Só há umas duas semanas que me ocorreu a pergunta do por que eu não dei o sobrenome de meu pai à minha filha. Meu pai morreu em 2008, e minha filha nasceu em 2010. Nada seria mais natural que um respeito elegíaco, o mero mas substancial instinto de perpetuação familiar, me fizesse dar o sobrenome Campos à Júlia. Me ocorreu só há duas semanas que o fato de minha filha não se chamar por completo Júlia Campos é o pior dos meus pecados. Foi uma descoberta tão repentina, que minha primeira reação em tentar fazer com que o arrependimento não me abatesse foi a de jogar a justificativa nos sintomas advindos com a inesperabilidade da culpa. Se só agora eu atentava para a vultosa culpa surgida com isso, após passados cinco anos, é porque havia um segredo, uma razão incógnita legítima, que deveria ter passado pela mente amargurada daquela pessoa que eu era. Há duas semanas, eu parei o carro, sentei em uma praça, cruzei as pernas, e fiquei olhando as palmeiras em frente à sorveteria, notando pelo canto do olho a sombra do rabo da culpa abanando em sua investida macia de uma outra dimensão para a dimensão em que eu estava. Meu Deus, eu disse, seriamente embasbacado, por que, POR QUE, eu não dei o sobrenome de meu pai à minha filha? Fiz um esforço feroz para lembrar de todas as circunstâncias psicológicas em que eu me atirei a partir do instante em que recebi o telefonema de meu pai, naqueles dias em que se iniciou nossa tíbia caravana rumo ao holocausto inescapável dele, após 15 anos de total afastamento um do outro, para desvendar o dilema. Eu tinha só uma certeza: era algo muito sério, pois desde que eu soube que seria pai, a paternidade tomou todos os meus horizontes e todas as minhas referências, de forma que se eu não herdei o sobrenome dele à minha filha, é por causa de algum rancor muito profundo, era alguma forma de diálogo que eu mantinha com ele mesmo depois de sua morte, alguma vingança, birra, alguma tentativa auto-desmobilizante e desprotegidamente desesperada de matá-lo uma segunda vez.
Não é preciso Freud para eu saber que eu sempre conservei uma vontade de matar meu pai. A morte asséptica do simbolismo encarnado, a figuração da extinção retórica e da extirpação mental daquele que me gerou e para quem minha incapacidade de comunicar-me com ele era inexoravelmente gritante. Eu queria matá-lo porque eu jamais teria a estatura exigida para que pudesse dividir com ele um diálogo descansado com conteúdo verdadeiro. Tudo o que nós falávamos entre nós se resumia a meu choro e a resposta ortodoxa que ele procurava adivinhar ter para cada ocasião. Nossas conversas eram testes tensos a que eram submetidas duas criaturas em um laboratório. Eu me achegava a ele como um parasita, para me grudar com tenacidade a seu couro, e ele fazia a pose de subserviência correta para que o processo de espoliação se concluísse o mais plenamente dentro das tabelas de mensuração. Mesmo quando estávamos cada um em seu sofá na casa deserta, durante minhas férias de julho, lendo cada um seu livro, a artéria brilhante que se podia ver com um pouco de percepção certa por entre a atmosfera metafórica conjugal estava lá, partindo dele para mim. Eu sempre tive a lucidez de saber disso: a única forma possível de interação entre meu pai e eu era a lacônica dança desgraciosa em que ele simulava grotescamente ser meu pai, e eu simulava grotescamente ser seu filho, e tanto ele como eu sabíamos que os modelos utilizados por cada um em nosso imenso desconhecimento dos papéis eram os piores existentes. Sempre fizemos as escolhas erradas um com o outro, e isso não podia ser apenas uma má sorte, uma vexaminosa inocência. No paradoxo de conservarmos uma única visão concordante de justificativa futura para todas as nossas faltas de acerto, acreditávamos que algo além de nós iria nos harmonizar. Meu pai deveria saber muito bem, deitado no sofá, que a postumidade dele era que equilibraria e daria conteúdo a tudo aquilo. Nosso diálogo pleno, atravessado de felicidade febril, nossas conversas por toda a noite, possuídos pelo entusiasmo, só viriam em um momento distante, muito provavelmente em que ele não mais estaria aqui. E ele estava cumprindo essa promessa da providência quando, 15 anos depois da última vez que nos falamos_ de novo uma fala mutilada e sem alma_, ele me telefonou. Eu recordo como se fosse agora. Era uma tarde, eu estava sozinho em casa, na bagunça de minha casa de solteiro, preparava para sair para cumprir não sei o quê, quando o celular toca. Eu atendo e ouço uma voz cinzenta. Ele pergunta se sou o Charlles, e depois fala que é ele, meu pai. Que precisa me ver, que está na capital. Eu rio, sem acreditar, e admoesto um amigo que tento adivinhar como autor da pegadinha. Ele diz, de forma contundente, que é ele. Daí eu compreendo instantaneamente, e lhe pergunto: "O que foi? Você está doente?" Ele nega com veemência, mas eu vejo que está, eu vejo que a coisa é séria. Eu vejo que se trata de um processo de despedida. Lembro que fico muito incomodado, não pela sua doença, mas pelos requisitos de sacralidade inescapáveis daquele rito de passagem que me era atirado em cima sem ter me dado tempo para me preparar.
Eu tenho um tio. Tio Jedson. Ele é cinco anos mais velho do que eu. Minhas lembranças mais angustiantes da juventude eram as conversas que meu pai tinha com esse tio. Passavam a tarde toda em um diálogo cheio de cumplicidade tranquila. Eu circunavegava meu pai, tentando promover com meus olhos acima da minha língua incapaz o arremedo mágico que trouxesse tanta facilidade. Eram momentos em que eu desejava fortemente matar meu pai.
Recordo que eu mesmo estava doente naquele ano de 2008. Descobri um caroço em meu testículo esquerdo. Um vizinho distante havia morrido de câncer de testículo, e eu passei a acreditar que eu tinha a mesma coisa. As pesquisas que eu fiz na solidão apontavam que a cirurgia de remoção dos testículos era o procedimento inevitável. Daí o médico implantava um enchimento de silicone por questões de estética, uma estética histriônica que já não interessariam a mais ninguém. Fui encontrar meu pai com esse pensamento em mente: que eu estava doente, e que se houvesse cura, eu jamais poderia ser um pai biológico. Intimamente, eu compreendia que a harmonia tardia e póstuma entre meu pai e eu se beneficiava com a repaginação adulta do acréscimo peculiar do sarcasmo. Ele estava em uma casa de repouso destinado a viajantes vindos de outros estados, instituição municipal que eu não sabia que existia. Eu fui com meu amigo Galeb, entrei no quarto indicado pela funcionária, e meu pai me perguntou: "Pois não? Quem é o senhor?" Eu disse: "O Charlles." Ele se levantou e me deu um abraço. Chovia exponencialmente. Ele estava com as canelas tão finas que achei um prodígio ele poder caminhar com tamanha desenvoltura. Conservava o topete. Sua esposa, que eu a conhecera há quinze anos, estava de seu lado. Sentamo-nos no alpendre, e eu percebi pelas minha antenas incorrigíveis que passara pela cabeça dele alguma fugaz maledicência sobre o real vínculo entre eu e o Galeb. O mesmo tipo de dúvida consumada que eu senti certa vez ao ver que ele depilava a virilha, e a vez em que ele julgou que eu era um drogado me avaliando diante sua cadeira em uma mesa de bar. O nosso eterno e inamovível descompasso continuava fiel. Agora eu era bem grande (foi essa estupidez apiedante que me passou pela mente), era bem maior do que ele, e eu tinha meu próprio dinheiro, então eu estava seguro. Quando a chuva passou, ele pediu para ver meu carro. Ele jurava que um modelo tão antigo não tivesse injeção eletrônica. Abriu o capô e viu a injeção eletrônica. Fez-me a proposta de ficar com meu carro e eu receber um carro zero quilômetro muito mais caro em troca, tendo que buscá-lo em sua fazenda há mil quilômetros. Ele estava muito magro, e me fez tal proposta no balcão de uma lanchonete em que lamentou não poder comer o bolo de fubá porque o câncer terminal de estômago que tinha não o permitiria. Bebeu um leite com café morno e esperou minha resposta. Me perguntou se eu, com todos os conhecimentos científicos que julgava que eu tinha, achava possível que o médico fizesse uma espécie de túnel reconstituído dentro de seu corpo, de maneiras que o estômago fosse feito artesanalmente com partes do intestino. Eu não soube qual resposta dar primeiro. Eu não queria trocar meu carro, estava bastante feliz com ele, respondi. Eu já ouvira falar de procedimentos do tipo que ele falava. Ele voltou animado e disse para sua esposa que eu achava que era possível, e inclusive sabia de pessoas que passara por algo igual, sobre a reconfiguração do intestino.
É uma balela ingênua achar que se descobre o momento indefectível em que acontecerá a conversa plena, cheia de significados. Ficamos ali sentados, falando sobre carros, ou antes eu o ouvindo falar vagamente sobre carros. É uma estupidez criada pelo romantismo requerer o direito da se estar vivendo um instante capital da existência, e uma estupidez maior ainda julgar que ele trará um jorro de riqueza espiritual encalacrada por décadas em uma suntuosidade de expressão sincera. Eu senti que estávamos mais boçais ainda do que na época em que ficávamos cada qual em seu sofá. Depois, eu ficava imaginando se foi uma simples falta de coragem, se eu abdicara de dizer a frase mais ajustável que acionaria a tão esperada relevância. "Bom pai, eu descobri que tenho um tumor no testículo, o que me obrigará à esterilidade na melhor das hipóteses". Eu poderia ter falado de seu topete, ter usado o tom amigável bonachão que eu desenvolvera tão bem em minha vida social, a ponto de ser visto como o comediante da turma, e ter exigido dele que me contasse sobre seus anos de galo ciscador. Como ele pegara minha mãe. Como ele subira naquele telhado do internato, cena de tantos relatos, e fizera com que uma moça tímida e com o coração endurecido se casasse com um boêmio que tocava viola.
Uma vez, eu o esperava em uma praça. Eu tinha doze anos. Eram nossos encontros semi-secretos em praças, ou na porta de igrejas, nas brechas do contrato judicial dos direitos dele em ver o filho. Um homem se aproximou de mim, se sentou de meu lado. Puxou conversa. Meu pai, que estava atrasado, chega no mesmo instante e rechaça violentamente o homem, violenta de uma maneira que eu nunca vira que ele seria capaz antes, sem mudar uma expressão do rosto, sem mover uma mão, apenas com o tom de voz. O sujeito sai às pressas. Meu pai se desculpa pelo atraso, e ambos começamos a caminhar em direção a uma prédio de dois andares de frente à praça. Subimos umas escadas circulares e entramos em um quarto grande, bem iluminado de sol, cuja porta estava semi-aberta, provavelmente quem estava lá dentro esperando avisado de antemão da nossa visita. Há um velho de barriga grande sentado à cama. Deveria ter oitenta anos, na minha concepção relativa de meus doze anos, o que me faz crer que tinha sessenta. Está só de camisa branca e com uma bermuda azul muito gasta, mas transmite, apesar da solidão do quarto e do ar geral de desistência, um ar de assepsia. Meu pai se senta ao lado dele, parece que vai tomar o rosto dele pelas mãos e puxá-lo delicadamente para junto do seu, mas não faz isso. Falam alguma coisa, durante uns vinte minutos. Meu pai fala mais do que o velho, mas o velho responde e corrobora com o assunto com uma concentrada prestimosidade. Eu fico sentado em um banco, olhando o quarto despovoado senão pela cama de casal, um armário, uma penteadeira e o banco onde eu estava. Meu pai me chama para irmos embora. Na sorveteria, último ponto de nosso itinerário corriqueiro, ele me diz sem que eu pergunte, com uma voz cheia de ressonância, uma voz que deixa adivinhar uma rica história por detrás, a voz que era, para mim, seu maior tesouro: "Aquele senhor trabalhou como palhaço de circo por muitos anos. Ele foi um grande palhaço de circo." Meu pai me olhou como pouquíssimas vezes era capaz de me olhar, me cobrindo por inteiro com os olhos, por distração aferida pela intensidade passional do que estava me dizendo me convidando sem delicadezas para a nossa tão esperada e desacreditada conversa. Eu me calei e baixei os olhos para o sorvete. Lembro disso com tamanha perfeição, como uma mancha na retina.
E contudo, eu não dei o nome dele à minha filha Júlia. Ele teria adorado minha filha Júlia. Ele tem mais duas filhas e um filho. As duas filhas disseram que ele era um pai maravilhoso, extremamente carinhoso. Eu sei que ele era. Eu não fui ao enterro. Um amigo do meu pai me telefonou: "Se quiser ver seu pai pela última vez, é bom se apressar, porque ele não passa dessa noite". Depois, no outro dia, um tio me ligou e com a voz correspondendo a todo ato social da más notícias, me disse: "É Charlles, você sabe... sinto dizer..." Alguns amigos passaram a ligar, e eu desliguei o telefone e me tranquei em casa. Ah se tivesse um cronograma de como se portar, de o que se pensar, de como chorar ou como deixar de chorar, de como se sentar e olhar do jeito certo o mato crescendo no jardim. O mato crescia com a velha selvageria desconjuntada e silenciosa. Eu quis jogar tudo para fora com o choro que me entupia a alma, mas a estridência denunciava a falta de similitude entre o sentir e o expressar.
Há muito mais formas de dizer do que com as palavras. As palavras, aliás, são uma mutação pouco efetiva do não-dizer. Se eu deveria ter trocado de carro? Na minha recusa havia todas as minhas respostas diante as tentativas dele por me dominar, ainda que eu soubesse que era apenas o velho medo de ambas as partes. O telefone toca novamente uma tarde, e a viúva dele me diz que ele deixou um montante em dinheiro e a pick-up da qual ele queria fazer a troca. Ela me liga várias e várias vezes insistindo para que eu pegue. Eu contrato um advogado e mando para ela o documento em que me abdico da herança, em nome dela e do outro filho e filhas do meu pai. Surge um período em que eu entro em depressão da qual nunca passara, com profunda descrença sobre o significado de deus. Eu havia lido uma biografia de Darwin, e aquilo acentuara mais minha sensação de total nulidade.
Faço um exame e o médico diz que eu não tenho nada mais que uma inofensiva anomalia de nascença no testículo. Minha namorada Daniele fica grávida, perde o bebê, fica grávida novamente, e nos casamos três meses antes que nasça a Júlia. Eu sei, eu sei com absoluta segurança, que eu sou um ótimo pai, ou pelo menos o melhor que eu concebo ser com todos os meus esforços. Todas as mínimas falas da minha filha eu respondo como se eu estivesse respondendo a uma adulto, mas com respostas honestas compatíveis a uma criança. A Júlia sabe que uma aranha tem oitos olhos, diz isso para a tia e a avó, que se surpreendem com a informação. Eu e a Júlia ficamos longas horas conversando. Muitas vezes eu tenho que calar meu receio de se ela vai interagir com todas as coisas que eu digo para ela, e ela nunca me decepcionou. Eu demorei me acostumar com a sinceridade desarmante da forma como ela fala comigo.
Nosso médico tinha dito que o ultrassom indicava que a Dani estava grávida de outra menina. Lara. Todos a chamavam de Lara. A Júlia dizia, todas as noites antes de dormir: "Boa noite mamãe, boa noite papai, boa noite Lara". Há duas semanas, na outra ultrassom, o médico diz que o bebê tem todas as medidas certas, e logo diz: "E vocês estão vendo ali o sexo, não?" A assistente, que ficou ostensivamente me observando esperando que eu chorasse como da outra vez, me diz, apostando que agora seria tiro e queda: "É menino!" Eu não choro. Na praça, quando praticamente dançamos por entre as flores ali plantadas, a Dani pergunta sobre meu mutismo. Claro que estou feliz, Dani, só estou compreendendo. É menino. Em casa eu chego com delicadeza à barriga e o congratulo, imaginando seu olhar atento e desfocado e toda sua capacidade extra-sensorial, toda sua inteligência pulsando ali dentro. Já sabe o nome?, a Dani me pergunta, brincando. Desde muito tempo, desde décadas. Eric Campos. Eric Campos.
Um relato dolorido, encharcado de humanidade.
ResponderExcluirGrande!, Charlles.
ResponderExcluirEstes textos que eu escrevo de madrugada são mau escritos mas muito intimistas. A insônia e a noite realmente retiram das pessoas o que há de mais profundo, estranho e escondido nelas. Uma mediunidade paradoxa, pois, ao em vez de invocar espectros de outro mundo, externam verdades bastante encravadas e terrenas. Eu mesmo não sabia metade das revelações que este texto trouxe.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários.
Ouso discordar do amigo: o texto não foi mau escrito, é de muito boa qualidade!
ExcluirE meus parabéns!!
Aproveite esse momento sublime!
Acostuma-te à felicidade que te espera!
Obrigado, Ricardo.
ExcluirSim, muitíssimo bem escrito.
ResponderExcluirFico envaidecido, meu caro Milton.
ExcluirIsto aqui não é um texto muitíssimo bem escrito. Vai além e chega mais próximo da "efetividade" do não-dito. E paro aqui pq sempre me acho repetitivo. Isso aqui é uma pérola, daquelas q não catalogo e saio por aí a mostrar ao mundo pq sei q cheguei até aqui, até uma espécie de verdade sobre charlles campos, tendo eu mesmo - pela possibilidade da tua generosidade impossível - descascado esse glauco.
ResponderExcluirquatro "aquis", como se esse lugar fosse um pouco meu. um abraço e bom final de semana!
ExcluirObrigado, amigo arbo. Forte abraço e ótimo fim de semana.
Excluir