quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Solenoide, de Mircea Castarescu

 


Vejo agora que uma cantora dos EUA disse que ganha mais dinheiro com fotos de sua bunda do que com shows. Isso tem relação direta com esse grande livro que eu encerrei a leitura, finalmente, hoje. Castarescu faz um romance escatológico. Uma apologia de seus cheiros, de seus parasitas, de suas unhas, de seus dentes, de suas exsudações, de suas glândulas. O romance é não só suas memórias recolhidas da infância, como seu corpo. Ele é prolixo, palavroso, interminável. Lá pela página 400, ele retorna de maneira exaustiva para a descrição de sua sala de aula onde é professor, em uma precária escola romena, e dos alunos e colegas. A Bucareste onde nasceu e vive é tão encarnada com seu ser que surge como um estômago de um monstro ciclópico com porões secretos e câmeras mortuárias com estátuas de vice reis gigantes. Em um país massacrado pela política desendividualizadora, em que as pessoas são números funcionais em um projeto capenga socialista, o narrador de Solenoide, o próprio Castarescu, se reafirma como espírito, como consciência, como atenção constante e incansável. Na era dos celulares, em que o motorista não consegue dobrar uma esquina sem se atualizar sobre a nova estúpida dancinha do tik tok, um romance de oitocentistas páginas de celebração dos poderes da atenção é o que Adorno dizia de que, no futuro (hoje), os únicos livros relevantes seriam os mimeografados. É por isso, e pela escrita soberba, que esse exaustivo romance é uma obra prima. Uma espécie de símile de A montanha mágica, pois se naquele romance Mann se mostrava saudoso de um mundo de altas ideias destruído pela primeira guerra mundial e o início efetivo do século XX, aqui Castarescu se mostra saudoso da interioridade lírica, do ambiente da infância, da lentidão da mneumônica, da religiosidade suspensiva da personalidade, que o século XXl decretou anacrônico e ridículo. Não é à toa que o idiotismo do homo cibernético, o que fica 24 horas por dia recebendo propaganda inútil entremeada a informações banais, possa reagir a essa exuberância do ser com ranço. Se a literatura se míngua em uma literatura menor, ligeira, curta, que pode ser lida em um dia e é nobeliada como representante passível dessa finada forma de arte, esse romance é uma afronta violenta, é uma reafirmação brutal da escrita. Castarescu aqui escreve para ninguém, como Soljenitsin fazia ao enrolar o manuscrito de seus romances e os enfiar nas frestas das paredes do Gulag, escrevendo só para si mesmo. E assim compôs um livro em que se pode habitar. (Primorosa tradução de Fernando Klabin.)

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