Para mim, a maior incógnita da literatura é o suicídio de Yukio Mishima. Não há questão existencial que me aflija mais, no campo das letras e das personalidades intelectuais, do que o fato de alguém como Mishima ter se matado, ainda mais do jeito que a coisa se deu. Suponho que seja por demais sabido que o autor de Mar da fertilidade praticou o harakiri, diante os mil soldados que ele exigiu que fossem arrebanhados no pátio do quartel-general das forças armadas em Tókio, no lance cinematográfico da invasão que o escritor e alguns asseclas de um culto nacionalista fizeram ao quartel. Estou me embrenhando na obra máxima de Mishima, a tetralogia Mar da fertilidade; já li o primeiro volume, e todos os outros estão em minha posse. Para resumir em um só adjetivo esses livros: arrebatadores. Já havia lido apenas um livro dele, o Pavilhão dourado, romance que já de cara convence sobre a genialidade de Mishima. Pelas pesquisas que fiz, os outros livros que se seguem na tetralogia são ainda melhores que Neve de primavera, este já tendo me deixado pasmo diante tanta grandeza, inteligência generosa, profundidade e beleza poética.
Mishima tinha 45 anos quando se matou. Sua fama era mundial, seus livros o deixaram rico. Estava inserido confortavelmente no rol dos maiores escritores do século XX. Era um homem belíssimo, cuja consciência disso ele provou em uma série de fotos de vaidade perturbadora. Tinha uma inteligência fenomenal e um senso artístico refinado, uma vasta cultura. Quem lê um de seus livros_ e pode ser qualquer um deles, que mantem o mesmo nível de qualidade_, é recompensado por uma certa luminosidade exuberante, um excesso de vida radiosa. Em O pavilhão dourado, eu senti esse frescor da alma que se esbanja com seu pleno controle da existência, com sua posição de liberdade acima da mera labuta autômata do homem comum. Não era o tipo que se mataria. E seu suicídio, por mais que se escrevam sobre seus subjacentes simbolismos (há uma recente tradução de um livro de Marguerite Yourcenar todo dedicado ao tema), é um dos mais estúpidos da história. Foi um dos únicos suicidas que cometeram o ato final em nome de um efusivo orgulho metafórico. Matou-se com alegria. Queria que o Japão não descambasse no capitalismo ocidental, o que ele via como algo impossível deter, e resolveu expressar sua indignação através da mais tradicional manifestação nipônica. Diante a obra de enorme lucidez que ele deixou, seu suicídio ficou como sua única criação falha, pois parece que lhe faltou a previsão de que, em vez de fazer as pessoas pensarem, sua morte voluntária faria as pessoas verem-na o mais próximo da chacota, do exibicionismo vão. Se Mishima continuasse a escrever (e imagino com pesar quantos livros havia ainda para mostrar sua grandiosidade; o que o Mishima de 65 anos teria por dizer ao Mishima que botou uma pedra em sua permanência aos 45), ele teria feito muito mais por sua causa. E isso é que me mata. Por que Mishima se suicidou?
Antes de mais nada: o lance de recorrer-se a Freud, ao homossexualismo, à depressão, etc, etc, quem se predispor a cair nessa vala comum, que ao menos tenha lido um livro do Mishima. Sim, ele era homossexual, seu amante se matou junto a ele; sim, ele teve um casamento por conveniência com uma mulher e deve ter passado por todas aquelas agruras da sexualidade reprimida, potencializada pelo conflito de essa situação ser ainda pior em uma sociedade patriarcal como a japonesa. Freud teria se deleitado com o caso. E, não, Mishima não era uma personalidade depressiva. Como eu disse, seus livros exumam um amor incomensurável pela vida. Só a felicidade que ele tinha ao escrever já sustenta que o suicídio lhe era antagônico. (Eu não vejo Mishima como um suicida, como me vem a consciência física quando pego um livro de Hemingway, de Virginia Woolf, de Maiakóvski; aliás, quando fecho um livro de Mishima e vasculho preguiçosamente a contra-capa e as orelhas, me passa um leve tremor de entendimento e eu me falo baixinho: "ah, é mesmo, ele se matou.")
Lendo Mar da fertilidade eu posso tecer minha própria teoria. Não que ela me convença de todo, mas eu já intuía isso desde que vi a descrição do corpo do pai morto em O pavilhão dourado. Nessa cena magnífica, o narrador diz que o próprio excesso de materialidade imóvel de um corpo sem vida revela em contraste o quanto esse invólucro é absurdo para conter a energia do espírito. Na tetralogia, os personagens se reencarnam ao longo do século, e retornam para resolver antigas pendências no seio de suas famílias. Não é um livro espírita, se é que não é ridículo eu ter que avisar tal coisa ao falar de Mishima. E aqui me vem certa explicação pelo suicídio de Mishima. O cara era genial demais para ter cometido isso em nome da beleza, da nacionalidade, de seja o que for. Dostoiévski jamais faria isso, e Mishima era Dostoiévski. Mishima teria uma convicção arraigada da superação da existência à realidade física, e isso o motivou a departir-se com êxtase para o prosseguimento antecipado da jornada. Seu suicídio sempre me pareceu propositadamente cômico: ele ter exigido, sob a ameaça de passar à espada um dos altos funcionários das forças armadas em posse dos homens de sua associação, para em seguida exigir que o imperador fosse restituído e o Japão voltasse ao tempos antigos, é claro que ele sabia que era algo histriônico e incabível. E, assim que os soldados soltaram o riso uníssono de mofa diante sua imposição ("hahaha, esse Mishima é um louco"), ele proferiu um discurso, os olhos injetados, e rasgou sua barriga de alto a baixo com a lâmina. Para completar, o seu seguidor que ficou encarregado de decapitá-lo com um único certeiro e rápido gesto, conforme o ritual, errou a mão e teve que dar três desferidas da espada para separar a cabeça do escritor do corpo.
Os autores preferidos de Mishima eram Thomas Mann e Joris-Karl Huysmans. Nega-se, com isso, a hipótese de que ele deva ser entendido com um excessivo olhar oriental.
Procurei pela tetralogia na EV em 2014 e nunca cheguei a encontrá-la completa. Mas agora que a Benvirá está publicando todos os livros eu me sinto obrigado a comprá-los.
ResponderExcluirA história dele sempre me lembra o filme de Masaki Kobayashi, que por acaso se chama Harakiri. E que filme! (Assista, Charlles!)
Do Japão eu só li Kawabata e o Kobo Abe, dos quais gostei muito. Murakami não conta...
A tetralogia estava esgotada há tempos. Quando a vi pela Benvirá corri para comprá-la. Achei dois na amazon e dois na LC. Vou atrás desse filme. É um presente ver que a literatura japonesa tem essa qualidade.
ResponderExcluirO único livro de literatura japonesa que eu gostei foi "memórias de uma máscara" que parece que é um dos primeiros livros do Mishima, mas eu o li faz tanto tempo que eu não lembro muito bem da trama, mas do pouco que eu recordo, era um livro com fortes teores biográficos, inclusive abordando o homossexualismo reprimido do personagem.
ResponderExcluirRecentemente eu li o Murakami e o Tanizaki, e sinceramente me deixaram tão frustado com o que eu li, achei muito bobo e com uma sensibilidade excessiva, tudo bem que é cultural essa pudicícia extremada dos japoneses, no fundo eu até fiz uma força pra aceitar isso na leitura, e focar no teor psicológico, mas não deu.
Eu recomendaria aos iniciantes O pavilhão dourado. Quem não amar esse livro é de palha.
ExcluirIsso dele ter cometido suicídio tão jovem, me lembrou de uma história do Kawabata que ganhou o nobel, e quando ele fez o discurso de recepção, criticou veementemente os amigos que cometeram suicídio na juventude, e o irônico disso tudo, é que alguns anos depois ele também se mata.
ResponderExcluirLi essas curiosidades. Tem uma onde o Kawabata diz que o ganhador do Nobel não deveria ter sido ele, e sim o Mishima.
ExcluirTem um documentário que passou na tevê cultura sobre o Mishima, e eles apareciam juntos.
ExcluirSabe se a antiga edição de "Neve de Primavera" é traduzida do japonês e vale a pena, Charlles?
ResponderExcluirNão sei quanto à antiga edição. A nova, lançada de 2013 para cá, da Benvirá, é traduzida da edição inglesa. Não é o ideal, né, mas é o que temos. Estou no segundo volume e estou adorando.
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