A foto saiu desfocada pois tive que apertar o clique do celular com o nariz. |
Espanto-me diante a modéstia e despretensão de Mo Yan. Tento correlacioná-lo a algum outro escritor que conheço, mas não me lembro de já ter-me deparado com algo do tipo. Mo Yan é um narrador puro; um contador de histórias cujo enorme prazer que sente ao escrever transparece visivelmente em seu texto. E é isso: ele escreve apenas pelo prazer, o que pode soar contraditório diante aquela máxima de que o prazer deve ser o único mote de um escritor. Mas a verdade é que sabemos que não é bem assim, geralmente o mote mais motivacional de escritores é a vaidade. E Mo Yan quase não tem vaidade (coisa impossível para um artista de qualquer expressão); ou aparenta estar descansadamente independente a elogios e a reconhecimentos desde que tenha o papel e a caneta em sua escrivaninha. Difícil não associar tal humildade com o condicionamento imposto pelo regime maoista. Em Mudança, primeiro livreto dele editado aqui, chega a ser desconcertante a acriticidade que seu alter-ego narrador demonstra, uma simetria tão pacificamente espelhada nas regras do Estado que é uma das demonstrações na literatura recente da perfeição apolítica. Li as 50 primeiras páginas de As rãs, que me chegou hoje, impressionado mais uma vez com o despojamento e a linearidade infantil de Mo Yan. O tema do romance é um achado, o que muito indica ser retirado da biografia do autor; um desses temas tão bons que é praticamente certo o sucesso da empreitada. E Mo Yan começa a narrativa com uma carta, e segue convertendo toda a maravilhosa história a simples exercícios literários inspirados por um professor de literatura. Comparam-no com Garcia Marquez, pelo realismo fantástico e pela semelhança entre os personagens simplórios de povoados esquecidos em dois cantos do mundo (um na Colômbia, outro na China), mas enquanto Gabo sempre inicia com majestade e exuberância, Mo Yan apenas escreve, sem frases marcantes, sem imagens sinfônicas. E isso é incrível! Funciona magistralmente! Prende o leitor. Mo Yan recorre aqui e em Mudança ao narrador infantil, o que encaixa a seu artifício de ingenuidade. Lembra Abbas Kiarustami; lembra, estranhamente, Tarkósvki. Sua prosa tem uma cristalinidade genuína, uma limpidez desarmante que parece ser toda criada por Mo Yan. Não se trata do que a literatura japonesa, por exemplo, consegue produzir com essas características, pois esta tem, ao fundo, um forte acento filosófico e niilista. Já Mo Yan não, ele prescinde de peso. O outro chinês que já li, aliás também um prêmio Nobel, no grande romance A montanha da alma, de Gao Xingjian, a narrativa é também imensamente simples, recorrendo à pintura, aproximando-se da poesia paisagística. Já Mo Yan afasta-se também do artifício da poesia.
Uma última nota: foi difícil conseguir comprar As rãs. Fui a três livrarias na capital, e nas três tive que fazer malabarismo para que os funcionários entendessem o título do livro. Aí tem As rãs? Uma das meninas, que trabalha na Fnac, chegou a tripudiar: Mas vocês me chegam com cada nome complicado de livros. Daí eu respondi: sabe perereca, aquele bichinho branco que parece um sapo e pula na gente no banheiro? Pois é o outro bichinho, o maior, a rã. Rã. Daí coloque ela no plural, e pimba: as rãs. Outro funcionário pensou que eu estivesse falando o nome de um alemão, Härs Hansen. E a confusão era contagiante, eu percebia que meus músculos responsáveis pela fonética não foram treinados suficiente para lidar com um trava-línguas onde se encontravam as nasalações mais perigosas da língua portuguesa, o s, o rr, e o a átono. Isso tudo para não ter o romance em nenhum lugar. Comprei-o pela Livraria Cultura, já que o livro físico na Amazon havia se esgotado e só tinha o para o famigerado kindle.
Não consigo apreciar esse narrador puro. A não ser que estejamos falando de xamãs contadores de estórias ou dos mitos, e.g. Enuma Elish, Gênesis, Gilgamesh, mitos tupinambás, etc.
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ResponderExcluirEu prefiro os mais complicados, também. Mas Mo Yan tem sido fonte de muito prazer. Passei três horas de espera hoje com As rãs e ouvindo o Metheny & Mehldau.
ResponderExcluirachei bem interessante o recurso do narrador ingênuo que acaba encantando um professor de literatura - no caso, o destinatário das cartas. Em "mudança", há mais malandragem metalinguística. nos dois livros, porém, o poder de sedução da prosa é mesmerizante. o velho prazer de ser transportado para outro lugar e outro tempo é cultivado com bastante competência aqui.
ResponderExcluirE as tantas cenas deliciosas, algumas lembrando desenho animado. A das crianças comendo carvão então, para mim é um clássico: a menina com periodontite com a boca negra e vermelha de sangue, e a professora provando o carvão porque elas dizem entusiasmadas que tem gosto de castanha. E, reitero mais uma vez, tudo descrito com total despojamento. Um ótimo livro!
ExcluirA tia obstetra atravessando à toda as pontes em sua bicicletinha, para atender os partos de emergência, me lembra sempre os desenhos da hanna- barbera da primeira metade do século passado. Ouço até a trilha de uma big-band de jazz por detrás.
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