Por alguns anos acreditei que para fugir da história bastava me forçar a uma profunda estupidez onírica. Minha aparência típica de um médio-europeu me ajudava nisso, meus olhos próximos, os músculos da minha boca em um sorriso imutável da vítima evadida das circunstâncias, meu nariz que quase se tornava uma cartilagem seca quanto mais velho eu me tornava, e minha estatura que remetia aos lacaios dos romances sociais russos do século XIX. Exerci com perícia uma cara de quem só entende sobre suas pequenas preocupações cotidianas, estando num limite bem aquém de se interessar por notícias. A sociologia sempre superestimou a inteligência; o começo da libertação era se fazer acompanhar com um tratado político nas noites de descanso da fábrica. Trótski estudando nos vagões de carga dos trens siberianos até São Petersburgo; as prisões reformuladas por Stalin para que seus segregados não usufruíssem da distração estratégica dos czares em tornar os livros acessíveis para os presos do regime. Até um Onassis catando guimbas no porto, o horizonte de suas possibilidades ampliando-se em seu cérebro turbinado, se trata de uma desfaçatez na compreensão de como o homem comum programa o uso de sua vida. Para a maioria de nós, a única e verdadeira bênção é ser capaz de se exorcizar dessas ilusões do heroísmo individual criadas pelo rancor daqueles que tem um conceito fanatizado sobre a derrota.
Não que eu não tenha minha parcela de erudição. Formei-me em história em meus anos de juventude na Hungria, mas meu pé no chão quanto a cobrar meu lugar de conforto pelo mérito está longe de ver alguma ironia nisso. Cheguei a escrever para um jornal de oposição ao regime que então recém se instaurara, e a tentação de botar meu senso da verdade em jogo em nome do heroísmo não foi pequena. Tive que fugir pela fronteira junto ao grande rebanho de ameaçados de morte. Cheguei a Londres sem falar uma palavra em inglês, e um senhor me aceitara como guarda noturno de seu cinema. Eu dormia em um quarto ao lado da sala de projeção. Nesses dias me serviram muito mais que meu diploma a felicidade lembrada de meu pai quando retornei de meu primeiro dia com a caixa de graxas para sapato nas costas. Um reconhecimento sagrado de cumprida sua missão paterna. Meu pai já havia desaparecido quando me servi de sua mensagem; morto pelo desgosto com um ataque cardíaco fulminante na mesa de jantar. Muitos de seus antigos companheiros não tiveram a mesma disposição em exigirem bem pouco da Musa Iconográfica. No jornal, até conhecidos meus das mesas ao lado resolveram pelo suicídio. Naquele quartinho apertado, ouvindo as vozes dos filmes que contavam sobre assassinatos em preto e branco para uma plateia de casais de adolescentes, eu agradecia a meu pai. Minha cara foi se tornando ainda mais adequada à condolência desatenta das pessoas. Vocês não sabem, por exemplo, o poder que é não ter os molares. Fui perdendo-os paulatinamente depois dos 30 anos, vítima não da falta de higiene, mas de um processo de descalcificação que aprendi a aceitar como natural devido a estar longe da minha raiz. Confesso que me era impossível fugir da nostalgia do frio, das cornijas carregadas de gelo das casas, da neblina de 20 graus abaixo de zero. Nas pessoas susceptíveis isso provoca a queda de cabelo, o câncer; em mim fazia cair meus dentes. A distância entre uma foto minha ainda rapaz, tirada no estribo da faculdade, em que apareço com um sorriso encenando confiança, os incisivos brancos e fortes parecendo imunes à deterioração, e como estou hoje, é enorme. Um de meus incisivos foi se desgastando até ficar a metade do tamanho, e se entorteceu, tombando para a esquerda pelo seu próprio peso. Era impossível eu ver; nos espelhos parecia que continuava em sua densidade juvenil; até que uma senhora em uma fila do açougue o mencionou simpaticamente. Eu achava que a dentição era um dos assuntos vetados para os ingleses, mas ela sorria e me apontava meus dentes como se falasse de um detalhe peculiar em uma luminária de rua. Ela, inclusive, foi quem me esclareceu sobre essa ideia de que meus dentes foram se enfraquecendo por eu estar longe do “lar”. Morar nesses bairros planificados e nessas charnecas assoladas pelo fog, tendo a chuvinha miúda constante por sobre os guarda-chuvas, dão uma crença sagrada ao conceito de “lar”. Eu posicionava dois espelhos contrapostos para poder ver meus incisivos da maneira certa, mas eles me pareciam normais. Tirei uma foto 3x4 com um sorriso que estranhou o manejador da máquina, que deve ter juntado isso a todo o resto de meu aspecto para me achar um abobado, e corri para casa para apreciar da devida forma aquela revelação. Eram horríveis, amarelados, placas bacterianas incrustadas nas laterais como hera em crescimento progressivo. Fiquei horas no quartinho olhando embevecido a foto, e pensando o quanto é tendente estarmos sempre enganados quanto a nossa destruição. Há sempre um resquício de vaidade a ser eliminado.
Pois bem, o cinema pegou fogo e eu tive que sair de Londres antes que as investigações avançassem. Alguma manifestação juvenil; coquetéis molotov atirados indiscriminadamente em bancos, universidades, delegacias e no meu cinema. Os jovens revoltados com o sistema não faziam distinção, ou talvez a coisa fosse muito sutil para que eu percebesse. O cinema passava filmes ingleses de produtores locais, açucaradas novelas de campo, nomes que eram difíceis se lembrar no momento quanto mais depois de tantos anos. Adaptações de Jane Austen e Trollope feitas com verbas do departamento de cultura. Essa expressão de uma frivolidade regimentar implantada de alto para baixo deve ter deixado alguns daqueles jovens leitores da escola de Frankfurt sem paciência. Embora o que eu via nas ruas era a mesma grandiloquência exagerada da procura pela mudança, pessoas que pregavam panfletos nos postes e tinham olhares esgazeados, sob o efeito de drogas modernas. Talvez seja romantismo supor que eles tivessem um pensamento com nuances complexas para atacarem um cinema por causa dos filmes que passava. Assim como eu não me atinara à destruição de meus dentes, eu sub-repticiamente superdimensionava a inteligência.
Na fuga levei três caixas de filmes. Queria devolvê-las para o generoso senhor que me dera abrigo. Algo do bom-mocismo de meu estoicismo pessoal me contaminara, eu achava que seria enternecidamente condizente com minha insignificância mostrar aquelas preciosidades resgatadas para ele. Na certa havia uma astúcia em ganhar com isso algum outro abrigo em um possível local seguro, onde eu poderia continuar com meus pequenos estudos e minha pequena vida em geral. Mas de novo a história passava com sua patrola indiferente ao que estivesse embaixo na terra, sem querer contemporizar com os vermes (sei que é um termo coloridamente autoindulgente e exagerado, e que ninguém se oferece em tamanho sacrifício à sobrevivência assim, mas deixem que eu continue). Nos jornais noticiaram o incêndio do cinema sem que se fizesse referência ao cigano que pernoitava em suas instalações (para a apressada visão coletivista da época, todos nós, húngaros, armênios, tchecos, éramos ciganos), mas era fácil sentir as investigações em sigilo da polícia local apontadas para todas as nuances exóticas. Lembro que peguei um navio três ou quatro dias depois, e jamais pude me encontrar com ele. O navio tinha um desses nomes institucionais, Saint Ethiene, HMS Victory, não mais que uma sucessão consonantal para o não-emigrante estrangeiro; para mim parecia uma ortodoxia já esvaziada de sentido de uma religião antiga, que minha não participação esforçava-se para não pensar em sua fria função de me expulsar, me mandar para bem longe.
Foi quando cheguei em São Miguel. Dezessete dias de trajetória singrando o Atlântico. Na escrita pode-se colocar toda aquela imensidão sensorial em umas poucas palavras. Quem dera pudesse ser assim na vida real. Poupar os sentidos de tanta cobrança de respostas, o corpo de tanta autoconsciência de seus limites. E havia a tristeza do mar, isso que até então eu só compartilhava da literatura. Uma tristeza sem fundo, que deixava a despreocupação de que se poderia morrer sem que se perdesse alguma coisa. Era como se minha busca pela insignificância houvesse enfim me contaminado até um nível absoluto. Olhava as águas batendo em seu fio contínuo no casco cinco metros abaixo e pensava que tanto fazia se eu desaparecesse. Mais tarde me disseram que era um sintoma típico da viagem. Um senhor esloveno, chapéu de velho madrugadino se inclinando para a testa ao efeito do vento equatorial que dava suas primeiras aparições, barba branca e rosto encavado que pouco estava aí para qualquer coisa, sentado ao meu lado nos cabos de arribação. Não era sua primeira viagem e se espantava de não ter visto até agora alguém se atirando ao mar. Eu me vi tão carente de uma expressão de bondade que aceitei que ele estivesse me precavendo, como se suas palavras estivessem me retendo pelo braço. Aportei em uma capital da América do Sul, e dali uma mistura de inspiração e informações me levou até São Miguel.
A palavra que eu repetia a torto e a direito era: disappear. Era uma das palavras de meu restrito inglês de reflexões pessoais. Where i can disappear? Essas cidades de ninguém têm sua relojoaria séria, executada em prol da manutenção instintiva da vida, seus descarregamentos de carne de porco salgada e arroz encaroçado, tonéis de óleo de linhaça e fardos de peças aleatórias de ferro acondicionadas para o conserto de fogões e televisores, haveria quem entendesse aquelas palavras proferidas por alguém que não ligava para a constituição rígida e fanática da permanência da espécie. Iriam acabar me entendendo. Achei um dos caminhões que transportavam sacos de mantimentos e fui dispensando os vilarejos que me pareciam mais aprazíveis. Pedia com meu sorriso de coitado e meu olhar destituído de inteligência ao motorista se eu não poderia prosseguir. Proceed. Se as casas tinham algo que me agradava e me lembrava de espairecidas tardes de sol, eu acenava com a alegria dos tolos, tão treinada por mim, e dizia proceed. Se eu notava um ar atarefado ou uma mulher com algum sinal de que pudesse haver alimento suficiente para as conversas malévolas sobre a vida alheia_ se havia notas de possibilidades de que houvesse vida alheia suficiente para tecer maledicências_ eu me aprumava em meu canto da cabine e insistia, como o cãozinho sarnento que abana o rabo para agradar o dono mais um tanto e não ser atirado para fora: proceed. Aí chegamos à última aldeia, que consistia apenas em uma rua de terra com casas grotescas sob um sol inclemente, onde nem quando o motorista deu seu grito de alerta pareceu que não iria surgir alma viva para nos receber. Umas dez casas. Mas logo o caminhão fez sua manobra entre as bifurcações do mato e parou em frente a uma saleta de porta de metal corrida aberta, que compreendi ser o mercado do lugar. Não havia mais para onde proceeding, me disse o motorista. E lá fiquei. Era o lugar mais distante que podia ir para fugir à história.
Bom. Bom! Promissor, amigo. Vontade de ler todo o resto agora, JÁ.
ResponderExcluirÉ uma novela de 100 páginas, estou concluindo.
ExcluirGostei muito, mergulhei. E depois fiquei pensando nas duas São Miguel q conheço, das Missões e dos Milagres, improváveis. Milagres pq fica bem à beira-mar. Missões pq bem ao sul. Mas aí lembrei do disco do Ramil (Vitor Ramil, já mandei tu escutar um par de vezes), q se chama Delibáb. Segundo o próprio, "O délibáb é um fenômeno extraordinário da planície húngara, tão semelhante às planícies do sul do nosso continente. Único em seu gênero, este tipo de espelhismo transporta paisagens muito distantes a horizontes quase deserticos, reproduzindo ante os olhos maravilhados do observador, em dias de calor, o desenvolvimento de cenas distantes."
ResponderExcluirDistante, palavra q está na tua última frase.
Aliás, sobre distância e Ramil, em outro disco ele tem uma música chamada Longes. Gosto da grafia, q creio vir de "lejos". Falamos um pouco de portunhol por acá. Abraço, charlles. Dei um tempo lá no face, voltarei aqui com mais tempo agora, fico feliz.
https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9lib%C3%A1b
Uma série de informações aí dadas por você que são importantes. Eu conheço duas São Miguel, uma eu morei por uns cinco anos na infância, a outra é em Rondônia. Me inspirei nessa última. Baixei o Ramil mas ainda não ouvi; vou fazê-lo nesse fim de semana. A propósito, experimente o Godspeed You! Black Emperor.
ExcluirEstou ouvindo muito Vitor Ramil. Saudades do pago, do chimarrão, do Sul... mas ando emocional demais: chorei frente à tumba de Camões e Pessoa, no Mosteiro dos Jerônimos...
ExcluirSebastiao voltará, sim, junto com Pedro I do Brasil. Sebastianismo ontem, hoje e sempre.
Gostei desse som q tu me recomendou, charlles. Fazendo uso de químicos naturais fabricados pelo meu próprio cérebro, cheguei à conclusão de q há algo de extraterrestre nele.
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