

_ Mas não acaba por aí. Aconteceu algo muito pior. O rapaz foi até a sala da professora, uma semana depois, desfivelou a calça e lhe mostrou o pênis. Ele não havia sofrido nenhuma sanção até o momento, em que a reitoria não viu outro recurso senão o suspender das aulas.

_ Ele simplesmente entrou na sala dela e fez isso? Sem nenhum conteúdo entre a briga na sala de aula e esse momento?

_ Nenhum. A professora disse que, enquanto ele lhe mostrava as partes íntimas ele falava num som libidinoso “isso aqui está bem para você? É disso aqui que você precisa para virar uma mulher de verdade?”.

_ Meu deus!

_ O rapaz quis se aproximar dela sabe-se lá para quê. Se o senhor o visse saberia que isso atentaria mais contra ele mesmo do que contra a mulher, pois ele é um terço do tamanho dela e uns 50 quilos mais magro. Se ela quisesse, simplesmente o destroçaria. A mulher é algo equivalente a uma modelo ocidental vestido e feminino de um lutador de sumô.

_ E o que aconteceu com o rapaz?

_ A mulher se sentiu agraciada por tamanha sorte. Não poderia ter acontecido algo melhor para lhe dar legitimidade em todos seus discursos e essa cena acabou de vez com as mínimas chances que Janete e seu movimento progressista teria. Os policiais levaram o rapaz e ele ficou três dias na cadeia. O judiciário parece ter feito corpo mole para deixar para soltá-lo depois desse tempo todo, como uma lição moral sugerida. O judiciário nacional não difere muito da atmosfera metafórica que a professora representa com suas suásticas disfarçadas e sua paixão pelo candidato extremista.

_ E o vídeo de toda a ação? Isso deve valer muito, considerando o quanto o universo de vídeos da internet se alimenta de material escabroso. Isso foi divulgado?

_ Ah, senhor Flibas! Reconheço que o senhor viva num isolamento saudável quanto a todas essas emanações doentias do mundo lá de fora, e por isso compreendo que não esteja com isso colocando minha perspicácia profissional em dúvida. Foi uma colega de Janete que filmou tudo com seu celular e ela não queria se expor se publicasse esse conteúdo em canais virtuais e nem tão pouco queria jogar isso levianamente nas redes. Eu já a havia entrevistado alguns dias antes sobre o caráter de Janete, e ela me telefonou me oferecendo o vídeo por um preço proibitivo. Ela é duro na queda e foi irredutível, mas sem fazer chantagens. Deixou no começo a insinuação de que se eu não o comprasse ela não teria nada a fazer com ele senão atender ao apelo instintivo da consciência virtual uniforme de jogá-lo para os leões da crítica incessante. Eu fiz uma ligação rápida para nosso contratante e ele topou pagar o preço. De modos que eu adquiri o vídeo e ele é a peça chave tanto para inocentar quanto para condenar Janete.

_ Suponho que tenha o registro por inteiro do episódio, de modos que mostra a propaganda ostensiva no corpo da professora como também, lamentavelmente, o desfecho do ato de violência.

    A conversa não poderia continuar mais. Ainda ficara uma estrutura suspensiva no ar sobre o propósito daquilo tudo sendo levado para o senhor Flibas, o que ele poderia fazer em sua profunda insuficiência em um sentido ou em outro para socorrer aquelas pessoas. Aquela moça desesperada pelo excessivo apelo moral e o rapaz homossexual cujo desenvolvimento do enredo se jogara a uma ponto morto de autodestruição. E a professora, que talvez fosse o elemento mais sensível disso tudo, pelo que representava na contramão de qualquer esperança de redenção nesse quadro de almas em turbulência. Era a violência pela violência, o arquétipo puro de emanações sensoriais vazias de propósito a não ser a imolação mútua. Como uma pira de sacrifícios conjuntos em nome de um deus amparado no ódio. Mexer com objetos tão venenosos não se obtinha nenhum seguro de se sair ileso. A conduta forçada em retorno ao andar da trivialidade fez com que o sr. Flibas interrompesse a conversa e levasse o detetive para a porta de saída. A desculpa verdadeira era que a inquilina estava por chegar e prometera trazer visitas, e não seria bom para ninguém que houvesse testemunhas daquele acordo tácito mas ainda indeterminado que se fazia entre os dois. O detetive mesmo concordava, achando de uma indispensável prudência que ele saísse naquela hora, obtendo do sr. Flibas a promessa de que matéria segredo sobre todas as revelações. O sr. Flibas conteve um sorriso diante essa definição, mas chegou à conclusão de que o homem estava certo, eram revelações poderosas. Não era por serem desse grau de escatologia que não envolvesse sentimentos humanos que deveriam ser considerados de forma séria.

    O sr. Allende disse que iria manter o sr. Flibas informado. Ele se vestira o casaco e descera com vagar as escadas, olhando os ângulos de cima com uma atenção de entendido. Quem sabe se ele não teria alguma solução milagrosa a apresentar ao Toledo sobre controle de pragas? Na certa os dois iriam se encontrar na portaria e aquele mundos eloquentes não resistiriam a uma pausa para conversarem.

 A sra Adele chegou meia hora depois. A chuva havia parado e um sol manso, preparado para reaver seu direito de progenitura pelo menos por algumas horas, incidira um calor sobre-humano cujo recurso imediato foi abrir as janelas e correr as cortinas. Olhando para a rua de frente, se via as pessoas aparecendo novamente em suas qualidades de transeuntes apressados atinados com outros aspectos da realidade que não fosse a pressa desviante contra a tormenta. O céu se esvaziara de nuvens, emitindo um azul esbranquiçado, ainda inseguro se devia cobrar para si toda a manifestação sub-equatoriana dos longos meses de calor intenso, e uma ponderação esotérica, uma espécie de convalescência ainda longe por terminar, deixava claro que as sombras só estavam em algum lugar resolvendo outras tarefas de urgência intermitente que, logo cumpridas, voltaria a estender o longo manto de escuridão e assobios por sobre a geografia visível.

   As crianças estavam com seus uniformes oficiais do colégio. Consistia de uma camiseta polo branca com a gola azul, com uma insígnia no peito, e a menina usava uma saia até os joelhos e o menino uma bermuda, ambas azuis. Evocava uma atmosfera regencial cara, línguas estrangeiras e algum código de ética centenário. A escola era de período integral, e o fato das crianças estarem ali era algo que despertava curiosidade no sr. Flibas. A sra. Adele leu isso no rosto do inquilino quando colocou os dois sentados na sala de estar, e com uma voz firme, característico dela, lhe contou que os pais haviam pedido que ela os buscasse antes do almoço no colégio. Ela falava no mesmo tom inalterável que usava para todas as coisas, mas tinha uma técnica própria de estabelecer o alcance para cara frase de forma que os que não deviam ouvir ficavam de fora. O sr. Flibas testou mais uma vez esse poder dela observando as crianças ilesas à fala de sua cuidadora, a menina folheando um livro que retirou da mochila e o menino, gordinho, com ar de enfado educado, olhando algum ponto neutro que era importante justamente por isentá-lo de participar do ambiente.

  _ Os pais se julgam observados, e ainda não estão em condições suficientes de admitirem uma situação de risco_ ela disse, enquanto pegava uma panela de aço nova de dentro do armário de cima.

  Ela já o havia deixado a par da disputa na justiça pela parte do hospital que os Neville haviam acionado. O grande hospital da Anunciação, onde a sra. Adele era cozinheira chefe e onde Alexandra trabalhara quando exercia a medicina. Era uma causa que se revelava complicada, cheia de embargos e audiências adiadas ou promovidas apenas para que os advogados lessem frases de retificação. Tudo para estender a resolução o máximo possível até que o cansaço físico ou institucional desse o ganho para os sócios majoritários. A sra Adele havia constituído um grau de confiança com o casal que se transformou em uma espécie de vínculo familiar, cheio de respeito e consideração. Foi o casal que lhe dera a promoção de chefia e supervisionara mesmo o espólio do apartamento de seu viúvo através dos advogados da família, e Adele lhes dava em troca a persona de cuidadora extra expediente das crianças, cujo vínculo admitia ser chamada em qualquer hora. Ela cobria esses adendos do contrato de amizade com uma dedicação sagrada, sendo que nutria um amor incondicional pelas crianças. E a menina e o menino viam nela uma sucedâneo autorizados dos pais, atribuindo a ela as características sobressalentes de carinho que o casal enredado em questões de um mundo de ocupações restritas não tinha tempo para dar.

   A menina era alta, de quinze anos, e o menino era rotundo, com um ar inalienável do privilégio de casta, de doze anos. Sentados à mesa pareciam seres tirados de uma cena vitoriana, um pouco só modernizada por novas adaptações de jovialidade no coque e nas meias (com marcas da Nike), e colocados ali para comporem um quadro de uma suave comicidade anacrônica. Fernanda_ era o nome da menina_, havia lido o livro do sr. Flibas e conhecia aspectos relacionados à literatura juvenil mundial que rendera uma conversa cheia de felicidade imodéstia para o sr. Flibas. Ter seu herói menino assimilado a Kim, do Kipling, era algo óbvio, visto o substrato da cultura subdesenvolvida não poder escapar desses moldes de referência, mas as considerações saíam com uma inteligência sem misericórdia, com a precisão condigna da visão aristocrática da garota. “Ele só é enfático demais em sua recusa do mundo, como se sentisse a necessidade de ser elogiado continuamente por esse esforço sobre-humano que faz”, ela dissera a respeito do Pequeno Nero, o herói do livro do sr. Flibas que, em certa época da infância e por pura voluntariedade, resolvera abrir mão de sua beleza e se tornar um ser deformado, um pequeno corcunda. “Mas isso não faz com que ele perca sua verossimilhança, isso, pelo contrário, reforça que ele é um personagem humano cheio de falhas e inconsistências”.

   O sr. Flibas ficava em um silêncio meditativo diante essa leitura tão inesperadamente próxima das coisas que ele escrevera há tantas décadas. Talvez se não fosse aquela capacidade corajosa dela em não ter papas na língua, e conservando ainda por cima um respeito e uma quase polida adoração pelo livro do sr. Flibas, ele a teria visto com a misantropia que ele tanto tentava combater mas que se acentuava mais com a idade. As olheiras cinzas, debaixo e seus olhos concentrados, intensamente ternos, o enchiam de uma admiração pelo futuro que ela tinha pela frente, aquela promessa vigorosa que a juventude bem situada, questionativamente incansável, provoca nos velhos. O sr. Flibas gostava de falar com ela mas eram poucas as vezes que tinha tal oportunidade. Via as aparições dela no apartamento como momentos valiosos mas que intuíam sempre um fator indeterminado de risco, o que não ficava de todo claro mas que Adele e os meninos emitiam tal suspeita nos rostos. Principalmente o menino, que, sem aos atributos intelectuais desenvolvidos da irmã, era susceptível a mostrar a intensidade de seus sentimentos.

   _ Ele parecem ao senhor mal nutridos?_ um dia a sra Adele lhe perguntou.

  Ele não saberia responder com precisão a pergunta, as exigências cosméticas do mundo moderno_ com suas exibições excêntricas do que considerava-se hoje em dia belo ou socialmente aceitável_ mudavam numa rapidez que ele não era capaz de acompanhar. Seu padrão estético elementar se relacionava com alguma insinuação famélica de escassez, mas ele procurou levar ao pé da letra a pergunta e disse que os achavam bem nutridos. O menino era algo que não se podia relativizar, embora ele não tivesse exposto a questão nestes termos para Adele, mas a menina tinha uma esqualidez que, em sua teoria, favorecia a clareza mental. E esse atributo era o mais requisitável para a sobrevivência num mundo de simulacros e imposturas como aquele. Ele sentiu necessidade de ir mais longe na resposta e disse à Adele que Fernanda lhe parecia capaz de se defender em seus próprios termos contra a realidade inóspita, o que, para sua surpresa, não foi recebido como esperava. Adele suspirara de preocupação, e depois de um instante lhe disse que era isso o que temia. Eram situações nunca explicadas e o sr. Flibas continha a tendência dos mobiliários do apartamento e das sombras ecoando o vazio das horas em atiçar a voz do futrico dentro dele. Não queria nessa altura bancar o velho xereta, atrás de picuinhas para ocupar suas longas horas, se retirava para seu quarto ou se mantinha no limiar da cordura do bom anfitrião coetâneo quando eles estavam lá.

   Como falar sobre literatura o desgastava, pois sempre achava que era mais autorreferente do que seu senso de autocrítica requisitava, ele se mantinha num oneroso silêncio. As crianças, por mais que disfarçassem, não conseguiam deixar de demonstrar o quanto se sentiam estranhas diante um velho calado, que ficava sentado sem fazer absolutamente nada na sala diante eles. Tudo que ele tinha ele levava na consciência, suas imagens reservadas, suas sensações acolhidas, seus temores amortizados pela certeza do cumprimento da ampulheta dos anos, e o que era intensidade auto avaliativa era natural que eles vissem um sucedâneo nada convidativo para tão elevadas expectativas: lembranças do que seus livros avançados de biologia daquela escola cara informavam sobre as doenças da senilidade. Ou quem sabe suas fantasias soltas iam além, no terreno desabrigado das insinuações criminosas, alimentadas por alguma insuspeita expressão a mais surgida em seu rosto pela secura da idade. Na internet deveria haver monstros urbanos em que a sua aparência alquebrada, obsoleta, sem lugar efetivo na região saudável das aspirações indenitárias, deveriam se encaixar com perfeição.

  Como o segredo do que havia entre os três e aqueles pais corporativos sempre leais às finanças e ao deus do capital era inatingível para ele, o sr. Flibas pegou seu casaco e pediu licença. Pensou em almoçar no restaurante italiano a duas quadras abaixo e pegar o metrô para a biblioteca municipal, onde tinha de entregar um livro e escolher um outro. A sra Adele ficou consternada, e ele viu que havia sido abrupto demais em sua evasão, se virando para ela e dando um sorriso de desculpa. Era fácil mostrar que não era um ser de artimanhas, embora essa fosse uma das características que  a psicopatologia social reiterava ter de ser afirmada todos os dias. A sra Adele aceitou suas desculpas e perguntou se as crianças lhe incomodavam (sempre mantendo a voz audível fora da frequência de outro modo bastante assimilável dos ouvidos deles na sala), e o sr. Flibas foi veemente, com toda a justeza de seu caráter. Estava precisando colocar os pés para fora do apartamento e pegar um pouco de sol, afinal de contas.

   Toledo não estava à vista na portaria. Não teria sido de todo incomodo perder um pouco de seu tempo ouvindo a epopeia nova dos isópteros, e na certa ele lhe perguntaria se falara com o Allende. Mas segurou seu chapéu na cabeça, o ajustando mais na linha dos seus cabelos, e ganhou a calçada. Não havia sombra de água da chuva recente, o sol cáustico evaporara todos os sinais deixados pela madrugada e pela manhã. O calor acentuado reforçava a intuição de que para mais tarde tudo aquilo se converteria em uma tormenta poderosa, como um processo alquímico inevitável. Se lamentou em não ter pego o guarda-chuva, que estupidez ser levado pela aparência superficial do tempo. Saíra com pressa para não ter de dar mais explicações sobre não estar incomodado e acabara se sujeitando àquela distração inconveniente. Na certa encontraria Filogônio, o bibliotecário que o substituíra na biblioteca, e se lançariam em longas conversas que extrapolariam o prazo mental afixado de modo estapafúrdio da hora de ir embora.

   Não iria se apressar. Tinha muitas coisas para pensar. Havia um substrato de diversos assuntos nos escaninhos mentais da repartição íntima em sua cabeça. Os reis africanos lhe pareceram convidativos, como se fosse uma missão em favor da defesa da racionalidade ocidental catalogar aqueles déspotas de mil serviçais negros em seu lugar na sociologia primitiva. Antepassados distantes tanto dele, através de sua cor atenuada, quanto daqueles outros sul americanos que passavam por ele, atarefados, incapazes, a não ser se instigados por alguma fixação inapropriada, de perceberem os genes de assassinos cerimonias trafegando dentro deles. Era um alento sentir aquela hordas ocultas de selvagens desaparecidos adormecidos na multidão com seus celulares nas mãos e suas roupas ajustadas, de tecido sintético e lanhos vegetais trazidos do outro lado do mundo. Havia algo de belo no morticínio, na deformação espiritual da extrema violência, era uma certeza irredutível pouco produtiva em sua desmentida progenitura. Era uma fantasia utópica da vida mental achar que se poderia viver apartado treinando o espírito para só se ater aos propósitos capitais, os mais importantes e elevados. Ele mesmo fazia seus esforços nesse sentido, alimentando essa impossibilidade abstrata, dirigindo seus circuitos cerebrais para a origem das nebulosas e os buracos negros. Repetir com autonomia os aforismos da ortodoxia científica moderna. Se o universo é infinito, não existe metade do infinito, ou um terço do infinito. Essas fabulações grandiosas para a qual o instrumento humano não era feito. Esses enormes cristais de elucidação sobre um princípio que tanto o método quanto o objeto eram abrangentes demais, ou por demais diminutos, para que o cérebro os comportassem. Era como um conhecimento sustentado puramente pela semântica, e a prática estivesse inalcançável, o que era de comum acordo não mencioná-la. O que havia de verdadeiro, terreno, próximo, carinhosamente atencioso num eterno respeito à nossa dimensão prosaica eram essas amostras da ferocidade e da intolerância. Ainda se podia deleitar com a metáfora por detrás do enigma insondável da condição humana: uma professora e uma aluna se matando numa sala de aula. Seria muito perguntar se no quadro negro havia alguma coisa escrita? No alcance simbólico de nossa autorreferente inteligência isso não seria de extrema importância? Como Jesus desenhando com o dedo sabe-se o quê na areia enquanto a multidão se arregimenta para apedrejar uma prostituta. Ah, que esplêndida consideração a uma coerência interna da espécie acharem que ele desenhava a cadeia cromossômica. É aqui que estará a prova de vossa suficiência e sua redenção. Na ciência libertadora, na constância cosmológica que separa os atos brutos e os assassinatos, os rancores e as maldades. O espaço entre essas coisas sendo a Promessa, o fins constitutivos que vão justificar os meios.

     O sr. Flibas fazia pequenas gesticulações, nada comprometedoras, embora tivesse consciência de se beneficiar com o fato de que ninguém incomoda um velho. Que rissem, nessa altura da grande história do despautério qualquer tipo de humor, mesmo o alimentado em fontes vexatórias, era bem quisto. Às vezes ele percebia que havia expressado alguma frase em voz alta, o que levava a alguém naquela turba anônima a olhá-lo. Era uma região selvagem apenas aprimorada com cimento e detalhes de antigas e sobressalentes tecnologias, um letreiro que se aprimorou ao longo dos últimos anos, com a letra “N” queimada. LA_CHONETE. Lojas de celulares com grandes símbolos de uma maçã mordida, ondas termais congeladas em um azul translúcido em frente a uma loja de calçados. A grande savana do homo civilitations, em que os leões passavam em uma observância dissimulada, as hienas se escoravam nos cantos atrás de despojos possíveis. Nessa linha simbólica ele poderia se considerar alguma presa de certa elevação na base da pirâmide competitiva, um animal velho. Pelo que ele lia nos jornais, os velhos haviam aberto uma categoria nova de vítimas e não eram poupados. Esperavam-nos na porta de bancos, sentavam-se com eles nos bancos das praças, se achegavam por detrás quando eles caminhavam para lhe surrupiarem a carteira. Era uma arma involuntária o ar de doidivanas, de alguém que debate com a própria demência, e ele não desconsiderava as possíveis atrações que isso podia exercer nos predadores apressados. De toda forma ele estava tão embrenhado nesses pensamentos que se deu conta que já estava dentro do metrô, em pé se segurando na barra vertical de aço galvanizado, em sentido centro. Esquecera-se de que seu destino quando saiu era a biblioteca, mas também não havia pego o livro que tinha que devolver. A Evolução Criadora, de Henri Bergson. Suspirou sentindo estranhamente sem nenhum traço de apreensão por aquela sublevação total à gravidade. Isso seria uma demonstração indubitável de seu estado de progressiva debilidade fisiológica ou um resultado de ter saído às pressas do apartamento, para deixar a sra Adele e as crianças à vontade? Ele não se importava. Na base de todas essas reflexões estava a filha do assassino de sua esposa, que ele a partir de agora resolvera mencionar pelo nome, Janete, era o que devia a ela essa humanização, dar-lhe o direito justo de sua individualidade. Pensava na grande professora, que ele a imaginara com poucas possibilidades de sua imaginação estar exagerando. Essas figuras abjetas proto-nazistas, absolutamente ignorantes, eram fáceis de serem dimensionadas. A rigidez muscular apropriada à certeza que levavam davam-lhes uma aparência extenuante. Bastava pensar em Goebbels, em Eichmann, em Mengele, em Demjanjuk. Ele mesmo já vira essa máscara um sem número de vezes, não admitindo que a cromossomia tivesse-lhe feito com aquela cor e postado ali em frente a eles, como uma afronta a seus altos regimes aristocráticos. Era uma eterna repetição, uma reformulação que parecia gastar pouca energia para retirar esses mostruários seculares do sótão da história, pois eles por si mesmos já se regeneravam. A propulsão que os faziam ganhar uma estatura perigosa era a matéria fétida que habitava o coração humano. Talvez a perda de força desse clichê desse ainda mais poder àquele símio que se acreditava superior até mesmo por reconhecer a pobreza gramatical das frentes de oposição. Essa professora se julgava a mais inteligente, a mais bela em sua gordura exagerada, a mais bem nascida. Ou alguma armadilha linguística muito bem elaborada, despejada em conta-gotas, a fazia achar que detinha uma verdade desconhecida, que só os adeptos de um secreto merecimento angariavam. Uma verdade que se tinha que honrar pela escolha defendendo-a da abjeção da ralé, da bestialidade do populacho. Mas o sr. Flibas conservava seu conceito de que a ralé estava na medida do espírito, e não na impostura do vestuário que enganava nos dois sentidos. Já vira senhores que pareciam velhos sábios judaicos, secos e gnomizados na aparência, que estupraram as netas. E já vira janotas de terno que participavam ativamente de salvamentos em desastres naturais. E tal professora, o que a fazia se julgar um ente isolado num panteão genético? O salário de professora? Ah, ela era de uma família da mídia, alto poder financeiro. Lênin falando que o homem do campo era um ser bestializado, que tinha que ser contido pela patrola da história. Ellison no início de seu romance sobre o homem invisível falando da pobreza espiritual profunda, cheia de vícios e crimes, das famílias negras famélicas do sul dos Estados Unidos.

   O metrô parou na estação de C. e o sr. Flibas se firmou atrás das pessoas na porta de saída e desceu. Sabia onde estava mas resolveu não pensar nisso, embora uma presciência de seus passos lhe revelasse que já não tinha nenhum destino, nenhum local para onde ir que configurasse um álibi a seu flaneurismo. Era um personagem de alguma expressão clássica do pensamento comum do homem urbano, da mesma vertente de Raskólnikov ou Stephen Dedalus, apenas que a cidade que o acaso lhe determinara vagar era de uma feiura insubmissa, de uma falta de transcendência impiedosa. Ele requeria para si um pouco de estética para orlar com algum grau de isenção aqueles seus pensamentos sem esperança, aquela sua ausência já avançada de fé. Era algo do qual ele sempre se lamentou os cenários daquele país serem tão organicamente desprovidos de relevância, aquelas pessoas serem tão inexoravelmente presas em seus estágios de entes efetivos da vida prática. Um país que nunca teve uma capitulação séria, envolvida por demais com sua lisergia primordial. O sr. Flibas resolveu prestar atenção por um instante o que seus passos faziam e se direcionou para um sebo de livros usados que ele sabia existir a uns três quarteirões. Na mesma hora voltou seus pensamentos para o assunto que explorava, a sensaboria da raça sub-equatoriana. Por que eram tão manipuláveis, tão afáveis, tão intocáveis pela história? Essa afasia fez com que todos os impulsos não digeridos dos anos ficassem estancados dentro daquele espécime pacífico de olhos esbugalhados. Todas as emanações poderosas dos vícios da história passando diante dele e ele se sentindo intocado apenas porque algum sistema de retenção lhe dava a sensação de anestesiamento.

   Lá estava o pequeno sebo. Uma porta entre dois comércios. De um lado uma corretora de seguros, do outro uma sala de advocacia. O sr. Flibas entrou pela porta envidraçada e deu de cara com o corredor estreito cheio de livros. Duas estantes longilíneas forradas de volumes notavelmente muito velhos. Capas soltas, páginas amarelas. Um cheiro de pó e obscuridade, como se o tempo houvesse se condensado em matéria. Só foi encontrar alguém na sala de entrada, onde alguns homens taciturnos e comprometidos estavam de frente as outras estantes, vasculhando o conteúdo delas. Era um velho armênio que tomava conta do comércio, um homem de barba em ponta e que usava uma bandana de tons africanos, sempre coloridas. Sua intenção era se meter num canto de sombras e continuar embrenhado em pensamentos. Uma janela a dois metros emanava a luz exterior. Estava fechada e o calor ali era confortável, pelo menos para aqueles tipos de homens. Tinha-se que ter alguma propensão oriental a um espírito de religiosidade, o que não envolvia a noção de deus mas sim da agrura da geografia. Como se a percepção dos livros se vinculasse ao o conhecimento de que o princípio daquelas encadernações e daqueles pensamentos registrados em tinta impressa viessem de ambientes cáusticos. Ali dentro a insubmissão do espírito humano era o que estava por detrás daqueles semblantes calmos, conformados, já isentos de grandes planejamentos e grandes esperanças.

  O sr. Flibas catou de uma estante um volume da Ética, de Spinoza. Folheou-o e voltou à primeira página, pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr. Flçibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escrevera os prefácio e as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o mestre. Eles e deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento superior. Isento de dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se separara o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem em maiores do que o infinito em si. Pequenas piadas que engrandeciam a alma do leitor, essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável, sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de exclusivismos humanos em posicionar o homem  como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram Spinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160 livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Spinoza morreu de solidão inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas metafísicos sagrados.

   Espinoza fundou toda uma corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo a que Spinoza atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo consentidos, sem essa vida vicejantes, corrupta, escatológica, visceral e mesquinha, a humanidade não teria do muito além dos limites da caverna. Só um Spinoza fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções, livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar, intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era isso que o velho Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da obsolescência aceita. Spinoza teria adiantado em três séculos o nazismo e a sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.

   Era para confirmar essa sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima, o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas. Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que Cristo falou aos apóstolos. E Spinoza traduziu essa frase dessarroada por nós vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinoza não diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia. Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas, de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os velhos êxitos alienantes.

  O sr. Flibas resolveu comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de são Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor em quatro volumes. Estava livre de Espinoza, o que queria dizer que não tinha muita cosia a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo. Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando alguém aparecer. Olhou em torno e s[o agora viu que havia mais pessoas que teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Haviam duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Spinoza por aquela cena, de duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse para o sono_, mas se ele nãos e sentisse tão fisiologicamente isolado em suas resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda insistisse em durar, o propulsor da vida estria sempre do lado de fora de Spinoza e absolutamente alheio aquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.

   O armênio havia aparecido do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr. Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio de grandes fogueiras para queimar livros.