terça-feira, 26 de julho de 2016

As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg



Na faculdade eu tinha uma amiga que era fã de Hemingway. Ela era miúda, de óculos, ruivinha, e fazia medicina_ e era apaixonada por Hemingway. Era tão exótica em seu ambiente quanto eu com meu livro do William Golding nos pátios da Veterinária. O que mais me espantava não era o fato dela estar se integrando nos quadros da profissão que menos lê além dos compêndios técnicos, mas pelo fato dela, tão feminina, gostar de um autor que volta e meia utilizava a apologia de seus "colhões" como eixo condutor da frase. Eu perguntava para ela, realmente querendo saber, como uma mulher suportava ler Hemingway. Na minha incapacidade de correlação, imaginava que seria o mesmo que um homem ler Barbara Cartland. Ela me respondia que adorava aquele masculinismo, mas compreendia talvez de uma maneira que me faltava os meios a fragilidade do autor. Ela, por exemplo, detestara Adeus às armas, achava-o esquemático, cheio de clichês, com um final tão falho quanto um desfecho de uma novela televisiva mexicana, enquanto eu ainda estava sob o fascínio da extrema concisão daquela última página que, repeti para ela, segundo consta, Hemigway a reescrevera 30 vezes. Por outro lado, ela e eu dividíamos a reverência pelos contos de H., em especial Gato na chuva e Montes como elefantes brancos, e julgávamos também de comum acordo que Do outro lado do rio, por entre as árvores era seu melhor romance. Guardei desses anos meu preconceito ingênuo de achar que boa parte da literatura era insultuosa para mulheres, já que era escrita por homens e para homens.

Hoje estava acabando de ler o livro As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg, publicado pela Cosac Naify. Vou admitir: já li várias escritoras, mas só agora, com esse belíssimo livro em mãos, entendi. Talvez só me veio a compreensão porque, de forma geral, Ginzburg seja a mais feminina das escritoras. Ela, felizmente, não tem a ostensividade de gênero que às vezes extrapola o vulgar em Hemingway. Ginzburg é... como direi...absolutamente sem medo, absolutamente verdadeira. Não há nenhum artifício nela, para o bem ou para o mal. Ela é feminina de um jeito primordial, nela está a resignação e algo que transcende a resignação da mulher diante a sina de sofrer pela imaturidade e instabilidade do macho. Nunca vi uma escritora tão só, e tão preenchida da missão em analisar puramente a solidão da mulher no século passado, nas guerras, na deportação, no exílio. E o mais belo nela é sua desproteção, sua maneira de ser gigantesca sendo pequena. E o que torna isso maior ainda é que, ao contrário da literatura masculina, ela não precisa da astúcia para ter legitimidade, não precisa do ódio, do rancor, que são tão características da literatura produzida pelo gênero masculino. Todos os contos desse livro, grande parte bem ligeiros, são obras primas, calam fundo, são brisas frescas em um quarto acolhedoramente escuro. Não tem como sair desse livro sem cultivar um amor pela Ginzburg, sem procurar sua foto e ver seu rosto expressivo, não trivial, de ângulos tão propícios ao sofrimento e à reflexão, seu rosto espichado, pouco bonito, ou feito para ter todo o esplendor de sua beleza recolhida na velhice. Seu rosto não tem a propensão à neurastenia da Virginia Woolf, é bem mais forte; vê-se isso em sua falta de pudores para sorrir e se comportar com sua saudável normalidade nas fotos, ao contrário de Woolf, cuja incapacidade de sair da ética burguesa feminina de posar como um fauno deve tê-la irritado bastante. O conto Ele e eu, presente nesse volume, mostra seus sentimentos resignados diante a imposição patriarcal do marido, diante seus sarcasmos e sua tirania em rebaixá-la. Ginzburg usa de toda sua fragilidade assumida para construir uma das reivindicações mais tocantes para a liberdade de ser simples sem ser simplória; ela acaba saindo com uma estatura bem mais íntegra no final do conto do que seu marido, sem que, repito, tenha usado de nenhum artifício melífluo para tal. É um conto que em meus anos de ingenuidade eu acharia se tratar de uma literatura inócua ao homem, só assimilável a uma outra mulher, como um segredo, uma identificação, um sinal de pertencimento. Hoje percebo o mesmo que minha amiga, bem mais inteligente do que eu, em fazer da leitura um aprendizado sistemático, imune a clubismos. Uma felicidade sem tamanho ter encontrado esse livro.


10 comentários:

  1. Estão mais pra ensaios que contos, né?

    O texto-título é uma obra-prima. Fico feliz que tenha ido atrás dele por causa de minha foto, tão feliz quanto no dia em que o encontrei após ter desistido de procurar, num sebo de Brasília que me deixa pobre toda vez que o visito.

    E fico feliz também por finalmente ler um texto aqui que não me induza a gastar mais dinheiro. As armadilhas de CAC...

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    1. E tu é um fdp*. Até fã do Kaw Malangue eu fiquei.

      *: feliz difusor da palavra.

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    2. Realmente é difícil situar o gênero literário dessa obra, misto de ensaios e contos.

      Aquela página do livro que você postou é antológica. Descobri depois que virou até plaquinha de entrada de casa.

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    3. HAHAHAHAHAHAHAHA! Quer maior fdp que você? Pergunta a qualquer um aqui. Hehehe. Kaw Malangue é o cara mais soteropolitano que eu conheço.

      Ensaios e memórias. Eu postei a página sem saber nada sobre ela, apenas porque achei muito foda. Depois meu compadre comentou que tinha postado a mesma página, e até minhas tias que não leem nada vieram falar comigo sobre ela.

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    4. Livro belíssimo, mesmo. Estou lendo agora o Tradutor cleptomaníaco. Algo me diz que o Borges teria gostado do cara. Contos deliciosos. A coleção Leste Europeu é uma maravilha.

      O Kaw Malangue deve ser muito gente boa, e metaleiro ainda. Todo dia visito seu Facebook.

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    5. Calvino teria amado Kosztolányi. Borges teria gostado ainda mais de Capek. Quero comprar O Marcador de Páginas.

      Kaw Malangue é gente boa demais. Escreveu um livro hilário sobre um perna de pau que faz carreira no Bahia.

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    6. E não é que eu li parte desse livro dele, pela net. Outro assunto.

      Estou pegando todo tipo de bico extra da minha profissão, exames e tals, e comprando a coleção leste inteira. São os livros mais imprescindíveis lançados no Brasil atualmente. Se tivéssemos uma mídia cultural minimamente competente, cada lançamento seria reportado com alvoroço. Cara, passou quase batido o lançamento dos 3 volumes dos contos de Kolimá, isso chega a ser um crime. Mas o lado positivo é que, eles estão sendo publicados aqui.

      Comprei doze livros dessa coleção nesse mês, incluso aí o marcador de páginas.

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    7. Uma das vantagens do Facebook é ter contato com o Cide, um dos responsáveis pela 34. Uma espécie de Charles Cosac.

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  2. Caro Charlles,

    Não sei se você verá esse comentário, mas fiquei curioso para saber quais seriam as suas escritoras de ficção preferidas (comprei o Pequenas Virtudes hoje e caí nesse seu post por acaso).

    Um abraço,
    Bruno

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    1. Olá, Bruno. Gosto muito da Olga Tokarczuk, da Margaret Atwood, da Ginzburg, da George Elliot, e da Joan Didion.

      Um abraço.

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