quinta-feira, 26 de março de 2015

Patavinas



Às vezes penso que eu conseguiria enfim me aliviar um pouco dessa enorme anestesia do absurdo que esse país me causa se uma certa maturidade bombástica na maneira como nos vemos nos impulsionasse de vez para fora, nos acordasse. Penso que se isso algum dia acontecesse, envolveria todo mundo, sem distinções mesquinhas de mérito, tanto os ditos cidadãos de bem quanto os agentes do atraso mais afundados na lama. Teria que ser um alívio largamente consensual. Haveria de vir a luz para todos. Seria algo como a Garça Foper ser convidada para posar em uma revista masculina, e essa edição tivesse um recorde inigualável de vendas. Mas teríamos que achar o nível preciso de concordância da revista oferecer um milhão de reais para a Garça Foper, a Garça Foper aceitar com altiva leveza ser fotografada nua em poses tais como encurvada na cabeceira de um sofá de corda de bananeira com o olhar obsedado por um desses efeitos perfidiosos de uma fase da lua, e nós o público investíssemos uma parte de nossas economias mensais para tornar o número da revista a mais vendida de todos os tempos. Muitos dos mais arraigados traumas nacionais que nos perturba os genes, e muito dessa seriedade capenga cheia de negativas a acusações de ambas as partes_ dos ditos cidadãos de bem e dos sensualistas chafurdadores na lama_ acabaria quase instantaneamente. Algo muito sério e incontestável, que não sei em absoluto explicar, me diz que só com algo assim seríamos alçados ao primeiro mundo.

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Um dia, há muitos anos, um homem deixou de uma só vez e para sempre de ser o gorila alucinado com a cabeça prestes a explodir de ódio detrás de um volante, quando uma menininha de sete anos parou sua bicicleta e em uma decisão de pânico diante da investida proto-assassina desse homem pela rua chamou seu cão para junto dela na calçada. Para completar o imenso clichê, esse homem estacionou o carro na rua seguinte e caiu em um choro convulsivo cuja solidão ele sabia jamais seria quebrada por alguém apiedado que viesse lhe envolver com esses mantos com os quais se envolvem nascituros. Ele sempre levou essa lembrança inconfessa na alma, e nunca teve coragem de dizê-la para ninguém.

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Entre tantas sentenças devastadoras que encontramos no Velho Testamento, que nos cala diante a inerente irracionalidade humana, uma das que se fez mais conhecida mesmo pelos que nunca leram o Velho Testamento talvez o seja por ser a única que nos agracia com alguma piedade. Trata-se do versículo do Eclesiastes que diz que nada há de novo debaixo do sol. Sempre morreram os mais amados cães de estimação e sempre continuarão morrendo, sempre os filhos enterrarão os pais assim como sempre as dores da normalidade inversa parecerão únicas em suas enormidades, para logo serem traídas pela descoberta de que as dores inenarráveis sempre existiram, sempre, sem novidades ou acautelamentos ou direito à exclusividade. Assim podemos nos resguardar do espanto de vermos que o suicídio seguido de assassinato em massa que aconteceu com o avião ontem nos Alpes franceses, provocados pelo co-piloto do avião, já é uma recorrência de certa contumácia na história da aviação. Sempre existiram pilotos e co-pilotos de avião que se suicidaram levando centenas de passageiros juntos, pelo que vejo agora nos telejornais. Essa verdade é um bálsamo para o limite de nosso espanto, um calmante para nossa capacidade de se estarrecer, uma espécie de código de etiqueta para que não nos tornemos estridentes demais e não percamos a compostura com chiliques diante a indignação mais inominável.

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Esse gosto leviano que o ocidente cultiva pela música desde os primórdios, essa devoção tão intensificada pela necessidade perpétua de suavizarmos todos os mínimos momentos de nossas existências com o acompanhamento de uma trilha-sonora condizente, tem sim seu elevado grau de perigo e desavisada degeneração. Maomé não estava errado ao eleger a música como um dos principais inimigos do homem, assinalando tudo que de mais nefasto e espiritualmente deletério que a música possui. O que concorda com a repulsa previdente do islamismo contra a música e torna severa a recomendação de cuidados é a própria ciência darwinista, que restringe a funcionalidade da música apenas às zonas de intermediação baixas entre a necessidade de procriação com o artifício de chamada ao acasalamento de certas danças sexuais que nós dividimos com os métodos dos outros animais inferiores. Para nós, que podemos olhar retroativamente para a história de nossa evolução a partir do ponto em que chegamos, é fácil perceber que fomos bastante incautos com a música durante todo essa lenta jornada, não soubemos e não demos a mínima importância para pararmos no momento certo e relegarmos a música à sua mera condição de adorno menor na escala de superação de nossos mais obsedantes defeitos. Assim, a música extravasou os limites da invocação tribal de coragem e união contra os inimigos da noite e se transformou no elemento principal de discórdia e dominação a um nível doentio nunca visto com mais primor do que na sociedade atual. Todas as bestialidades de que somos capazes advêm na superfície imagética trafegável da música e é potencializada brutalmente pelo invólucro da música. As cidades se tornaram um ambiente insuportável por cada ser humano em sua tribalização moderna expressar na cara do outro a música que define suas novas fronteiras desapaziguadas e combativas; a juventude é alvo submisso a todo comando de compras e instituição de modas boçais graças à efemeridade da música que as campanhas publicitárias lançam massacrantemente sobre ela, e quanto mais efêmera ela for, mais poderosa. E não são só essas partes tidas como mais identificadoras com a ralé que se tornam fantoches dela, mas ela se incrustou na vagareza de pensamento das filosofias tidas como as mais sofisticadas tão somente devido à ressonância que as palavras justapõem ao sentido cadenciado de suas imagens que na verdade não dizem e não servem para nada, a não ser para ensonar o pensamento de gerações de leitores com utopias lisérgicas claramente inatingíveis, distorções da realidade evidentemente prostrantes, desabafos sinfônicos mais inúteis contra a inevitabilidade do mundo. Não à toa que os índices financeiros, que são os únicos que realmente importam, são geridos por executivos de competitividade predatória, que pouco ligam para a música, enquanto a extensa malta de dominados é a que passa os dias sonhando com hipóteses ególatras de redenções as mais disparatadas fundamentadas pela sua escravidão da ilógica a seus cantos de sereia. Uma história da evolução alternativa em que o homem tivesse prescindido de sua capacidade auscultatória e fonética teria trazido a humanidade a um nível de apascentamento de uma série de tralhas de fardos inúteis que vem atrasando sobremaneira o passo do homem em nossa realidade corrente; uma sociedade milenar de surdos-mudos teria nos aproximado bem mais desse intuído alienígena superior em tudo, efetivamente obcecado pela pragmática, com enormes olhos concentrados de atenção e orelhas vestigiais que são o túmulo de toda ignóbil dissipação sonora, que dizem estar nos observando desde os primórdios, incapaz da coragem de fazer contato pelo terror que sente diante o enorme volume de som e fúria que saem de nossos amplificadores. 

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Digo isso porque quando escuto os concertos para violino de Mozart sinto o implacável definhamento de querer ficar naquelas ruínas e naquela nostalgia indecifrável e debilitante para sempre.

11 comentários:

  1. Charlles,

    Parabéns! Excelentes textos!! Sobre eles algumas coisas que me vieram à cabeça...

    Dá-me calafrios imaginar a possibilidade daquela senhora nua. Não, não posso, não quero: que imagem terrível... Ela lembra-me a troça do Groucho Marx: "Nunca me esqueço de um rosto, mas no seu caso vou abrir uma exceção" e o dito espirituoso de Wilde: "Só as pessoas superficiais não julgam pela aparência".
    Eles aqui me parecem absolutamente justos e necessários.

    Sobre a história do motorista, a cena se imaginada já é forte, carregada. É comovente a tentativa de expiação do homem. Talvez a menina tenha ficado traumatizada, num primeiro momento, e deixado de andar a pé por uns dias. Mas depois voltou às ruas e se esqueceu do motorista. Quem sabe hoje não esteja parada num desses congestionamentos infernais buzinando e disparando impropérios inocentemente.

    A menção do livro sapiencial acerca do desastre é devastadora, não me consola, mas me impele a me conformar - não sei como - com nossa fragilidade e insignificância diante do Nada. Somos todos passageiros, de certa forma, do mesmo voo absurdo, a queda é questão de tempo. Mas somos passageiros com vida ainda, gritando por mais um instante, e sinceramente, acho.

    Acerca do comentário sobre a música e seu elemento demoníaco, é impossível não se lembrar do Doutor Fausto. A música nunca me deixou indiferente, sempre me perturbou. Sempre trouxe a tona emoções, a maioria de ódio, de revolta e saudosismo, mas algumas boas também. Entupi meus ouvidos de Rock e Pop na adolescência: o filme era ruim e a trilha-sonora condizente. Uma lástima. Contudo, de vez em quando a música me faz bem, me anestesia (Penso em Mozart, Bach, nesse caso), me faz rir com minha mulher provavelmente como um macaco. Paralisa, de qualquer forma os excessos de pensamentos ou preenche o vácuo deles. Faz bem e pronto.

    Abraços e bom final de semana!

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    1. Obrigado, Marcos.

      Ontem eu estava vendo essa senhora na televisão e me veio essa ideia. Talvez baseada na técnica homeopata de inocular o princípio ativo do veneno no corpo para que este se veja livre da doença causada por esse mesmo princípio. Ou pela recomendação de que se cure a ressaca ingerindo um pouco mais de bebida ao amanhecer. Bom, eu compraria a revista.

      O motorista sou eu, e a história é real. Cito Whitman:

      "Fui obstinado, vaidoso, ávido, superficial, esperto, covarde, maligno;
      O lobo, a serpente, e o porco não faltavam em mim..."

      É difícil entender uma falta total de moral no suicida como esse caso do co-piloto. O cara deixar de se matar sozinho, em seu direito, para levar 149 outras pessoas com ele, é o gesto mais ignóbil que eu consigo perceber; é de uma mediocridade e de uma malignidade inconcebível. É o exemplo mais cabal de niilismo puro, faz a mente incorrer na liberdade relativista de aceitar que na gradação dos horrores, o ato terrorismo tem mais autenticidade, pois o assassino imagina estar praticando em nome de uma causa, de uma situação de recompensa divinatória, de mérito espiritual. Esse co-piloto é ainda mais assustador, porque em seu absoluto vazio a única coisa que enriqueceu e ganhou certa substância foi a indiferença crua, que vai além da maldade mais refinada.

      Esse texto sobre a música foi um exercício cioriano. Eu sou totalmente ligado à música, não consigo viver sem a música. Mais uma vez, é um auto-retrato.

      Abraços.

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    2. A Graça ou "aquela mulher" me lembra muito do predador aquele monstro do cinema, e só mesmo o Charlles pra me fazer ter pesadelos com aquela coisa. Sobre o suicídio do piloto é de fato um ato execrável o que ele fez, e a impressa ainda tenta minorar o ato, dizendo que ele se tratava, mas que ele não era um maníaco depressivo.

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  2. O cara lembrou de Doutor Fausto, mas eu lembrei d'A Montanha Mágica, onde Settembrini pontifica para Hans Castorp: "A música é politicamente suspeita!".

    Não me importo muito com o juízo humano, e muito menos com Maomé e deformações do gênero, e as refutações científicas darwinistas ficaram para trás com a evidência do caráter estimulante da música à própria razão científica.

    Música é uma linguagem universal paralela e afim aos fonemas que constituíram as línguas faladas e escritas. O que falamos também é música, da mesma forma que a música também é um discurso perfeitamente discernível.

    Acho que não compreendi seu ponto referente à música.

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    1. Concordo plenamente com você. Como eu disse, a música é imprescindível para mim. Me vieram essas ideias pois ouço constantemente o álbum duplo de concertos para violino de Mozart, executados pela Anne Sophie-Mutter, e nada há de mais belo que esses concertos. Dá vontade de ficar para sempre nessa música, de ser abduzido para sua realidade. É arrebatadora, sublime.

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    2. Anne Sophie-Mutter.Vou ouvi-la. Valeu pela dica, Charlles. Que saudades d'A Montanha Mágica, citada pelo Marcos Nunes! Um dos melhores livros que já li.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. É este aqui. Marcos:

      http://pqpbach.sul21.com.br/2013/05/23/wolfgang-amadeus-mozart-1756-1791-os-concertos-para-violino-e-orquestra-e-sinfonia-concertante/

      Infelizmente o link do PQP expirou, mas dá uma procurada no Torrent. Tenho em cd, e é uma das coisas_ se não a mais_ linda que já ouvi.

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    2. Obrigado, Charlles. Consegui no Torrent baixar muitas obras dela. Antes assisti alguns vídeos da virtuose no You Tube, realmente espantosos.

      Sobre Música ainda, certamente entre o que de mais belo ouvi até hoje foi a obra do Glenn Gould, que procurei correndo depois de ler Perfeição, do Thomas Bernhard. Aliás, foi por afinidades com esse autor e com o Elias Canetti, que cheguei, por acaso, ao seu Blog.

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  4. quase chorei de rir com a ideia da foster. sabia q se tratavam de patavinas tuas a respeito da música. muito interessantes, aliás.
    mas a verdade sobre a música é esta q canta drexler. estarei no show dele em menos de duas horas, então tchau e bom fim de semana a todos!

    La idea es eternamente nueva
    Cae la noche y nos seguimos juntando a
    Bailar en la cueva
    Bailar, bailar, bailar, bailar
    Bailar, bailar, bailar

    Ir en el ritmo como una nube va en el viento
    No estar en, si no ser el movimiento

    Cerrar el juicio, cerrar los ojos
    Oír el Clac con que se rompen los cerrojos

    Bailar, bailar, bailar, bailar

    Me guías tú o yo te guío

    Será que me guías tú o que yo te guío
    Mi cuerpo al tuyo, y el tuyo al mío

    Los dos bebiendo de un mismo aire
    El pulso latiendo y el muslo aprendiendo a leer en braille

    Bailar como creencia, como herencia, como juego.
    Las sombras en el muro de la cueva girando alrededor del fuego
    La música bajo de los arboles conducido por las llanuras
    La música enseña
    Sueña
    Duele
    Cura

    Ya hacíamos música muchísimo antes de conocer la agricultura

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  5. Quanto a tragedia do aviao, notando a dimensao teatral deste tipo de ato.... havia assistido no domingo Relatos Selvagens do Szifron, quando na segunda saiu a noticia da queda do aviao, cinicamente, brinquei com colegas sobre a possibilidade de haver um Pasternak a bordo...

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