sábado, 29 de abril de 2023

"Eu também não sei, sinto muito!"


  

   _ Sr. Flibas, é o senhor?_ uma voz denotando vir de alguém muito ocupado falou do outro lado.

 _ Sim, quem fala?

_ Aqui é Salmásio Allende, o detetive particular. Como vai o senhor, sr. Flibas?

 _ Senhor Allende. Não esperava de maneira alguma que o senhor me ligasse. Pensei ter deixado claro da última vez que não temos assunto nenhum em comum para continuar nos falando. Como achou esse número? Aliás, que ingenuidade a minha. Deve ter conseguido através do trabalho que tem em me seguir e pesquisar os detalhes mais insignificantes da minha vida.

_ Não diga isso, senhor Flibas. Nada é insignificante na vida de ninguém. Creio que já mencionei a inclinação que tem se desenvolvido em mim nos últimos anos para escrever minhas memórias profissionais, e o senhor se assombraria em ver quanto material tenho colhido de tantos e tantos clientes.

_ Senhor Allende, tenho certeza de que o senhor sabe o que está dizendo mas não desejo e nem deixo de desejar que leve a diante esse seu plano literário. Isso não me diz respeito e está longe da área de alcance de meus interesses. O que eu reafirmo ao senhor é que nós não temos nada para tratarmos. Isso posto, se o senhor me permitir interromper essa ligação por agora, eu ficaria agradecido.

_ Não, por favor, senhor Flibas, não desligue. Se não for para tratarmos do assunto de interesse entre nós, que pelo menos essa conversa sirva para abrir a possibilidade não de que sejamos amigo, mas, quem sabe, o senhor e eu pudéssemos ao menos nos relacionarmos como uma consultoria. O senhor é a pessoa mais culta que eu tive o privilégio de conhecer. Como eu já disse antes, o sr. Vergue me contou coisas muito profundas a respeito do senhor.

_ Peço que pare com essa bajulação, senhor Allende. Não vamos chegar a lugar nenhum com isso.

_ Não chegaríamos pela ótica do senhor. Ao porto que cheguei os passarinhos cantam e as aves marulham com louvor_ ele disse, falando dissimuladamente para si, em voz um pouco mais baixa, mas que não passava despercebido que o senhor Flibas ouvisse.

  O senhor Flibas ficou estático, ainda em pé, pensando na caçarola com água que colocara na boca do fogão elétrico. Havia aprendido lendo o manual da máquina sobre os detalhes de seu funcionamento e nisso se ocupara por um bom tempo daquela manhã, totalmente absorto. Como o silêncio por parte do detetive continuava, por um momento ele cogitou, assustado, que a ligação houvesse sido interrompida por ele.

   Mas de súbito, a voz intromissa, um tanto indecente, do detetive, retornou:

  _ O senhor precisa me ouvir com atenção. O menestrel urbano tem algo muito interessante para lhe falar.

  O sr. Flibas começou a ter a certeza de que a capacidade de irritar daquele sujeito era de um nível profissional. Talvez ele estivesse usando com ele técnicas cênicas de convencimento, como os detetives dos filmes antigos. Uma bem engendrada ciência para tirar do sério e levar qualquer um a aceitar o grau de irrealidade da situação. Era o tipo de expediente que não tinha outro recursos senão desligar abruptamente o fone, mas uma polidez e uma curiosidade remanescente faziam com que isso fosse impossível para o sr. Flibas.

   O detetive havia pronunciado a frase cantando, como se fosse uma canção infantil. Ele cantava mal, de forma que parecia um velho marinheiro sem jeito tentando parecer divertido.

  _ Vamos dizer que eu tenha tempo agora, coisa de alguns minutos, já que a água que eu coloquei para fazer meu chá já se esfriou, e lhe pergunte o que seria de tão importante para que nós tivéssemos de nos encontrar._ o sr. Flibas disse.

 O homem pareceu se ajeitar na posição em que estava_ novamente a capacidade expressiva de seus menores movimentos era algo que se fazia totalmente assimilável pelo sr. Flibas. E começou a falar em outro tom, se sentindo autorizado a colocar toda sua perícia técnica para fora.

   _ O homem que é objeto de nosso interesse. Sr. Flibas. O nômade cujo nome é Eustáquio Bavilacque. Julgávamos que ele fosse alguém solitário, vindo de uma família destruída, tendo problemas sociais severos vindos do que ao tratados de direitos humanos dizem ser a desigualdade social e bla bla bla. Virou moda afirmar esse álibi antecipado a todo criminoso sem dinheiro hoje em dia. Eu não caio nessa, mas levo em consideração a força retórica desse tipo de discurso. Mas esse sujeito tem uma filha. Isso o senhor na certa não sabia.

    O sr. Flibas sentiu o impacto de ouvir aquele nome, que ele se proibiu de pensar por duas décadas, e por um momento ficou atordoado tentando se lembrar quem era. Ele se acostumara a se dirigir mentalmente ao homem com um sinal gráfico, um pequeno e conciso hieróglifo mental que era inverbalizável mesmo para ele. O ato em volta do homem o havia reduzido a algo animalesco, as tantas palavras para nomeá-lo pareciam impróprias. Se bem que os micróbios tinham nomes longos e intrincados. O detetive, o sr Allende, fazia o sr. Flibas transcender além do ponto de conforto. O sr. Flibas, por inércia, pôr o apartamento estar escuro e a áurea de isolamento ter se mostrado totalmente fantasiosa, resolveu esticar um pouco só a corda.

    _ Uma filha. E essa mulher sabe que virou alvo de um detetive por causa dos pecados do pai?_ sua ironia era uma via de mão dupla, ele sabia, que iria mais autorizar do que coibir que o detetive seguisse em frente naquele assunto delirante.

  _ Disso eu tenho certeza que ela não sabe. Eu cheguei a vê-la com atenção para os mínimos detalhes físicos e alguns traços de seu caráter em uma lanchonete. Uma dessas vezes ela estava na companhia do pai. Mas ela acha válido atribuir parte da responsabilidade pelo pecado do pai ao estado.

  Ele devolvia a artimanha ao senhor Flibas, fingindo às vezes ser detentor de uma pureza ocupacional que o impedia de captar as nuances semânticas da conversa. Talvez ele fosse mais uma personalidade literária das tantas que rondavam Vergue, homens do livro, sujeitos nascidos para o quarto semiescuro, vivendo com seus pensamentos peculiares, tentando driblar suas imperícias no trato com o mundo.

  _ Ela está processando o estado?

 _ O rapaz sofreu uma lesão irreversível na cabeça e não consegue andar como antes de ser preso. Parece que a coisa envolve a antipatia que ele criou entre seus colegas de cela, que lhe deram uma surra violenta. Ele ficou no ambulatório da prisão por dois meses.

  Ele talvez quisesse despertar algum sentimento de desforra no sr. Flibas, que achou que seria uma concordância esperada entre os dois do que ele estaria autorizado a sentir sem peso de consciência.

 _ Eu sinto muito por ela. Pelo que me lembro do processo judicial e do tribunal de júri não havia a informação de que ele tivesse algum membro familiar. O advogado constituído que o estado lhe destinou para a defesa alegou esse fato para solicitar uma redução da pena. Um total abandono do estado, de forma que não se deveria punir com rigor exagerado alguém que desde o início não fazia parte do contrato social.

  _ De toda forma não é conveniente que tenhamos essa conversa pelo telefone. Preste atenção nos ruídos de fundo, está ouvindo?_ ele ficou em silêncio, sem que o sr. Flibas percebesse algum propósito_ linhas cruzadas, conversas interceptadas. Hoje é muito mais fácil fazer isso do que em nossa época, sr. Flibas. Eu também sou uma remanescente dos velhos tempos, dos tempos românticos.

 _ Não estou ouvindo esses ruídos. Quem se importaria em ouvir essa conversa? Algum centro de pesquisas psiquiátricas?

_ Que maravilha o senso de humor aparecendo no senhor! Eu sabia que por detrás dessa estampa altamente formal existia um fino humor britânico. Groucho Marx era inglês? Mas não se adequa. Estaria mais para Evelyn Wright. O senhor com certeza já o leu.

  _ Eu não o tenho em má conta, sr. Allende. Só tento me resguardar de uma dor que há muito aprendi a conviver, e sei que o senhor tem se mostrado sensível o suficiente para perceber isso.

  Ele fez uma pausa considerando as palavras do sr. Flibas.

 _ Isso tudo pode parecer parte da miséria do mundo, sr. Flibas. Eu ia desconsiderar esse trabalho depois da nossa última conversa, mas analisei bem a informação da existência da menina. Eu costumo guardar essas cartas na manga, talvez para usar como conteúdo exclusivo na possibilidade de escrever aquele livro. O senhor já deve ter ouvido sobre o coração terno. Creio que foi Tchecov que disse isso. E há muito coração terno nessa reviravolta de Eustáquio Bavilacqua ter uma filha.

 _ O senhor estava guardando para si essa informação? Não a contou para Vergue?

_ Bem. Eu não poderia escondê-la de Vergue. Sou um dos mais confiáveis e seguros profissionais da cidade, sr. Flibas.

_ Ah, então Vergue sabe.

_ Como não saberia? Ele se deliciou com isso. Ele faltou pular de sua cama e dançar pelo quarto.

_ O senhor comunica pessoalmente suas descobertas para Vergue?

_ Isso é o que me estranha no senhor, que é tão similar ao meu contratante. Ele odeia a comunicação por telefone. Por celular é algo descartável, se chegar a mencionar isso ele é capaz de rasgar o contrato de serviço e chamar uma junta advocatícia para que a outra parte não receba nenhum tipo de acordo.

  O sr. Flibas ficou pensando em Vergue, no pouco tempo que lhe restava e como parecia que aquela alegria esfuziante diante os mexericos vinham de outra pessoa. Não faria parte do jogo, fazê-lo se sentir menos vivo por não compactuar com tal frenetismo diante as ricas fraquezas morais da humanidade expressas nas delícias de sua comédia patética? Allende era cheio de armadilhas, um homem bastante sagaz. Talvez ele devesse vê-lo, o sr. Flibas pensou. Um cérebro desses, nesse canto da sarjeta onde estava, não era para se desperdiçar.

   _ Vou poupar o nosso tempo, sr. Allende. Me diga seu endereço que vou aí numa hora combinada.

  O homem pareceu ter sido pego de surpresa. Não esperava que além do humor aquele idoso de faculdades intelectuais elevadas o suficiente para alimentar certa misantropia também fosse aberto à experimentação. Para um homem que se gabava de conhecer a fundo a natureza humana, ter suas expectativas confrontadas era um presente para o dia.

   _ Eu posso poupar todo esforço para o senhor e aparecer aí mesmo em sua casa hoje ainda. A sua inquilina só volta daqui seis horas e, a propósito, me encontro a exatas três esquinas daí.

 _ O senhor é um tipo bastante pitoresco, sr. Allende. Falava de ruídos, e não ouço nenhum ruído de buzinas e de conversa para alguém que deve estar num orelhão no centro de uma das maiores cidades do mundo.

 _Oh, me fiz entender erroneamente, sr. Flibas_ ele sorriu. Um sorriso cascateado, como sílabas interrompidas e encavaladas, como alguém com uma modéstia suficiente para rir afim de amenizar um elogio que achasse ser desproposital. O sr. Flibas imaginou uma papada se balançando sob a força daquela alacridade._ eu não me encontro numa calçada, à mercê de carros e passantes apressados, sr. Flibas. Quando o senhor me ver pessoalmente vai entender que seria o mais arriscado e contraproducente dos artifícios para alguém do meu ofício. Minha aparência é totalmente conspícua e, infelizmente, eu chamo atenção de longe pelos fatores mais prosaicos. Sou excessivamente alto e minha cara exala prisões e mandatos de prisão. Uma vez um foragido da justiça se entregou para o primeiro policial que se encontrou ao sair de uma boate julgando que eu estivesse em seu encalce, e eu estava num outro caso, de fraude de seguro. Não é uma qualidade boa para se ter. Como o diabo diz, sua maior força vem de sua aparência de bom cordeiro. Eu falo de uma lanchonete. A garçonete daqui é um affair que eu tive há algum tempo, e ela me concede essa regalia no furo de suas desassistência das leis trabalhistas, se é que me entende. A gente vive sobre a opressão do capital mas se diverte o máximo que pode. Os prazeres da falta de altas expectativas.

   Ele sorriu do mesmo modo, como se fosse uma fita gravada que rebobinasse a bel prazer.

  O sr. Flibas cogitou a possibilidade de receber aquele homem incomum no apartamento da sra. Adele. Não havia nada que o proibisse disso, e se Adele visse o detetive iria até sentir um interesse pela absoluta incorreção da coisa. Uma cozinheira não se abstrairia do prazer de mexericos picantes. Ela tinha algo do barbeiro da aldeia, mas era elegantemente dissimulada em controlar as palavras para não soar impertinente.

  O sr. Flibas contorceu o corpo, erguendo-se sobre os solados dos pés, para ver como estava o céu pela janela. A faixa do canto da cortina se balançava levemente devido a uma corrente de ar que entrava pela janela semiaberta, e o escuro que seus olhos se apercebiam agora em toda sua intensidade não podia proceder do horário. Deveria ser três horas da tarde, um pouco mais tarde talvez, e o ar elétrico que se sentia por alguma percepção antropológica naqueles prédios que pareciam grandes grutas agrupadas confirmava que viria chuva.

  _ Estarei esperando pelo senhor. É no terceiro andar._ ele sorriu, desconcertado, e finalizou a conversa_ como se fosse preciso lhe dizer isso, sr. Allende.

  Colocou o fone no gancho não sem antes ouvir o detetive tentar dizer alguma coisa em sua defesa, aquelas considerações modestas cheias de um humor viril defasado e obsoleto. O sr. Flibas ficou parado por alguns segundos, esperando que sua consciência emitisse o sinal de alerta por ter agido com desfaçatez. Não sentiu nada, só um sossego brando que bem podia ser efeito da inesperabilidade daquilo tudo, detetive, o assassino de sua esposa, a filha bastarda reaparecida. Ao organizar o pensamento dessa forma o alerta enfim veio, diminuído, como se acionado em zonas distantes de sua mente. Como uma chama num monte crepuscular longínquo, visto de quilômetros. Era nisso que ele iria entrar, nesse revival de antigas desgraças, esse remoer de traumas à custas, pelo visto, da vontade de Vergue e da admissão de que sua velhice era uma planificação insossa e tediosa, que necessitava do velho teatro de sangue e criminalidade para lhe dar um sentido significativo. Ele bem poderia colar sua presença na de Toledo e preencher suas horas vazias com aquelas preocupações pueris mas carregadas de frescor do velho cunhado de sua inquilina. Ele o admitiria com agradecido prazer em suas engenharias caseiras. Toledo sim sabia envelhecer, tinha a sabedoria de conhecer os limites de sua maturidade para reduzir aquelas escatologias urbanas para suas dimensões particulares. Os cupins da estante de livros do professor de letras tinham o mesmo valor que o novo assassinato da vizinhança. Como era verdadeira as acepções mística sobre os loucos de deus, os santos russos que vagavam em suas absolutas simplicidades por todo império. Toledo lhe parecia um monge de um mosteiro medieval perdido nas pradarias de Katchkanar, com seu pomar e suas orações madrugadinas. Era mais uma das confirmações do grande dispêndio inútil de energia em dedicar a vida para os livros. O entretenimento eterno para distrair-se da distração pela distração. Já não tinha nenhum apetite e pegou a caçarola de cima do fogão jogando a água na pia. Analisou sua estrutura fisiológica maquinalmente, como se fosse um perito observando as reentrâncias de um motor, e não percebeu nenhum traço de fome. Alexandra lhe disse para sempre ficar atento à afasia, que para alguém com a carga de debilidades pela qual passara recentemente seria perigoso cair num quadro de desnutrição. Tentou pensar em algum substituto ligeiro para o chá, querendo ganhar tempo para se trocar e esperar que Allende fosse anunciado por Toledo pelo interfone. Daí se lembrou que, se Toledo lhe batera à porta, era porque o interfone deveria estar novamente quebrado. Abriu o armário embutido e deu de cara com os pratos. De súbito notou que havia esquecido onde estavam as bolachas. Ficou imóvel, os braços espichados, ainda segurando com as mãos os puxadores prateados das portinholas, imergindo sua mente para dentro de si mesma na tentativa de decifrar aquele minúsculo mistério essencial. Estava numa tendência à neurastenia nesses últimos dias, e o Alzheimer era o terror pulsante e onisciente escondido por detrás daquelas suas falhas de localização. Mas Adele guardava bolachas de água e sal e maizenas ali, justamente por serem os locais mais fáceis de se alcançar. A realidade era que não estavam, não iriam aparecer por mágica no simples intento de lhe aliviar, e fechou as portas de uma vez, quase com violência. Como era cansativo o fardo da carne. Talvez o que estivesse ocorrendo fosse uma revolução de seu espírito, tão ocupado em ser levado pela transcendência se sobrepujando ao corpo nos mínimos arrebatamentos dos ornamentos cotidianos, que resultava naquelas surpresas desconcertantes, naqueles mal funcionamentos pelo pouco uso. Daí se lembrou, como se por resposta imediata de um cérebro ofendido, e se inclinou dando dois passos e viu as bolachas no balcão próximo ao chão, pelo vidro transparente perfurado. A coisa toda voltou em sua mente como se fosse a mais poderosa lembrança que tinha, dando-lhe explicações lógicas de que ali era o melhor local para que as bolachas não se oxidassem e se tornassem murchas.

   Pegou um pacote aberto de biscoitos de maisena, cuja ponta estava amarrada pela fita vermelha adesiva retirada quando aberta, e devorou cinco unidades. Era uma enganação de seu corpo a aparente falta de fome, pois foi colocar aquelas linguetas de farinha compactada na boca ele foi tomado por uma compulsão que revelava uma fome vigorosa. Fechou os olhos, com o pacote nas mãos, mastigando os biscoitos que estalavam e emitiam sons de uma secura quebradiça agradáveis de se ouvir e sentir, sentindo o prazer que elas lhe davam. Abriu a geladeira, indo contra sua indisposição a bebidas geladas no café da manhã, mas enfiou seu extenso braço até o fundo da prateleira média e pegou uma garrafa pela metade de leite. Como só tinha uma pequena quantidade, duzentos mililitros talvez, ele sorveu o leite pelo bico da garrafa, dois fios descendo rápida e inesperadamente pelas laterais de seu queixo e caindo numa velocidade selvagem pela blusa do pijama. Estava fresco ainda, o que lhe causou surpresa pois ele mesmo havia aberto a garrafa e tomado dela há uns bons quatro dias, o que seria natural que o paladar do líquido estivesse comprometido. Seria parte de seu rol de doenças se aquele deleite vindo do leite fosse imaginário, as papilas gustativas enlouquecidas produzindo reações que não comportavam a ativação apropriada gerada pelo material biológico putrefato e em decomposição, e o sr. Flibas deixava essas suspeitas penetrarem nele como parte da incorreção em que se lançara de diversas e variadas maneiras desde que acordou.

    Enxaguou a garrafa na torneira da pia, balançou com determinação a água no interior para que todos os resíduos translúcidos fossem colhidos pelo verte do pequeno furacão, e despejou o líquido remanescente no ralo. Fez mais duas vezes o mesmo procedimento, usando um fio do detergente que retirou do suporte de plástico ao lado da pia, e depois enxugou a garrafa e a colocou com cuidado e ordem no aparador já cheio de pratos e copos. Provavelmente a garrafa era descartável e melhor teria sido se a tivesse jogado no cesto de lixo na porta dos fundos da cozinha, mas ficou um longo tempo apreciando a garrafa deitada junto às colheres e garfos, ensombrada pelo exército em descanso dos copos de cabeça para baixo em seus ganchos. Era uma bela garrafa, ele pensou, e um enternecimento poderoso vindo de raízes obscuras o fez encher os olhos de lágrimas. Alguma coisa muito potente acabara de passar no substrato de suas emoções naquele momento e ele a respeitou, aceitando seu lugar de revelação. Talvez dissesse respeito às tantas garrafas de leite que seus olhos emancipados pela leveza de tantas manhãs de divagações haviam apreendido, e por um momento o sr. Flibas achou uma síntese perfeita, a mais preciosa das invocações do pensamento: tudo o que sobrava eram invólucros de calor sensorial. Estava tratando sobre assuntos terríveis, cheios de incorreções malucas e distorções, e o sentido disso era para que o calor sensorial de experiências primordiais fossem resgatadas, lhe voltassem como iluminações repentinas.

    Ele foi para o quarto, olhando por impulso o inútil relógio de ponteiros sem pilha parado nas dez para as dez, e retirou o pijama, descendo as calças com as pernas. Entrou debaixo do chuveiro do quarto e ligou a ducha, se colocando bem no centro de sua boca de múltiplos furos. Nunca urinava no piso do banheiro, para que a água do chuveiro debandasse a urina pelo ralo. Uma antiga pressuposição vinda dos tempos de casado indicava não ser uma atitude respeitável do ponto de vista higiênico, e sempre satisfazia essas exigências biológicas no vaso. Desse modo, ainda com o corpo por sob a ducha, se declinou um pouco para o lado até alcançar o vaso e descarregou um jato de urina para o interior da porcelana. Deu descarga antes de terminar o procedimento, admitindo a crença fajuta e autocontestada de que assim a bexiga se obrigava a se esvaziar mais rapidamente, e depois que acabou de tomar o banho, lavando os cabelos com shampoo e condicionador e esfregando as costas com uma bucha orgânica, desligou o chuveiro e escovou os dentes, olhando-se pelo espelho. Esfregou a toalha para desembaçar o espelho e se viu, os cabelos molhados, o ar de desamparo mortuário do seu rosto devolvendo-lhe o olhar. Com a voz baixa, um pouco acima do sussurro, respondeu à imagem: “eu também não sei, sinto muito”. Abriu a porta que ficava por detrás do espelho e guardou a escova de dentes e o creme dental. De todo modo era motivo de sorte que não tivesse um espelho de corpo inteiro, não saberia qual resposta dar. Voltou para o quarto depois de ter se enxugado e pendurado a toalha no cilindro de plástico fixado na parede. Se comportava como se tivesse um encontro sério, o que ele delimitava o contorno do conceito sem ter material memorialístico para abalizá-lo. A suspensão de sentido era moldável à ideia de um encontro profissional, pois não era amigo do sr. Allende. Balançou a cabeça e sentiu o sorriso amargo daquela fase da ironia que ia além da simples constatação de que atendia a alguns passos de uma comédia abstrata que, de alguma forma, satisfazia-o como único observador. Até mesmo essa maneira de se referendar no centro da questão perdera muito de sentido com a velhice, pois ele não tinha um ouvinte hipotético para quem contar. Ele simulava entender a graça um tanto chocha de que a história não era isenta de certa relevância se a contasse num jantar, ou numa reunião do clube do livro, ou, quem sabe, numa sessão de terapia (o terapeuta tendo angariado uma intimidade após longos anos de esforços mútuos de entendimento), mas não lhe restara nenhuma outro amigo. Não um amigo com quem pudesse dividir a total falta de razoabilidade que compreenderia com simpatia aquela insensatez.

     O sr. Flibas colocou a roupa íntima, vestiu as calças compridas de brim. Vestiu uma camisa branca de botão e um casaco de feltro leve. Penteou os cabelos, usando uma escova de mão que tinha uma alça compacta por dentro da qual enfiou a mão. Foi para a sala e esperou. Lembrou, um tanto encabulado, que não havia fixado um horário para o homem chegar, o que achou ridículo. Isso o colocava à mercê do sujeito de uma forma que pareceu ser mais uma das astúcias maquiavélicas dele para se sobrepor. Não era mais hora de sentir ódio e se punir por essa fraqueza, mas sabia que sua falta de tato nesse joguinho com um homem como o detetive ainda traria um comportamento melindrado e auto defensivo de sua parte. E Allende é quem, para piorar a situação, lhe parecia ter maior traquejo para colocar panos frios e socializar o ambiente. Não estava querendo ler, cruzando as mãos na altura do rosto. Ficou um longo momento assim, mergulhado em reflexões, até que, com um suspiro, pegou o jornal soviético e ficou folheando, sem ânimo.

   Estava quase se deixando render por uma crítica cinematográfica sobre um filme indonésio_ sobre uma mãe camponesa que luta pela sobrevivência do filho sem pai em uma sociedade machista_, quando foi retirado de volta à realidade com o som de passos vindos da porta do apartamento. Dobrou o jornal, pôs os óculos no rosto e ficou com a boca fechada, relaxada, antecipando sons presumíveis que deveriam continuar o movimento do corredor de fora. Enfim bateram na porta, um toque decidido mas não exorbitante. Se levantou a andou com os passos firmes. Abriu a porta e lá estava o sr. Amásio Allende.

   Ele lhe sorriu, meio inclinado, e se desvencilhou a mão direita do guarda-chuva que lhe custava certo esforço em operar.

   _ Oh, Oh, eis o homem culto! Deixe-me observá-lo para ver com detalhes como ele é. Brincadeiras à parte, é um prazer finalmente te conhecer, sr. Flibas.

  O sr. Flibas pegou a grande mão dele na sua e sentiu um aperto cortês, que ele de imediato identificou como uma estratégia calculada de estender suas credenciais.

 _ Sou eu, sr. Allende. Queira entrar, por favor.

 O rosto dele era grande, imponente, espichado para baixo. Parecia um rosto inglês, desenhado usando uma régua genética de antigos provincianos insularmente isolados com suas noções servis mas participativas da aristocracia. Um rosto que denunciava sua inclinação à ordem, ao fuxico e à manufatura artesã. Indicava que na estratificação profissional a que rendia fidelidade ele poderia ser com igual proficiência um barbeiro, um açougueiro, um sapateiro ou um jardineiro. O fato de ter sido um detetive, porém, parecia não ter sido aleatório, porque nele havia uma confiabilidade que o teria tornado um destaque em todas as áreas anunciadas, o que evidenciava ao sr. Flibas que não se tratava pois de um mero improvisador. Era um homem deveras um tanto alto, como ele mesmo havia alertado pelo telefone, mas talvez bem menos factível de ser evidenciado no meio de uma multidão quanto pretendia. Seus olhos tinham o recurso inconsciente de serem generosos e mansos, o que não eram atributos que chamassem a atenção do vulgo por muito tempo. Talvez ao ter querido passar a impressão de certa imponência ao sr. Flibas houvesse nele uma vaidade em driblar o selo de barbeiro de aldeia que sabia possuir e talvez colocasse em dúvida a sagacidade que se espera de um homem que transita no submundo do crime. Talvez sua aparência dúbia de homem grande mas com ar prosaico atendesse à verdade de que fosse apenas um detetive de temas irrisórios, traições de esposas cansadas, perseguições na surdina de antigos sentenciados cujo único motivo fosse atender à curiosidade de idosos entediados. Idosos ricos entediados, o sr. Flibas se corrigiu, pensando em Vergue. O detetive tinha um bigode muito fino, mal composto, com fios grossos entortados e com as beiradas de baixo formando um cômico montinho com falhas. Ele entrou e ficou parado à porta, sem graça, ainda repetindo o risinho cortês que não escondia que avaliava avidamente o apartamento. Ele estava tão embrenhado em não disfarçar que o ambiente lhe provocava uma profunda curiosidade que virava o pescoço, arregalava os olhos e depois se virava para o outro lado, como para obter alguma comprovação de uma suspeita. Vendo que o sr. Flibas o olhava, ele se calou, ainda com o sorriso na boca (a ponta da língua se pronunciando ligeiramente como se tivesse um tique nervoso de a mastigar em momentos dispersivos).

  _ Bem, bem, bem, hehehe_ ele estacou os braços.

 _ Era como o senhor havia suposto?

 _ Ah, o apartamento? Eu não imaginava que fosse tão soturno. A sua inquilina me parece alguém com um senso feminil de organização muito desenvolvido, de modo que esse ar circunspecto, que remete muito mais ao senhor do que a ela, me cause certo assombro.

  O sr. Flibas seguiu em frente para levá-lo ao sofá na sala, não querendo demonstrar que caía no conto da carochinha de que ele era um gigante ingênuo que não percebia uma caçoada. Não lhe pegou o casaco amarelo que usava e que estava molhado, ainda que não muito, não o suficiente, pelo menos, para que ele se preocupasse com o tapete e os móveis. Allende não parecia ser susceptível a esses cuidados profiláticos, nesse ponto ele parecia ter uma distração sincera. Pensando assim, o sr. Flibas achou por bem se virar e pedir seu casaco, para evitar danos maiores, ao que o homem o passou (não sem antes fingir surpresa mais uma vez, uma tática que servia como um agradecimento). Não haviam porta casacos no apartamento, e o sr. Flibas levou a peça até a mesa e a colocou no encosto de uma cadeira. De todo modo reconhecia que era quase tão displicente com esses detalhes caseiros quanto aquele gigante, o que o sr. Flibas ficou consternado, lamentando não ter a percepção certa para ver se estava cometendo algum deslize que chamaria a atenção de sua inquilina. Bom, o que fazer, deixa pra lá, ele deu de ombros e voltou para a sala.

    O homem já havia se sentado. Sem o casaco sua barriga era visível, pronunciada mas não patologicamente chamativa. Não parecia que vivia para os prazeres da mesa, mas ser o efeito colateral de uma vida ocupada, um cotidiano do monastério da profissão que o fazia desleixado com a dieta. Um regime alimentar fomentado em bares e sanduíches comidos dentro do carro. Quando viu o sr. Flibas entrando na sala ele deu outro de seus sorrisos, havia um grande cabedal deles, pelo que o sr. Flibas suspeitava, cada um querendo emitir partes peculiares do discurso. O sr. Flibas se sentou de frente a ele e o observou, com as mãos unidas.

  _ Bem, aqui está o senhor._ o sr. Flibas disse.

 O homem parou de sorrir, deu uma volta de olhos mais uma vez pelo apartamento, como se tivesse em um local cuja excepcionalidade faltava na percepção acostumada do sr. Flibas, e olhando novamente seu anfitrião, ele disse:

  _ É um ambiente fabuloso, sr. Flibas! Confesso ao senhor que me escapava a intuição de como seria. Eu sou amante de habitats íntimos, principalmente aqueles que ficam intocados à mercê dos mesmos moradores por anos, como este. Impregna como o quê a personalidade dos que vivem nele de modos que parecem extensões, como novos braços e pernas. Não estou me expressando bem e não queria manter essa imagem equivocada cheia de fisiologia. É mais algo puramente espiritual.

  O sr. Flibas o olhava impressionado, mas continha qualquer emissão sensorial. Não eram matérias a serem trabalhadas instantaneamente aquilo que o homem dizia. No fundo de sua canastrice havia um conteúdo legítimo, não sabia ainda se derivado de algum poder de percepção saudável da mente.

 Como o sujeito ficou calado em evidente espera de que ele lhe completasse com alguma resposta aquela observação, o sr. Flibas disse:

 _ Esses traços de personalidade são puramente de minha inquilina, a sra. Adele_ olhou em volta por inércia, atendendo ao que os dois esperavam que se fizesse_ Acho interessante que o senhor tenha tantos dons de um bom observador. Mas, se não for desrespeitoso, gostaria que iniciássemos o que estamos aqui para conversar.

    Sem nenhuma outra solução de continuidade, dispensando trejeitos, o sr. Allende abriu o grande envelope branco que trazia ao entrar e retirou documentos dele. Não havia mesinha de centro naquela disposição do prolongamento da personalidade da sra. Adele, o que o sr. Flibas percebia ser uma falta_ ou resultado do fato de que ela não recebia visitas que lhe traziam dossiês de vidas alheias. As folhas que saíam como da cartola de um mágico, lisas e foscas, um momento de cada vez captado por aquele homem cuja única ocupação era esperar e colher pelas beiradas os pequenos despojos de um conjunto de crimes maiores, aquilo que as pessoas que eram seu alvo deixavam sobressair pela distração ou pelo automatismo.

   _ Eu gostaria que me explicasse primeiro o que o senhor vem descobrindo sobre o rapaz. Mostrar registros sem fazer esse apodo não melhorará meu parco entendimento a respeito.

 _ Pois não. O senhor está certo._ ele procurou em torno algum local onde deixar os papéis, mas não achou. Segurou-os desajeitadamente por sobre o peito, olhando-o como uma criança crescida que tem brinquedos importantes que não podem cair na sensaboria do mundo dos adultos.

 _ Em nossa conversa eu disse ao senhor que ele tem uma filha. A moça tem 19 anos. Foi concebida na cadeia, no período de vinte anos que ele ficou preso. O senhor sabe, talvez, que ele cometeu outro assassinato no presídio. Por este, ele foi condenado e sua pena se elevou em mais nove anos.

    _ Eu não acompanho a vida dele, sr. Allende. Por algumas vezes Vergue queria me informar sobre o que acontecia com ele nesses anos, baseado em sua aplicação sempre para mim misteriosa e incompreensível por se manter a par de tais coisas, mas eu reiterava minha total falta de interesse no assunto. Como o senhor conhece Vergue, sabe que nada o demove a realizar suas obsessões, de forma que ele me contava mesmo assim. Não adianta muito se zangar com alguém que é acometido desde de sempre por compulsões peculiares. Vergue não é bem um maníaco, mas alguém movido por hobbies íntimos específicos não pautados pela conveniência.

  _ O sr. Vergue é um homem que conserva dentro de si uma criança que nunca cresceu. Ele tem essa chama científica que está por detrás dos grandes avanços da humanidade. O que parece ao senhor um comportamento intransigente, na verdade é a teimosia muitas vezes não politicamente correta dos ímpetos geniais.

  Ele falava sério agora. Seus olhos ficavam cheios de uma severidade trágica. Era um mal ator quando tinha que demonstrar dramaticidade menos rasa do que o âmbito de suas ações.

  _ Bom, deixemos Vergue de lado por um momento. Queira continuar sua exposição, por favor.

  Ele se achegou para frente na poltrona, de modos que os intervalos entre os botões em sua camisa deixavam entrever os pelos de sua barriga. Não tinha retirado o chapéu, uma peça que lembrava o que os atores que interpretavam Sherlock Holmes usavam nos filmes, embora isso devesse ser um elemento fortuito pois ele parecia a atender outros exemplos menos cerebrais. Era um homem de ação, de se deslocar por vários pontos da cidade. Revelava um entusiasmo difícil de disfarçar por ter vindo ali.

  _ A menina se chama Janete, e cursa História na universidade federal. É uma espécie de militante de direitos humanos, uma persona dos livros e das causas dos degradados e minorias, se é que os degradados podem ser vistos como minorias nesse mundo, não é, sr. Flibas. Ela obtêm as mais altas notas. Isso eu não soube por nenhum técnica de investigação mais aprimorada, mas por as notas das provas serem fixadas em murais específicos no prédio da faculdade. Ela tem uma espécie de veneração pelo pai. É estranho que uma estudante de elevados dons críticos tenha esse tipo de abstração suficiente para não cogitar o assassino que a engendrou. Se eu fosse leviano explicaria tal coisa no fato dela ser um ente do sistema prisional, seus genes terem sido concebidos numa cela apertada com vários outros casais copulando ao mesmo tempo. Mas isso não é nem um pouco científico_ ele ergueu seus olhos de ternura canina para o sr. Flibas, uma prega palpebral semifechava o ângulo que os olhos formavam com o nariz realçando algo de buldogue amistoso_ e não falo isso senão como elemento para que o senhor facilite a composição do enredo em sua mente aprimorada, sr. Flibas. Uma menina filha de um assassino reincidente, e de uma mãe adolescente cujo grau de desabrigo familiar e deficiência educacional a fez se apaixonar por um criminoso a ponto de se casar com ele enquanto esteva preso. É uma desrazão tratar o amor de uma filha como um simples componente genético, o pai queiramos ou não, não parece ser um mal pai, mas a fúria que ela demonstra contra o sistema é uma característica nutrida nesse meio.

   _ A mãe dessa menina, o que aconteceu com ela?

  _ Ela está viva. Mora com outro homem, um dono de um restaurante dez anos mais velho e que não quer saber de nada desse submundo. Janete é independente. Trabalha numa loja de roupas durante o dia e cursa o curso de noite. Ela e a mãe se dão muito pouco, em encontros esporádicos. Mas não há nenhuma rixa entre as duas. A garota teve uma educação católica clássica nesse aspecto, embora só na estrutura patriarcal de respeito da grande figura patriarcal que governa a família.

  _ O senhor está falando de heranças genéticas, mas pelo visto essa menina está desenvolvendo qualidades que não haviam no pai.

 _ É justo esse o ponto chave da questão, sr. Flibas. Olhando-a à distância, como me limitei a fazer durante os primeiros meses, ela correspondia com uma precisão suspeita a todas as expectativas da visão progressista sobre os benefícios redentoras da educação. Imagine sair da linha esperada da criminalidade, ou das paixões baixas que levaram seu genitor à criminalidade, e antes dos vinte anos ter a potência intelectual de uma...bem, não tenho a erudição do senhor e me falta algum nome da intelectualidade feminina. Mas eu queria completar essa imagem com o nome daquela escritora judia,  a que falou sobre o mal ser coisa de gente comum submetida a lavagem cerebral, e não uma característica pré definida.

 _ Creio que o senhor está se referindo à Hannah Arendt, que cunhou o termo “a banalidade do mal”.

  O detetive o olhou com os olhos concentrados, prenhes de uma simulada admiração. Na hora o sr. Flibas percebeu que havia caído em outras das estratégias de relações públicas dele. O sr. Flibas parecia estar ali em parte para atender a algum arquétipo que aquele homem alto e inteligentemente maleável havia feito para moldar a realidade dentro do factoide que criara sobre o assassino redimido e sua filha anarquista. Era ao mesmo tempo de uma ingenuidade desconfortante e de uma astúcia da qual o detetive angariava alguns pontos para sua premissa técnica. Queria passar para si mesmo, mais uma vez, numa eterna alimentação de sua autoestima, que era altamente articulado e com certo domínio sobre o ambiente, e tinha algo que deveria deixar o sr. Flibas congratulado por tais joguinhos no modo como o sujeito se sentia realizado por ser ele, o sr. Flibas, um homem de elevados dons intelectuais.

  _ Isso, Hannah Arendt, aquela senhora com o cigarro que mantinha intercurso com o Heidegger e seguiu passo a passo o julgamento do Heichmann.

 _ Olha que prodigiosa a sua memória, sr. Adelle. Um nome apenas e toda uma sequência de fatos é acionada!

  Ele sorriu ao ver que havia sido pego em seu estratagema, mas emitira seu sorriso de menino faceiro. Talvez fosse parte também da jogada a hora certa em mostrar sua modéstia.

 _ Eu li o livro dela, devo confessar. É que eu fico um tanto desconcertado diante de um homem como o senhor, sr. Flibas. É um livro interessantíssimo. Creio que todo pai deveria passar esse livro para que os filhos lessem antes de completarem 13 anos, que é a idade onde o cérebro está ainda bem receptivo mas começa a dar seus primeiros passos à rigidez da aceitação e do comportamento repetitivo. Eu não tenho filhos, mas se os tivesse passaria esse livro e O Castelo, de Kafka, como instrumentos indispensáveis para a formação do caráter.

   O sr. Flibas cogitou haver uma lógica íntima que sustentava essas duas escolhas, e sabia que se tocasse no assunto estaria mais uma vez cedendo às intenções dele. Como um estudante de livros e um interessado na condição humana, era uma tentação muito grande saber o que um homem como aquele teria a dizer. Mas antes que ele abrisse a boca, o detetive se antecipara.

  _ Eichmann, após ser sequestrado pelo Mossad e quando estava no corredor da morte em Nuremberg, recusou um livro que lhe foi ofertado por um dos carcereiros. Ele o devolveu por atentar contra os bons costumes e ao fato dele ser casado e pai. Era o Lolita, aquele romance pornógrafo tão cheio de refinamento e elevação moral. Já notou que os únicos livros sobre sexo que importam sobre os que tratam de tudo, menos de sexo? Tratam de doenças e compulsões, mas não sobre essa sensação soberana de felicidade e autoestima infinita que o verdadeiro sexo dado por deus promove. Mas a questão é que a alta literatura era algo muito impertinente para esse senhor fino e condoído do exemplo moral para seus filhos que organizou a estrutura dos campos de concentração e da solução final.

  _ Eichmann, pelo que me lembro desse livro, se achava superior a seus comandados por, durante toda a vida, ter lido dois livros, enquanto eles não haviam lido livro algum. E esses dois eram dentro do estilo de aventuras exemplares para jovens patriotas, como os livros de Kay May que Hitler era louco por eles.

  _ Isso, senhor Flibas! Meu Deus, como é um presente altamente vantajoso poder falar com o senhor. A gente tem sempre uma resposta sintonizada com as mais altas expectativas, sempre podemos esperar por uma resposta atenta e circunstancial. Nada de assuntos sobre carros, mulheres e programas estúpidos de televisão.

_ Mas o senhor estava dizendo sobre Janete. O senhor a está relacionando à Hannah Arendt.

_ Foi apenas uma maneira de fazer uma introdução auspiciosa ao assunto. Mas eu não a subestimo, nem um pouco, senhor Flibas. Eu trouxe aqui alguns artigos que ela escreveu para o jornal da faculdade, e a garota está francamente incendiada.

  Ele procurou entre os papéis e, erguendo as sobrancelhas e molhando as pontas dos dedos, puxou algumas folhas de cópias de xerox grampeadas no canto superior. O sr. Flibas leu uma tarja adesiva amarela grudada em que estava escrito o seu nome.

 _ É para o senhor. São três artigos. Um deles ela trata do pai, de forma velada e culta, em que só iniciados como eu e o senhor poderemos reconhecer a estratégia de falar de forma abrangente sobre as injustiças do sistema carcerário e a realidade vivida pelo pai. Os outros artigos são sobre temas pontuais, uma sobre racismo em grandes empresas e a outra sobre a real emancipação do poder feminino que é toldado pelos grandes esquemas de marqueting contrário das mídias dos países periféricos.

  O sr. Flibas estendeu o braço e pegou as páginas. Não seria muito diferente do material que lia avidamente na Sentinela Progressista. Ele observou as folhas e a tintura estava fraca, com alguns pontos de impressão tênues e mal visíveis. Abriu as folhas debaixo e viu que problema estava na máquina que a reproduzira, que deveria ser do escritório do detetive. Mas estavam num limite de suficiência que não atrapalharia o resultado, embora exigissem uma certa aplicação da parte dele. Para um bibliotecário aposentado, era um aspecto que não causava muitos problemas.

  _ Ela é como dinamite. Escreve muito bem. Tem um talento enorme, embora se soubesse converter boa parte de sua indignação em estratégias eloquentes evitaria o tom enfadonho típico da adolescência. Por mais que tenha sofrido, ela acredita piamente na capacidade do cidadão engajado em mudar o mundo. É de partir o coração, senhor Flibas.

   O sr. Flibas lia por alto os títulos dos artigos. Não confiava muito em excessos de indignação e o detetive conceituava bem usando o termo enfadonho. Os jovens tinham uma percepção biologicamente distorcida sobre a longevidade da vida e muitas vezes suplantavam a coerência temporal das apostas. Era uma impressão equivocada, promovida por um instinto muito bem arraigado da continuação da espécie, de imortalidade. Não conseguia mais se enternecer com esses inúteis dispêndios de energia, essa balbúrdia mascarada de ideologia, que todas as vezes descambavam em extenuações profundas. Se o experimento social que Vergue queria propor com isso tudo_ porque era certo que ele sabia da existência dessa garota_, era que a escuridão do conformismo lipídico que engloba tudo e todos não poderia decretar suas vitórias de forma tão incontestável. Ele gostaria de ver o rosto dessa menina, diferir a independência e a herança do assassino no contorno de seu rosto_ alguma mácula era deveria ter da intransigente seriedade dele no tribunal, sua empáfia da invisibilidade, sua vontade proclamada pelos músculos faciais _aquela rede ultra calibrada de violência e temor_ de que desprezava profundamente tudo em volta. No assassino aquela fúria havia resultado num ato bárbaro sem razão alguma, uma admoestação vazia contra a materialização errada da padronização que tanto o afligia. Naquela moça, algo substancial havia ocorrido na grandeza do mistério evolutivo em curta escala insuflando um prisma de propósito. O sr. Flibas não podia negar que enfim Vergue havia composto um enredo interessante, hipnoticamente estimulante a um nível que ele não podia mais dispensar.

   Ele ergueu os olhos, saindo de suas divagações, e viu o detetive lhe examinando com o máximo de atenção, como se estivesse suspeitando dos intrínsecos pensamentos passando por sua cabeça. O homem não temia o silêncio, e quando isso acontecia num servidor da lei_ mesmo um mambembe investigador de divórcios sem altas credenciais como ele_ era algo que fazia aflorar um sentimento de apreensão.

  O senhor Flibas se limitou a devolver o olhar, resignado em não ficar na defensiva. O sujeito sabia bem impregnar de tensão as diversas linhas discursivas, como um bom narrador polifônico.

  _ Creio que a história sobre a moça não terminou. Como a história de Kafka, o enigma do que está no castelo é a parte fundamental do que traz o senhor aqui._ o sr. Flibas disse.

 _ Lamentavelmente isso é verdade, senhor Flibas. A parte principal o senhor ainda não sabe.

_ Pois sou todo ouvidos, sr. Allende.

  O sr. Allende se mexeu na poltrona, achegando seu corpo para a frente. O que tinha por dizer parecia ter um peso circunstancial alto, e ele queria que as palavras recebessem a delicadeza possível. Era algo curioso e nitidamente empolgante, visto seu ar disfarçado de deleite, autorizado a não mais ter que ostentar um falso ar de abjeção. Sua barriga se encolheu ou foi escondida pelos panos de um número a mais de sua camisa que sobressaiam na área da cintura, e o branco lhe dava um ar higiênico, o que deveria ter a ver com a impressão que o senhor Flibas tinha_ um pré-conceito_ de que os artesãos dedicados tem uma assepsia natural, como se a dedicação lhes conferisse uma incorporeidade.

  _ Essa menina. Hum-hum..., essa moça, é o termo. Entrou numa grande roubada. É uma dessas histórias a quais podemos definir como zeigeist, como vindas do espírito do século. Tem a ver com cibernética, correção política, apologia à liberdade de gêneros, etc. Tantas e tantas coisas que afloram em ritmo bastante violento nessa Babel em que todo mundo é o algoz e o elogiador de todo mundo.

 _ Sou todo ouvidos, sr. Allende. Continue, por favor.

 _ Um colega de aula de Janete, chamado Nestor Tostes, foi injuriado por uma professora em sala de aula. A mulher é uma nazista sem tirar nem pôr, uma dessas criaturas sórdidas que algum evento que deve ser estudado retirou de debaixo da pedra onde viveu escondida por décadas. Um desses seres cheios de rancor e esbravejando direito por legitimidade que os tempos atuais tem feito surgir. Os que ficaram silenciados nas épocas passadas, quando eu e o senhor éramos homens de meia idade usufruindo da última ingenuidade reinante, que se lamuriavam diante as injustiças e rejeições pelas quais passavam. É estranho que na faculdade tenha muitos desses tipos, mais do que a análise lógica sobre a inclinação desses ambientes para a esquerda crítica leva a pensar. Essa professora é uma senhora que ela mesma teria motivos para não cair tão achincalhadamente contra as minorias representativas. Ela tem, bem, como vou dizer, não quero incorrer em nenhum dos deméritos que estou criticando, mas não tem outra forma de dizer senão com a palavra direta. Ela sofre de obesidade. Ela tem uma rotundez corpórea além de qualquer eufemismo. Mesmo assim, numa sala de aula, durante uma discussão que tomou proporções descontroladas, ela perguntou a esse rapaz o que ele acharia se os “dos tipos dele” começassem a ser mortos em via pública. É algo realmente espantoso de se ouvir, ainda mais em uma sala de aula. Os tipos dele ela queria se referir aos trejeitos do rapaz, que o vulgo costuma chamar de afeminados. Que conversa espantosa essa nossa, aparece com todo o poder os limites do idioma.

  _ A mulher inquiriu o aluno sobre se ele se sentiria confortável se o suposto nicho sexual a que ele pertence sofresse um pogrom?_ o sr. Flibas perguntou espantado.

_ Com palavras muito mais claras do que as que poderíamos usar sob a égide de nosso senso moral, sr. Flibas. Perguntou na cara dura.

_ Eu não tenho requintes de exclusividade em achar que estou sendo poupado de uma atualização absolutamente distorcida das forças da história, sr. Allende, mas isso é uma amostragem pura demais do que minha idade me agracia em evitar. Meu Deus! Essa jovem, Janete, sair em defesa do rapaz é algo obrigatório. Ela tem um grande mérito por não calar, por não se recolher em um canto de observador omisso das derrocadas do mundo, mas ela está provando apenas que é alguém digno que respeita o contrato social.

 _ É o que escreveu aquele poeta alemão, levaram meu vizinho, mas como eu não gosto do meu vizinho, eu não me importei, etc, etc, até que chegaram nele e o levaram e qualquer reação dele já estava atrasada demais. A professora estava usando crachás e adesivos do candidato da extrema direita à presidência, o que é terminantemente proibido em uma repartição pública. Seu objetivo era afrontar, já que toda a classe segue o que ela conceitua como doutrinação da esquerda. Faltou por pouco ela estender o braço e fazer a saudação nazista. Janete se levantou e começou a falar sobre os direitos humanos, a comissão de Genebra, sobre Chomsky, o mundo líquido, o fim das afetividades, a menina é uma fera e sabe conversar como ninguém. Ela apontava o dedo e gritava, mas sem perder a firmeza da voz, apenas para que a mulher gorda perdesse um pouco da progenitura do discurso e falasse menos bobagens. O rapaz, Manuel Tostes, não conseguiu falar nada, estava em choque, encolhido num canto da sala.

 _ Como senhor sabe desses pormenores, sr. Allende? Tem informantes dentro da faculdade também?

  O detetive, ainda sentado com o corpo projetado para a frente, deixando um largo espaço entre suas costas e o escoro da poltrona, olhou para os dois lados, como se tivesse esquecido onde estava, e continuou:

_ Eu tenho o vídeo feito por um aluno, sr. Flibas. Eu o obtive com o dinheiro do sr. Vergue. Não quero entrar nessa parte da história agora, mas o senhor não vai ficar sem conhecer tudo. Apenas me eximo de tratar desse quesito agora por uma questão de respeitar a linearidade da narrativa. Só antecipo que ninguém tem esse vídeo, não está nas redes sociais, está bem guardado em meus arquivos e segurado num site privado de memórias digitais. A professora não se calou. Ela chamou Janete de sapatão, de experimento sociológico de uma filha bastarda de um criminoso que comprova a teoria de que a prole de desvirtuados geram desvirtuados. Essa foi a gota d’água para a Janete, que jogou um livro na cabeça da professora. O livro nocauteou a mulher, que ficou com um galo horrível e com um corte na bochecha. Ao cair ela quicou o rosto no chão e por pouco não teve uma lesão craniana. Janete foi segurada para não desferir chutes na mulher, segurada com veemência por três alunos. Essa parte da gravação começa a perder o foco devido ao caos implantado por esse final inesperado. O diretor e os bedéis entraram na sala e a gravação acabou por aí. A professora foi levada para a sala da diretoria e quando acordou reivindicou a presença da polícia para fazer um inquérito. Ela disse que os adesivos haviam sido grudados nela quando ela estava desacordada, no intuito de cavar uma demissão.

  _ Isso é muito grave. Janete usou de boas intenções cívicas, mas uma vez caído na violência ela perdeu qualquer margem para defesa.

_ Há uma questão que podemos classificar como de uma má escolha exegética para experimentar a força de um livro na prática. O volume que Janete acertou a professora é uma edição traduzida da Plêiade de Leviatã, com oitocentas páginas em capa dura e de quase cinco quilos. Se a sorte tivesse montado esse incidente duas semanas atrás, quando eles estudavam o Contrato Social, as possibilidades de se acertar um livro três vezes menos volumoso seriam menores. Se a mulher não tivesse negado a cabeça num desvio instintivo para o lado, o velho Hobbes mesmo assim não teria feito grande estrago. O lobo do homem acarreta uma áurea involuntária de selvageria maior que o romantismo sem violência de todo homem nasce bom.

   O sr. Flibas sorriu diante a pilhéria. Era um insight realmente primoroso.

_ O senhor consegue ver toda a graça por detrás dessas bravatas ferozes. Não deixa de estar certo, pois todo mal é ridículo. Essa cena seria pavorosa em um prostíbulo, quanto mais em um local teoricamente destinado ao fomento do saber e da cultura. Mas a diretoria acreditou na mulher, diante tantas testemunhas?

_ Não só acreditou como abriu um processo de expulsão da Janete. A professora é filha de um desembargador, tem tios influentes nas empresas da mídia. Um irmão de sua mãe tem um canal famoso, de milhões de seguidores, no Youtube, destinado aos mais atrozes delírios da extrema direita. Descobriu-se depois que o diretor da unidade foi compactuado com os movimentos de extrema direita para não perder o cargo e a escolha da professora foi algo planejado, para conter a onda progressista da maioria absoluta dos alunos.

_ Isso é um absurdo!

_ O curso é praticamente tudo que uma menina vinda de uma família derruída e sem muitas expectativas de ascensão social tem. Retirá-la dos bancos acadêmicos seria um grande acidente na vida dela, um acidente irretornável.

_ Eu lamento muito. A situação da cultura e do pensamento crítico independente no país é catastrófica. Toda essa trama só mostra isso. Não se pode fazer nada para reparar as tantas injustiças nessa história. O rapaz ofendido em sua sexualidade, a menina levada a cometer um ato bárbaro pela falta intencional de controle por parte de sua professora. E o fato de se fazer propagandas desse teor em um local destinado à educação.

_ Mas não acaba por aí. Aconteceu algo muito pior. O rapaz foi até a sala da professora, uma semana depois, desfivelou a calça e lhe mostrou o pênis. Ele não havia sofrido nenhuma sanção até o momento, em que a reitoria não viu outro recurso senão o suspender das aulas.

_ Ele simplesmente entrou na sala dela e fez isso? Sem nenhum conteúdo entre a briga na sala de aula e esse momento?

_ Nenhum. A professora disse que, enquanto ele lhe mostrava as partes íntimas ele falava num som libidinoso “isso aqui está bem para você? É disso aqui que você precisa para virar uma mulher de verdade?”.

_ Meu deus!

_ O rapaz quis se aproximar dela sabe-se lá para quê. Se o senhor o visse saberia que isso atentaria mais contra ele mesmo do que contra a mulher, pois ele é um terço do tamanho dela e uns 50 quilos mais magro. Se ela quisesse, simplesmente o destroçaria. A mulher é algo equivalente a uma modelo ocidental vestido e feminino de um lutador de sumô.

_ E o que aconteceu com o rapaz?

_ A mulher se sentiu agraciada por tamanha sorte. Não poderia ter acontecido algo melhor para lhe dar legitimidade em todos seus discursos e essa cena acabou de vez com as mínimas chances que Janete e seu movimento progressista teria. Os policiais levaram o rapaz e ele ficou três dias na cadeia. O judiciário parece ter feito corpo mole para deixar para soltá-lo depois desse tempo todo, como uma lição moral sugerida. O judiciário nacional não difere muito da atmosfera metafórica que a professora representa com suas suásticas disfarçadas e sua paixão pelo candidato extremista.

_ E o vídeo de toda a ação? Isso deve valer muito, considerando o quanto o universo de vídeos da internet se alimenta de material escabroso. Isso foi divulgado?

_ Ah, senhor Flibas! Reconheço que o senhor viva num isolamento saudável quanto a todas essas emanações doentias do mundo lá de fora, e por isso compreendo que não esteja com isso colocando minha perspicácia profissional em dúvida. Foi uma colega de Janete que filmou tudo com seu celular e ela não queria se expor se publicasse esse conteúdo em canais virtuais e nem tão pouco queria jogar isso levianamente nas redes. Eu já a havia entrevistado alguns dias antes sobre o caráter de Janete, e ela me telefonou me oferecendo o vídeo por um preço proibitivo. Ela é duro na queda e foi irredutível, mas sem fazer chantagens. Deixou no começo a insinuação de que se eu não o comprasse ela não teria nada a fazer com ele senão atender ao apelo instintivo da consciência virtual uniforme de jogá-lo para os leões da crítica incessante. Eu fiz uma ligação rápida para nosso contratante e ele topou pagar o preço. De modos que eu adquiri o vídeo e ele é a peça chave tanto para inocentar quanto para condenar Janete.

_ Suponho que tenha o registro por inteiro do episódio, de modos que mostra a propaganda ostensiva no corpo da professora como também, lamentavelmente, o desfecho do ato de violência.

    A conversa não poderia continuar mais. Ainda ficara uma estrutura suspensiva no ar sobre o propósito daquilo tudo sendo levado para o senhor Flibas, o que ele poderia fazer em sua profunda insuficiência em um sentido ou em outro para socorrer aquelas pessoas. Aquela moça desesperada pelo excessivo apelo moral e o rapaz homossexual cujo desenvolvimento do enredo se jogara a uma ponto morto de autodestruição. E a professora, que talvez fosse o elemento mais sensível disso tudo, pelo que representava na contramão de qualquer esperança de redenção nesse quadro de almas em turbulência. Era a violência pela violência, o arquétipo puro de emanações sensoriais vazias de propósito a não ser a imolação mútua. Como uma pira de sacrifícios conjuntos em nome de um deus amparado no ódio. Mexer com objetos tão venenosos não se obtinha nenhum seguro de se sair ileso. A conduta forçada em retorno ao andar da trivialidade fez com que o sr. Flibas interrompesse a conversa e levasse o detetive para a porta de saída. A desculpa verdadeira era que a inquilina estava por chegar e prometera trazer visitas, e não seria bom para ninguém que houvesse testemunhas daquele acordo tácito mas ainda indeterminado que se fazia entre os dois. O detetive mesmo concordava, achando de uma indispensável prudência que ele saísse naquela hora, obtendo do sr. Flibas a promessa de que matéria segredo sobre todas as revelações. O sr. Flibas conteve um sorriso diante essa definição, mas chegou à conclusão de que o homem estava certo, eram revelações poderosas. Não era por serem desse grau de escatologia que não envolvesse sentimentos humanos que deveriam ser considerados de forma séria.

    O sr. Allende disse que iria manter o sr. Flibas informado. Ele se vestira o casaco e descera com vagar as escadas, olhando os ângulos de cima com uma atenção de entendido. Quem sabe se ele não teria alguma solução milagrosa a apresentar ao Toledo sobre controle de pragas? Na certa os dois iriam se encontrar na portaria e aquele mundos eloquentes não resistiriam a uma pausa para conversarem.

 A sra Adele chegou meia hora depois. A chuva havia parado e um sol manso, preparado para reaver seu direito de progenitura pelo menos por algumas horas, incidira um calor sobre-humano cujo recurso imediato foi abrir as janelas e correr as cortinas. Olhando para a rua de frente, se via as pessoas aparecendo novamente em suas qualidades de transeuntes apressados atinados com outros aspectos da realidade que não fosse a pressa desviante contra a tormenta. O céu se esvaziara de nuvens, emitindo um azul esbranquiçado, ainda inseguro se devia cobrar para si toda a manifestação sub-equatoriana dos longos meses de calor intenso, e uma ponderação esotérica, uma espécie de convalescência ainda longe por terminar, deixava claro que as sombras só estavam em algum lugar resolvendo outras tarefas de urgência intermitente que, logo cumpridas, voltaria a estender o longo manto de escuridão e assobios por sobre a geografia visível.

   As crianças estavam com seus uniformes oficiais do colégio. Consistia de uma camiseta polo branca com a gola azul, com uma insígnia no peito, e a menina usava uma saia até os joelhos e o menino uma bermuda, ambas azuis. Evocava uma atmosfera regencial cara, línguas estrangeiras e algum código de ética centenário. A escola era de período integral, e o fato das crianças estarem ali era algo que despertava curiosidade no sr. Flibas. A sra. Adele leu isso no rosto do inquilino quando colocou os dois sentados na sala de estar, e com uma voz firme, característico dela, lhe contou que os pais haviam pedido que ela os buscasse antes do almoço no colégio. Ela falava no mesmo tom inalterável que usava para todas as coisas, mas tinha uma técnica própria de estabelecer o alcance para cara frase de forma que os que não deviam ouvir ficavam de fora. O sr. Flibas testou mais uma vez esse poder dela observando as crianças ilesas à fala de sua cuidadora, a menina folheando um livro que retirou da mochila e o menino, gordinho, com ar de enfado educado, olhando algum ponto neutro que era importante justamente por isentá-lo de participar do ambiente.

  _ Os pais se julgam observados, e ainda não estão em condições suficientes de admitirem uma situação de risco_ ela disse, enquanto pegava uma panela de aço nova de dentro do armário de cima.

  Ela já o havia deixado a par da disputa na justiça pela parte do hospital que os Neville haviam acionado. O grande hospital da Anunciação, onde a sra. Adele era cozinheira chefe e onde Alexandra trabalhara quando exercia a medicina. Era uma causa que se revelava complicada, cheia de embargos e audiências adiadas ou promovidas apenas para que os advogados lessem frases de retificação. Tudo para estender a resolução o máximo possível até que o cansaço físico ou institucional desse o ganho para os sócios majoritários. A sra Adele havia constituído um grau de confiança com o casal que se transformou em uma espécie de vínculo familiar, cheio de respeito e consideração. Foi o casal que lhe dera a promoção de chefia e supervisionara mesmo o espólio do apartamento de seu viúvo através dos advogados da família, e Adele lhes dava em troca a persona de cuidadora extra expediente das crianças, cujo vínculo admitia ser chamada em qualquer hora. Ela cobria esses adendos do contrato de amizade com uma dedicação sagrada, sendo que nutria um amor incondicional pelas crianças. E a menina e o menino viam nela uma sucedâneo autorizados dos pais, atribuindo a ela as características sobressalentes de carinho que o casal enredado em questões de um mundo de ocupações restritas não tinha tempo para dar.

   A menina era alta, de quinze anos, e o menino era rotundo, com um ar inalienável do privilégio de casta, de doze anos. Sentados à mesa pareciam seres tirados de uma cena vitoriana, um pouco só modernizada por novas adaptações de jovialidade no coque e nas meias (com marcas da Nike), e colocados ali para comporem um quadro de uma suave comicidade anacrônica. Fernanda_ era o nome da menina_, havia lido o livro do sr. Flibas e conhecia aspectos relacionados à literatura juvenil mundial que rendera uma conversa cheia de felicidade imodéstia para o sr. Flibas. Ter seu herói menino assimilado a Kim, do Kipling, era algo óbvio, visto o substrato da cultura subdesenvolvida não poder escapar desses moldes de referência, mas as considerações saíam com uma inteligência sem misericórdia, com a precisão condigna da visão aristocrática da garota. “Ele só é enfático demais em sua recusa do mundo, como se sentisse a necessidade de ser elogiado continuamente por esse esforço sobre-humano que faz”, ela dissera a respeito do Pequeno Nero, o herói do livro do sr. Flibas que, em certa época da infância e por pura voluntariedade, resolvera abrir mão de sua beleza e se tornar um ser deformado, um pequeno corcunda. “Mas isso não faz com que ele perca sua verossimilhança, isso, pelo contrário, reforça que ele é um personagem humano cheio de falhas e inconsistências”.

   O sr. Flibas ficava em um silêncio meditativo diante essa leitura tão inesperadamente próxima das coisas que ele escrevera há tantas décadas. Talvez se não fosse aquela capacidade corajosa dela em não ter papas na língua, e conservando ainda por cima um respeito e uma quase polida adoração pelo livro do sr. Flibas, ele a teria visto com a misantropia que ele tanto tentava combater mas que se acentuava mais com a idade. As olheiras cinzas, debaixo e seus olhos concentrados, intensamente ternos, o enchiam de uma admiração pelo futuro que ela tinha pela frente, aquela promessa vigorosa que a juventude bem situada, questionativamente incansável, provoca nos velhos. O sr. Flibas gostava de falar com ela mas eram poucas as vezes que tinha tal oportunidade. Via as aparições dela no apartamento como momentos valiosos mas que intuíam sempre um fator indeterminado de risco, o que não ficava de todo claro mas que Adele e os meninos emitiam tal suspeita nos rostos. Principalmente o menino, que, sem aos atributos intelectuais desenvolvidos da irmã, era susceptível a mostrar a intensidade de seus sentimentos.

   _ Ele parecem ao senhor mal nutridos?_ um dia a sra Adele lhe perguntou.

  Ele não saberia responder com precisão a pergunta, as exigências cosméticas do mundo moderno_ com suas exibições excêntricas do que considerava-se hoje em dia belo ou socialmente aceitável_ mudavam numa rapidez que ele não era capaz de acompanhar. Seu padrão estético elementar se relacionava com alguma insinuação famélica de escassez, mas ele procurou levar ao pé da letra a pergunta e disse que os achavam bem nutridos. O menino era algo que não se podia relativizar, embora ele não tivesse exposto a questão nestes termos para Adele, mas a menina tinha uma esqualidez que, em sua teoria, favorecia a clareza mental. E esse atributo era o mais requisitável para a sobrevivência num mundo de simulacros e imposturas como aquele. Ele sentiu necessidade de ir mais longe na resposta e disse à Adele que Fernanda lhe parecia capaz de se defender em seus próprios termos contra a realidade inóspita, o que, para sua surpresa, não foi recebido como esperava. Adele suspirara de preocupação, e depois de um instante lhe disse que era isso o que temia. Eram situações nunca explicadas e o sr. Flibas continha a tendência dos mobiliários do apartamento e das sombras ecoando o vazio das horas em atiçar a voz do futrico dentro dele. Não queria nessa altura bancar o velho xereta, atrás de picuinhas para ocupar suas longas horas, se retirava para seu quarto ou se mantinha no limiar da cordura do bom anfitrião coetâneo quando eles estavam lá.

   Como falar sobre literatura o desgastava, pois sempre achava que era mais autorreferente do que seu senso de autocrítica requisitava, ele se mantinha num oneroso silêncio. As crianças, por mais que disfarçassem, não conseguiam deixar de demonstrar o quanto se sentiam estranhas diante um velho calado, que ficava sentado sem fazer absolutamente nada na sala diante eles. Tudo que ele tinha ele levava na consciência, suas imagens reservadas, suas sensações acolhidas, seus temores amortizados pela certeza do cumprimento da ampulheta dos anos, e o que era intensidade auto avaliativa era natural que eles vissem um sucedâneo nada convidativo para tão elevadas expectativas: lembranças do que seus livros avançados de biologia daquela escola cara informavam sobre as doenças da senilidade. Ou quem sabe suas fantasias soltas iam além, no terreno desabrigado das insinuações criminosas, alimentadas por alguma insuspeita expressão a mais surgida em seu rosto pela secura da idade. Na internet deveria haver monstros urbanos em que a sua aparência alquebrada, obsoleta, sem lugar efetivo na região saudável das aspirações indenitárias, deveriam se encaixar com perfeição.

  Como o segredo do que havia entre os três e aqueles pais corporativos sempre leais às finanças e ao deus do capital era inatingível para ele, o sr. Flibas pegou seu casaco e pediu licença. Pensou em almoçar no restaurante italiano a duas quadras abaixo e pegar o metrô para a biblioteca municipal, onde tinha de entregar um livro e escolher um outro. A sra Adele ficou consternada, e ele viu que havia sido abrupto demais em sua evasão, se virando para ela e dando um sorriso de desculpa. Era fácil mostrar que não era um ser de artimanhas, embora essa fosse uma das características que  a psicopatologia social reiterava ter de ser afirmada todos os dias. A sra Adele aceitou suas desculpas e perguntou se as crianças lhe incomodavam (sempre mantendo a voz audível fora da frequência de outro modo bastante assimilável dos ouvidos deles na sala), e o sr. Flibas foi veemente, com toda a justeza de seu caráter. Estava precisando colocar os pés para fora do apartamento e pegar um pouco de sol, afinal de contas.

   Toledo não estava à vista na portaria. Não teria sido de todo incomodo perder um pouco de seu tempo ouvindo a epopeia nova dos isópteros, e na certa ele lhe perguntaria se falara com o Allende. Mas segurou seu chapéu na cabeça, o ajustando mais na linha dos seus cabelos, e ganhou a calçada. Não havia sombra de água da chuva recente, o sol cáustico evaporara todos os sinais deixados pela madrugada e pela manhã. O calor acentuado reforçava a intuição de que para mais tarde tudo aquilo se converteria em uma tormenta poderosa, como um processo alquímico inevitável. Se lamentou em não ter pego o guarda-chuva, que estupidez ser levado pela aparência superficial do tempo. Saíra com pressa para não ter de dar mais explicações sobre não estar incomodado e acabara se sujeitando àquela distração inconveniente. Na certa encontraria Filogônio, o bibliotecário que o substituíra na biblioteca, e se lançariam em longas conversas que extrapolariam o prazo mental afixado de modo estapafúrdio da hora de ir embora.

   Não iria se apressar. Tinha muitas coisas para pensar. Havia um substrato de diversos assuntos nos escaninhos mentais da repartição íntima em sua cabeça. Os reis africanos lhe pareceram convidativos, como se fosse uma missão em favor da defesa da racionalidade ocidental catalogar aqueles déspotas de mil serviçais negros em seu lugar na sociologia primitiva. Antepassados distantes tanto dele, através de sua cor atenuada, quanto daqueles outros sul americanos que passavam por ele, atarefados, incapazes, a não ser se instigados por alguma fixação inapropriada, de perceberem os genes de assassinos cerimonias trafegando dentro deles. Era um alento sentir aquela hordas ocultas de selvagens desaparecidos adormecidos na multidão com seus celulares nas mãos e suas roupas ajustadas, de tecido sintético e lanhos vegetais trazidos do outro lado do mundo. Havia algo de belo no morticínio, na deformação espiritual da extrema violência, era uma certeza irredutível pouco produtiva em sua desmentida progenitura. Era uma fantasia utópica da vida mental achar que se poderia viver apartado treinando o espírito para só se ater aos propósitos capitais, os mais importantes e elevados. Ele mesmo fazia seus esforços nesse sentido, alimentando essa impossibilidade abstrata, dirigindo seus circuitos cerebrais para a origem das nebulosas e os buracos negros. Repetir com autonomia os aforismos da ortodoxia científica moderna. Se o universo é infinito, não existe metade do infinito, ou um terço do infinito. Essas fabulações grandiosas para a qual o instrumento humano não era feito. Esses enormes cristais de elucidação sobre um princípio que tanto o método quanto o objeto eram abrangentes demais, ou por demais diminutos, para que o cérebro os comportassem. Era como um conhecimento sustentado puramente pela semântica, e a prática estivesse inalcançável, o que era de comum acordo não mencioná-la. O que havia de verdadeiro, terreno, próximo, carinhosamente atencioso num eterno respeito à nossa dimensão prosaica eram essas amostras da ferocidade e da intolerância. Ainda se podia deleitar com a metáfora por detrás do enigma insondável da condição humana: uma professora e uma aluna se matando numa sala de aula. Seria muito perguntar se no quadro negro havia alguma coisa escrita? No alcance simbólico de nossa autorreferente inteligência isso não seria de extrema importância? Como Jesus desenhando com o dedo sabe-se o quê na areia enquanto a multidão se arregimenta para apedrejar uma prostituta. Ah, que esplêndida consideração a uma coerência interna da espécie acharem que ele desenhava a cadeia cromossômica. É aqui que estará a prova de vossa suficiência e sua redenção. Na ciência libertadora, na constância cosmológica que separa os atos brutos e os assassinatos, os rancores e as maldades. O espaço entre essas coisas sendo a Promessa, o fins constitutivos que vão justificar os meios.

     O sr. Flibas fazia pequenas gesticulações, nada comprometedoras, embora tivesse consciência de se beneficiar com o fato de que ninguém incomoda um velho. Que rissem, nessa altura da grande história do despautério qualquer tipo de humor, mesmo o alimentado em fontes vexatórias, era bem quisto. Às vezes ele percebia que havia expressado alguma frase em voz alta, o que levava a alguém naquela turba anônima a olhá-lo. Era uma região selvagem apenas aprimorada com cimento e detalhes de antigas e sobressalentes tecnologias, um letreiro que se aprimorou ao longo dos últimos anos, com a letra “N” queimada. LA_CHONETE. Lojas de celulares com grandes símbolos de uma maçã mordida, ondas termais congeladas em um azul translúcido em frente a uma loja de calçados. A grande savana do homo civilitations, em que os leões passavam em uma observância dissimulada, as hienas se escoravam nos cantos atrás de despojos possíveis. Nessa linha simbólica ele poderia se considerar alguma presa de certa elevação na base da pirâmide competitiva, um animal velho. Pelo que ele lia nos jornais, os velhos haviam aberto uma categoria nova de vítimas e não eram poupados. Esperavam-nos na porta de bancos, sentavam-se com eles nos bancos das praças, se achegavam por detrás quando eles caminhavam para lhe surrupiarem a carteira. Era uma arma involuntária o ar de doidivanas, de alguém que debate com a própria demência, e ele não desconsiderava as possíveis atrações que isso podia exercer nos predadores apressados. De toda forma ele estava tão embrenhado nesses pensamentos que se deu conta que já estava dentro do metrô, em pé se segurando na barra vertical de aço galvanizado, em sentido centro. Esquecera-se de que seu destino quando saiu era a biblioteca, mas também não havia pego o livro que tinha que devolver. A Evolução Criadora, de Henri Bergson. Suspirou sentindo estranhamente sem nenhum traço de apreensão por aquela sublevação total à gravidade. Isso seria uma demonstração indubitável de seu estado de progressiva debilidade fisiológica ou um resultado de ter saído às pressas do apartamento, para deixar a sra Adele e as crianças à vontade? Ele não se importava. Na base de todas essas reflexões estava a filha do assassino de sua esposa, que ele a partir de agora resolvera mencionar pelo nome, Janete, era o que devia a ela essa humanização, dar-lhe o direito justo de sua individualidade. Pensava na grande professora, que ele a imaginara com poucas possibilidades de sua imaginação estar exagerando. Essas figuras abjetas proto-nazistas, absolutamente ignorantes, eram fáceis de serem dimensionadas. A rigidez muscular apropriada à certeza que levavam davam-lhes uma aparência extenuante. Bastava pensar em Goebbels, em Eichmann, em Mengele, em Demjanjuk. Ele mesmo já vira essa máscara um sem número de vezes, não admitindo que a cromossomia tivesse-lhe feito com aquela cor e postado ali em frente a eles, como uma afronta a seus altos regimes aristocráticos. Era uma eterna repetição, uma reformulação que parecia gastar pouca energia para retirar esses mostruários seculares do sótão da história, pois eles por si mesmos já se regeneravam. A propulsão que os faziam ganhar uma estatura perigosa era a matéria fétida que habitava o coração humano. Talvez a perda de força desse clichê desse ainda mais poder àquele símio que se acreditava superior até mesmo por reconhecer a pobreza gramatical das frentes de oposição. Essa professora se julgava a mais inteligente, a mais bela em sua gordura exagerada, a mais bem nascida. Ou alguma armadilha linguística muito bem elaborada, despejada em conta-gotas, a fazia achar que detinha uma verdade desconhecida, que só os adeptos de um secreto merecimento angariavam. Uma verdade que se tinha que honrar pela escolha defendendo-a da abjeção da ralé, da bestialidade do populacho. Mas o sr. Flibas conservava seu conceito de que a ralé estava na medida do espírito, e não na impostura do vestuário que enganava nos dois sentidos. Já vira senhores que pareciam velhos sábios judaicos, secos e gnomizados na aparência, que estupraram as netas. E já vira janotas de terno que participavam ativamente de salvamentos em desastres naturais. E tal professora, o que a fazia se julgar um ente isolado num panteão genético? O salário de professora? Ah, ela era de uma família da mídia, alto poder financeiro. Lênin falando que o homem do campo era um ser bestializado, que tinha que ser contido pela patrola da história. Ellison no início de seu romance sobre o homem invisível falando da pobreza espiritual profunda, cheia de vícios e crimes, das famílias negras famélicas do sul dos Estados Unidos.

   O metrô parou na estação de C. e o sr. Flibas se firmou atrás das pessoas na porta de saída e desceu. Sabia onde estava mas resolveu não pensar nisso, embora uma presciência de seus passos lhe revelasse que já não tinha nenhum destino, nenhum local para onde ir que configurasse um álibi a seu flaneurismo. Era um personagem de alguma expressão clássica do pensamento comum do homem urbano, da mesma vertente de Raskólnikov ou Stephen Dedalus, apenas que a cidade que o acaso lhe determinara vagar era de uma feiura insubmissa, de uma falta de transcendência impiedosa. Ele requeria para si um pouco de estética para orlar com algum grau de isenção aqueles seus pensamentos sem esperança, aquela sua ausência já avançada de fé. Era algo do qual ele sempre se lamentou os cenários daquele país serem tão organicamente desprovidos de relevância, aquelas pessoas serem tão inexoravelmente presas em seus estágios de entes efetivos da vida prática. Um país que nunca teve uma capitulação séria, envolvida por demais com sua lisergia primordial. O sr. Flibas resolveu prestar atenção por um instante o que seus passos faziam e se direcionou para um sebo de livros usados que ele sabia existir a uns três quarteirões. Na mesma hora voltou seus pensamentos para o assunto que explorava, a sensaboria da raça sub-equatoriana. Por que eram tão manipuláveis, tão afáveis, tão intocáveis pela história? Essa afasia fez com que todos os impulsos não digeridos dos anos ficassem estancados dentro daquele espécime pacífico de olhos esbugalhados. Todas as emanações poderosas dos vícios da história passando diante dele e ele se sentindo intocado apenas porque algum sistema de retenção lhe dava a sensação de anestesiamento.

   Lá estava o pequeno sebo. Uma porta entre dois comércios. De um lado uma corretora de seguros, do outro uma sala de advocacia. O sr. Flibas entrou pela porta envidraçada e deu de cara com o corredor estreito cheio de livros. Duas estantes longilíneas forradas de volumes notavelmente muito velhos. Capas soltas, páginas amarelas. Um cheiro de pó e obscuridade, como se o tempo houvesse se condensado em matéria. Só foi encontrar alguém na sala de entrada, onde alguns homens taciturnos e comprometidos estavam de frente as outras estantes, vasculhando o conteúdo delas. Era um velho armênio que tomava conta do comércio, um homem de barba em ponta e que usava uma bandana de tons africanos, sempre coloridas. Sua intenção era se meter num canto de sombras e continuar embrenhado em pensamentos. Uma janela a dois metros emanava a luz exterior. Estava fechada e o calor ali era confortável, pelo menos para aqueles tipos de homens. Tinha-se que ter alguma propensão oriental a um espírito de religiosidade, o que não envolvia a noção de deus mas sim da agrura da geografia. Como se a percepção dos livros se vinculasse ao o conhecimento de que o princípio daquelas encadernações e daqueles pensamentos registrados em tinta impressa viessem de ambientes cáusticos. Ali dentro a insubmissão do espírito humano era o que estava por detrás daqueles semblantes calmos, conformados, já isentos de grandes planejamentos e grandes esperanças.

  O sr. Flibas catou de uma estante um volume da Ética, de Spinoza. Folheou-o e voltou à primeira página, pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr. Flçibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escrevera os prefácio e as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o mestre. Eles e deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento superior. Isento de dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se separara o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem em maiores do que o infinito em si. Pequenas piadas que engrandeciam a alma do leitor, essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável, sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de exclusivismos humanos em posicionar o homem  como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram Spinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160 livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Spinoza morreu de solidão inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas metafísicos sagrados.

   Espinoza fundou toda uma corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo a que Spinoza atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo consentidos, sem essa vida vicejantes, corrupta, escatológica, visceral e mesquinha, a humanidade não teria do muito além dos limites da caverna. Só um Spinoza fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções, livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar, intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era isso que o velho Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da obsolescência aceita. Spinoza teria adiantado em três séculos o nazismo e a sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.

   Era para confirmar essa sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima, o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas. Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que Cristo falou aos apóstolos. E Spinoza traduziu essa frase dessarroada por nós vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinoza não diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia. Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas, de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os velhos êxitos alienantes.

  O sr. Flibas resolveu comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de são Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor em quatro volumes. Estava livre de Espinoza, o que queria dizer que não tinha muita cosia a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo. Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando alguém aparecer. Olhou em torno e s[o agora viu que havia mais pessoas que teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Haviam duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Spinoza por aquela cena, de duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse para o sono_, mas se ele nãos e sentisse tão fisiologicamente isolado em suas resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda insistisse em durar, o propulsor da vida estria sempre do lado de fora de Spinoza e absolutamente alheio aquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.

   O armênio havia aparecido do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr. Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio de grandes fogueiras para queimar livros.