sexta-feira, 15 de abril de 2016

A chave secreta da vida



As similitudes entre dois escritores absolutamente diferentes estão em como se integram na total necessidade de escrever. Mishima escrevia compulsivamente; certa vez se trancou em um quarto de hotel e só saiu dias depois, com uma obra iniciada e concluída por completo. Era um autor de extrema vaidade. No dia do seu suicídio, entregou à editora o manuscrito que completava o último volume de sua obra máxima. Escreveu que seus livros eram uma expressão divina. Já Imre Kertész, em seu discurso de recebimento do prêmio Nobel, publicado em A língua exilada, comovedoramente diz que teve sorte porque as condições históricas em que sempre viveu, entre a morte iminente no campo de Auschwitz e os anos de opressão da ditadura de esquerda em sua Hungria natal, lhe abortaram no início qualquer esperança de que algum dia fosse lido. Kertész considera a invisibilidade uma sorte porque assim ele se entregou à escrita intimista, dirigida a si mesmo. Em ambos, o que escrevia sabendo-se no centro de um aparato midiático, e o que escrevia para ninguém, está nítido a escrita como uma missão, como ato de sobrevivência e busca espiritual. Quando li O fiasco vi claramente a solidão e a felicidade de Kertész, no modo como a estrutura textual parecia um molde guardado na parede do quarto onde suas mais recolhidas ideias eram projetadas. Há uma tocante sacralidade na abdicação de Kertész à escrita, sua confiança que nunca pediu nada de retorno ao mundo físico. Sua poderosa reclusão infantil ao exercício no quarto escuro. Assim como é perfeitamente aceitável a extrema vaidade e trabalhado amor próprio de Mishima, quando se lê, já nas primeiras páginas de Neve de primavera: "Tomar nas mãos o próprio ideal e moldar o mundo à sua maneira? Isto não seria uma manifestação notável de poder? Seria como segurar na mão a chave secreta da vida, não acha?" Esses dois homens frágeis, que levaram, cada qual à sua idiossincrática maneira, o peso da história nas costas, conquistaram a posse da chave secreta da vida, retomaram à força de uma arraigada confiança no soerguimento de suas vozes mais recônditas o direito sobre suas vidas, resgatando-as, como diz Kertész, ao Moloch da história. É de Kertész uma das mais verdadeiras descrições da atividade da escrita:

"...num lindo dia de primavera em 1955, de repente descobri que existia uma única realidade, eu mesmo, a minha própria vida, uma dádiva concedida por um tempo impreciso, que havia sido capturada, expropriada, circunscrita, marcada por forças estrangeiras, desconhecidas_ e eu deveria retomá-la da "história", desse Moloch terrível, porque ela era minha, somente minha, e eu tinha de cuidar dela de acordo com esse princípio."

Nenhum comentário:

Postar um comentário