"Cavalgada pela Masúria", um dos capítulos de "Minha infância na Prússia", entra fácil na minha lista de melhores contos. Trata-se de uma parte do diário da condessa Marion Dönhoff. Com uma prosa que lembra Hemingway, mas de forma superior_ sem nenhuma necessidade tão tipicamente masculina de dizer "olha como escrevo maravilhosamente bem"_, o texto narra uma viagem que a escritora, quando jovem, faz pelo interior rural da Alemanha, a cavalo, e acompanhada por uma amiga. É uma obra idílica, pastoral, cheia de sol, florestas e a densidade humana de povoados com camponeses laconicamente gentis. Só que o ano é 1941, e a presença da guerra é um incômodo generalizado. Marion cita os prisioneiros pelos campos de forma pictórica, um detalhe indispensável que se tem de colocar no quadro mas que teria sido muito bom se pudesse desconsiderá-lo. Só que a autora não é uma poeta, mas uma jornalista ativista, o que torna impossível qualquer grau voluntário de alienação. Ao mesmo tempo que fala da exuberante simplicidade daquela vida, em que nem sempre encontram estábulos para pernoitar os animais e uma só vez, depois de muitos dias, tem a chance de tomar um banho quente, perfaz pelas páginas o exército de jovens se arregimentando pelas estradas, as sopas de leite na mesa carente dos camponeses à noite e a desnutrição da onipresença da batata. É um texto que rescende uma dolorosa saudade, uma saudade de tudo, da paz, da harmonia, da modéstia. Como são belas as mulheres escritoras, em sua modéstia sábia, cientes de sua superioridade sobre seus pares masculinos; enquanto minha outra leitura, o Emmanuel Carrère, fala apenas "eu", "eu! eu! eu!", a "minha dor", o "meu desespero", a condessa quase não se coloca em cena, uma impessoalidade transparente para mostrar a história e a impermanência fruto da ganância do "eu". E quando essas reminiscências terminam, vem aquela lucidez que só a literatura mais elevada provoca, uma espécie de amplitude iletrada paradoxalmente feita pelas letras, uma fagulha de consciência universal que não é para menos que um outro escritor tenha conceituado como "esotérica". Sabemos que essa educada e serena senhora que escreve essas palavras é a mesma que fez parte de um complô fracassado para matar Hitler, foi presa e libertada, enquanto outros de seu grupo receberam a pena de morte. De forma que esse conto é auto-explicativo em última instância. É uma nostalgia por uma época e uma disposição de espírito que foram varridas pela história, mas não vinda de uma intelectual isenta, não vinda de alguém que se deleita ao som lisergiado por drogas pesadas do "eu", como é Carrère. Debaixo desse tom ameno dessa mulher de oitenta anos há a adaga escondida de quem lutou para salvar esse mundo da estupidez e da veneração por idiotas sanguinários. E é só uma ilusão achar que ela saiu de todo derrotada. A possibilidade de que seja lida por longos e longos anos atesta que sua força verdadeira está acima da violência, está na restituição da comunhão do entendimento. Como diz Sêneca, que pego de uma lembrança do Carrère em O Reino, os maus não vencem, os que praticam a injustiça não levam a melhor. É um engano se entregar a essa resignação derrotista. "Pensas que quero dizer: um ingrato será infeliz. Mas não falo no futuro: ele já é".
Depois de um longo período de contos e narrativas ficcionais fico feliz com o retorno desses textos mesclando resenha-crônica-ensaio que um dia fizeram o blog ficar bastante conhecido e comentado. Aliás, sinto falta dos personagens que costumavam dar o ar da graça na sessão dos comentários. Onde andará o casal Nunes, o Matheus, a Caminhante, o poeta(stro) Ramiro Conceição, o Luiz? Este último em particular fazia umas contribuições bem interessantes... Vez ou outra aterrisso por aqui para reler uns textos teus que já considero clássicos, Charles. Um intervalo considerável de anos separam a recomendação (tuas críticas valem como recomendação) de um livro do efetivo momento em que consigo pegá-lo pra ler, mas nunca esqueço de voltar ao motor de busca do blog atrás de menções ao Livro X ou ao autor Y.
ResponderExcluirTe desejo um feliz 2025 e, é claro, vida longa ao blog!
Obrigado, Raul. Feliz 2025 pra você.
ExcluirA Internet mudou muito nós últimos dez anos. Blogs que sobrevivem são poucos, a maioria já foi deletada. YT, Face, Insta, Tiktok — vídeos suplantaram o texto sem muito esforço.
ExcluirDa época 2005-2015, as únicas pessoas que ainda acompanho são o Lord Ass, Alexandre Soares Silva, que se consolidou como um excelente escritor e realmente lido na bolha não-esquerdista, e o Charles Adriano, esporadicamente, que acredito nunca ter lançado obra alguma. Schade. Eu gostava bastante dele, foi como um irmão que nunca conhecera, indicou tanta coisa, e Deus sabe como me arrependo de tanta merda que escrevi, era muito jovem, ok, mas... mas a distância natural da internet e os ventos que sopram no Brasil empurraram as pessoas para cantos extremos e lá nos encastelamos. A política da última década dividiu e ninguém cederá. Hold the line, stay put.
Ficou impossível, para mim, conviver, conversar, com qualquer pessoa à esquerda, com exceção de castilhistas. Só de lembrar de textos e comentários antigos já... Deixa pra lá. Aproveitem a Venezuelizaçāo.
Sempre serei grato ao Charles, ainda que tenha parado de responder aos meus emails. Quem sabe um dia lance algo. Comprarei.
Feliz Ano Novo.
Matheus, você deve falar sobre emails do bol, ou do hotmail, que são contas que eu já perdi há anos. Nem consigo mais entrar nelas. Só tenho essa: charllesfaulkner9@gmail.com, que também estão na ameaça de me extorquirem dizendo que se eu não passar a pagar vão cancelar. Me recordo de um email seu apenas, que respondi, há muitos anos, dez talvez, sobre sua ida à Alemanha. Você parece se importar mais com essa polarização do que eu, visto seus empregos de palavras do senso comum desse ambiente. Eu não me vejo como alguém da esquerda brasileira, nem, obviamente, da direita e nem tampouco adepto dessa besta miliciana que não vou citar o nome. Tenho muita simpatia por você assim como dos antigos frequentadores do blog, e agradeço muito por suas palavras carinhosas.
ExcluirJá pago quase vinte euros por mês a esses arrombados.
ExcluirEntão tá, Charlles. Tudo certo. Não estou mais magoado. 😆
Me importo, sim, com a polarização após anos de convivência tensa na faculdade e perceber a piora do país desde Dilma I. Policiamento da linguagem, etc.
Mas deixemos agora para lá. Ainda é domingo.
Abraços.