segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Cary Grant



 A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.

A mulher das fotos era simplesmente deslumbrante. Era perfeita! O rosto dela era tão cheio de detalhes significativos que era impossível ver tudo de uma vez. Era preciso fazer pausas e retornar à cartografia daquele terreno de altíssima octanagem um sem número de vezes. Era como o rosto do Cary Grant, se o Cary Grant fosse uma deusa loira dos olhos azuis. Eu pensei que era muito desprezo por parte da Dani pelo meu lado icognoscível e fiquei pensando se haveria na história matrimonial algum episódio de desavença por ciúme antecipado e criado pelo próprio acusado. Eu mesmo jamais, JAMAIS, deixaria que a Dani chegasse sequer perto de certo ortopedista de queixo quadrado e enfadado ar ibérico que mora na cidade.
Mas tudo bem, vamos lá. Era uma incomodação ter que me haver de novo com já acomodadas áreas de uma antiga vaidade, e em vez de ir de bermudas e chinelas eu me vi com calças compridas novas e uma camisa social fina mas não o suficiente para mostrar premeditação.
Estacionei o carro a uma certa distância, me admoestando por perceber que o fazia para não mostrar à deusa que eu não vinha com um Porsche 911 mas com um carro popular normal. Entrei na marcenaria, me dizendo que era uma atitude estúpida eu andar espichando a incipiente escoliose para ressaltar meus 1,90 metros, e perguntei pela mulher a um dos funcionários, citando o nome da beldade. Fui até onde ele me indicou e entrei no pequeno escritório. Bom dia, eu disse à moça, a senhora M. está? A moça sorriu de modo simpático e respondeu: "Sou eu, em que posso ajudar?"
Comprei a mesa, efetuei o PIX, saí com os ombros relaxados e entrei em casa feliz. A Dani me esperava com seu sorriso sarcástico. Eu parei de frente a ela e suspirei aliviado. Não era um teste, era óbvio, mas ela contava muito com o pouco caso que eu dou às formas a que chegou o autoengano na era cibernética.
"Você já tinha ido lá, né?", eu perguntei.
"Não notou o tanto que a cadeira dela fica distorcida na região da cintura, nas fotos?", a Dani disse, rindo com um ar cheio de faceirice.
"Será que não é um estratagema comercial? A pessoa chega lá apreensiva, e tem o choque de achar alguém igualmente consoladoramente humano?", eu ainda insisti.

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