Ao longo dos anos de vivência pessoal em que nada de muito diferente resta a nos esperar pela frente e do aprofundamento cada vez maior numa era tecnológica onde os prazeres intelectuais se amoldam a modelos rápidos e superficiais, é uma surpresa poder ler um romance como O Teatro de Sabbath, lançado há apenas recentíssimos quinze anos. Nessa epopéia que não se presta a nenhuma classificação convencional, Philip Roth atinge a marcação histórica de finalmente lançar a pedra fundamental de sua escrita no escore dos grandes nomes literários do século XX, após uma série de obras menores e três acertos que, sem o salto olímpico que o autor se reservava dar na produção do sexagenário, provavelmente se perderia numa bibliografia limitada a uma prosa competente, mas perecível. A trajetória de Mickey Sabbath, o herói enroldado em um triste ciclo orgiástico adotado como contra-dogma para suportar a bestialidade cotidiana, compõe a mais poderosa, engraçada, virulenta, desesperada, sequiosa por vida e paixão e, ao mesmo tempo, desapaixonada e suicida, sequência de episódios sobre a deploração humana, construída numa prosa igualmente retumbante, fluida e genial. São 507 páginas na reedição da Companhia das Letras (que teve a misericórdia de atender aos vários pedidos de leitores postados no site da editora, para que se relançasse esse título há muito esgotado) em que o completo domínio de Roth por seu projeto transparece tão nitidamente que o leitor tem aquele privilégio raro de compartilhar a felicidade do trabalho, o cansaço, a volúpia e a impressão de vazio nostálgico após a leitura concluída, que o autor sentiu ao escrever. Algo que só se sente com os grandes romances e que a mim se liga ao manuseio físico do volume em que este apresenta no final os sinais da intimidade adquirida, o amarelar da lombada das páginas, a perda do brilho da capa, a aparência de que foi espremido e digladiado com volúpia.
Como outro romance erótico _ Lolita _, o tema de O Teatro de Sabbath está longe de ser o sexo. E nisso é bom demorarmos um pouco. Tendo a achar que com os outros leitores aconteça a mesma falta de entusiasmo que eu sinto diante ao romance erótico. O que poderia ter de mais desalentador do que confrontar-se com uma promessa não cumprida, uma propaganda onde as fotos ilustrativas coloridas abundantes não correspondem ao cenário real do destino da viagem, o filme revolucionário que repete mascaradamente as mesmas técnicas de espanto exploradas em excesso pelo cinema europeu? Pois romance erótico é um rótulo fadado desde o início ao banho gelado do anti-clímax, considerando uma classe de leitores bem intencionada para a qual o clímax ainda desperte um desejo estético de reavivamento nostálgico de antigas descobertas. Nada pode haver de novo no domínio da imaginação erótica que ganhe restrito potencial na palavra escrita, que possa prescindir da imagem visual e dos recursos da sonoplastia, bastando-se naquilo que hoje só compreendemos com uma generalizada percepção antropológica em O Amante de Lady Chatterley, Nexus, A Filosofia da Alcova, nos relatos de Anaïs Nin , etc. Nenhuma perversão hoje em dia é velada o suficiente para acharmos que não será na net, nos shows das cantoras do show business avalizadas pela Camile Páglia, ou nos eventos sociais da multidudinária vida cosmopolita noturna, mas nos livros, que encontraremos a redenção carnal de lubricidade inédita nunca alcançada. E um autor como Roth é inteligente o suficiente e comprometido por demais com áreas de exploração espiritual menos enredadas com as exigências industriais para não se ater a orgasmos, adultérios e primadas descrições de cópulas para tornar o romance interessante a uma fatia do mercado. Como em Lolita, O Teatro de Sabbath fala sobre a redenção pela repulsa, extrai do verniz colorido e frenético do sexo comercial tornado onipresente nas vitrines midiáticas a única forma ainda provocante de tornar a narrativa sexual genuína e legítima: o sexo como fator de omissão aos estereótipos sociais, como um desvio padrão insuficiente para expor as escoriações profundas da alma humana e das indagações apagadas mas não menos angustiantes que ela continua fazendo à filosofia, e que contudo se firma como uma opção subalterna poderosa por revelar a insuficiência inexaurível da normatização da vida oficial. Não é à toa que a cena mais excitante de O Teatro de Sabbath, a que consegue motivar aquele adolescente curioso pelo livro proibido de ginecologia que por ventura ressurge no leitor, é justo a que Sabbath imagina a sua esposa alcoólatra de quase sessenta anos se masturbando na cama. A esposa a qual Sabbath não sente nada além de um asco suficiente para abandonar o relativo conforto do lar e se tornar um mendigo em Nova York. Outra cena lúbrica é a da já famosa nota de rodapé mais extensa da literatura, a reprodução ipsis litteris do diálogo telefônico entre um Mickey Sabbath jovem e vigoroso com uma aluna prestativa ao extremo, com invocações diretas a todos os fervores sexuais que sua ainda não destruída saúde tinha direito a ponto de ser a causa de sua futura ruína social. Pareceria pornografia consistente se Roth não deixasse claro que a ninfeta tem um ar de retardamento alienado e pesa bem mais que o exigido para certos padrões do gênero.
Outro mérito de Roth é ser completamente decantado da necessidade de excessos de tinta para pintar esse painel já carregado de excessos de outros níveis. Em mãos apenas talentosas, o romance ofereceria espaços atrativos para a ironia, a caricatura e a sátira de tal forma que o autor não poderia recusá-las. Um dos passatempos preferidos do Sabbath velho e artrítico é visitar o túmulo de sua amante Drenka Balich de madrugada, num cemitério deserto e afastado, e se masturbar tristemente diante o retângulo de terra onde está enterrada a mulher que mais amou na vida. Sempre que está enredado nessa tentativa de absolvição solitária, lhe acontece algo ainda mais inusitado: o filho de Drenka, o patrulheiro do condado que o odeia profundamente, surge por entre as sombras para agredi-lo. Uma cena tal como essa é um ímã inevitável para que um romancista empregue sua verve rabelaisiana a fim de tornar a coisa convincente, extirpando os apêndices incômodos da inverossimilhança que provocam descrédito no leitor. Mas Philip Roth não usa de nenhuma ironia ou astúcia humorista para descrever essas cenas: a impressão de absurdo vem ao leitor, mas de uma forma que causa uma identificação com a inerente propensão humana a se desvestir das aparências sociais e se entregar ao desamparo. Todo o repúdio que Mickey Sabbath provoca, um personagem de carne e osso dos mais reais da literatura, se anula pelo seu gritante desamparo.
O Teatro de Sabbath, assim como Complexo de Portnoy, é desbragadamente engraçado. É um presente de prazer estético tão recheado de inteligência e gênio que só as cenas hilariantes já justificariam sua leitura. Sabbath foi enxotado de casa pela mulher, que não agüenta mais as humilhações a que o velho libidinoso a obrigava a passar, e, sem casa, vagando pelas ruas de Nova York com as roupas em estado lastimável, de repente se vê caído nas graças de um amigo de universidade que, ao contrário de si, prosperou exemplarmente. Esse amigo o leva para seu gigantesco apartamento de frente ao Central Park, o alimenta, o convida a ficar o tempo necessário até que Sabbath rearranje sua vida. E as forças que determinam que Sabbath sempre seja ingrato a qualquer tipo de bondade que bons samaritanos bem intencionados lhe destinam, o fazem cair mais uma vez no seu incansável vício de promiscuidade. As tentativas de Sabbath para levar a mulher desse amigo para a cama, e as fantasias a que Sabbath se entrega no quarto da filha do casal (explorando as gavetas das calcinhas da menina que está universidade), são carregadas de um pedante suspense que se resolve num riso solto não excluso de culpa.
Outros fatores que tornam esse romance grandioso é a exuberância da escrita de Roth onde tudo se encaixa sem revelar o molde e a premeditação, numa naturalidade que confere ao leitor a certeza de estar em boas mãos, de que o autor não vai escorregar um milímetro sequer, nem nas cenas em que Sabbath recorda o irmão morto na guerra. E a inteligência de Sabbath, sua música interna selvagem que ecoa Shakespeare, sua argúcia que não se rende ao pensamento institucionalizado e o desmoraliza até nos altos escalões da filosofia e do academicismo por conhecê-lo tão bem. A erudição e a lucidez de Sabbath parecem brincar com o pensamento recôndito de que tem algo de invejável ser um mendigo excessivamente culto, que opta pela dissolução por vontade própria e por um senso de rebelião que é o único digno e verdadeiro. Roth mais tarde escreveria uma trilogia de romances também com uma estatura tão assertiva, mas é com O Teatro de Sabbath que ele garantiu seu lugar entre os maiores escritores que a língua inglesa já produziu.
Tô lendo agora. Tô na parte que Sabbath tá lendo as cartas que o pai da Roseanna escreveu para ela.
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