domingo, 28 de junho de 2015

Submissão, de Michel Houellebecq



Duas coisas que Houellebecq disse em sua entrevista a um programa da Globo News me chamaram a atenção. A primeira é que ele demonstrou um certo descontentamento com o resultado final de seu romance Submissão, alegando que esse livro é "otimista demais"; a segunda é, ao final da entrevista, como despedida ele ter lançado a observação simpática à jornalista: "é uma questão (a do tema do livro) da qual vocês no Brasil vivem longe". Um livro que trata sobre o domínio ideológico progressivo da França por um partido islâmico, ao ponto de surtir mudanças radicais no âmbito social, trabalhado como foi por Houellebecq, realmente me pareceu tímido no alcance de sua crítica, algumas vezes desnecessariamente retórico, e pouco eficiente, o que, nas palavras do autor, se traduz pelo que diz de seu otimismo. Houellebecq, que muitas vezes demonstra uma percepção histórica aguçada acima da média, sabe bem que a vida de um escritor como Salman Rushdie não é nada agradável, para que ele próprio incorra no martírio em vida de escrever algo que abale a paciência de um chefe religioso até o nível deste colocar sequazes fanáticos assassinos em seu encalço. Faltou um amor monástico maior a Houellebecq pelas letras para que ele se desse em holocausto a uma causa, e tal atitude é totalmente compreensível para o leitor que o conhece por outros romances como Plataforma e O mapa e o território, em que evidencia-se a crença de Houellebecq de que o homem ocidental está com os dias contados. Os atentados de ontem, por exemplo, que vitimou vários turistas ocidentais em uma praia na Tunísia, com certeza ativou a memória dos leitores de Plataforma, em que se é narrado uma cena similar à realidade. Houellebecq concebe o homem moderno ocidental como um projeto eclodido por seu próprio hedonismo e frivolidade, por sua ausência de conteúdo e sua absoluta boçalidade, e por isso, é natural que esse homem seja substituído por um exemplar mais viril, mais darwinianamente apto à sobrevivência e à dominância; é natural que o homem ocidental adiposo e entupido de drogas de todos os tipos seja massacrado pelo novo homem oriental, que veio, após séculos, restituir seu lugar na história. Tendo-se isso em mente, a leitura dos livros de Houellebecq sofre um grande acréscimo de qualidade. Houellebecq, sob esta interpretação, deixa de ser um autor da moda, ponderado e passageiro, para ser um arauto sofisticado da visão lúcida, cheio de ironia fina e sutilezas.

Eu achava que supervalorizava Houellebecq com essa minha interpretação, mas a leitura de Submissão me ajudou a firmar sua relevância de grande visionário. Submissão é um livro assustador, cuja inquietação está nas entrelinhas e nas nuances, e não na parte emergente visível. A história em si é a mais linear e sem muito chamariz entre os livros de Houellebecq: a narrativa de um professor universitário que, paulatinamente, acompanha a ascendência do partido muçulmano francês até à eleição de seu candidato à presidência da França. Tudo se passa sete anos no futuro, e o narrador aos poucos descobre como a História só se concretiza quando arrebanha pessoas comuns como ele para dentro da tormenta. O narrador perde seu emprego, foge por um país de cenários desertos devastados pela conflagração da massa homicida, e tem seu livre arbítrio repaginado de maneira espontânea como exigência para ser aceito pelo novo mundo que o cerca. O modo como Houellebecq vai subindo o tom de sua orquestração é típica de um mestre, e nisso está a grandiosidade deste romance. A atmosfera espiritual em que o narrador transita parte da suavidade de um europeu culto bem sucedido, com sua solidão confortável de suburbano egoísta interrompida de vez em quando por encontros sexuais, e avança lentamente, anestesicamente, até o ponto em que tudo é retirado de apoio a seus pés. Ele nem vê como isso acontece. Ele, que é um homem com títulos universitários, com acesso às rodas mais sofisticadas e esclarecidas de intelectuais, que tem tv paga, internet de alta velocidade, uma visão aprofundada sobre a produção mental feita em cinco séculos passados para que possa se situar no milagre contemporâneo como um beneficiário da democracia e do humanismo, ele, pois, quando derrubado pela reviravolta histórica, se sente como se tivesse aberto os olhos agora, como se nunca tivesse estado . A ingenuidade do narrador seria meramente tocante, se Houellebecq não fizesse ver que é uma característica comportamental unânime de todos os franceses. E a força do livro está no fato de que esse diagnóstico não é dado com sarcasmo ou como efeito retardatário de uma fábula moral, em que o aviso incutido é de que os franceses (os homens ocidentais, no geral) deveriam acordar o mais rápido possível e tomar as providências para que o pior não acontecesse. Suponho que a lentidão da narrativa, e seu intercurso de diálogos políticos entre os personagens, são artifícios bem manejados pelo romancista para que escoe qualquer ressonância didática, o que faz com que estejam errados os críticos que viram em Submissão um Admirável mundo novo e 1984 moderno. Ao contrário destes dois livros, Submissão não é uma distopia, mas um romance de um realismo escatológico em que o resultado, que nos outros dois livros é anunciado em um futuro tão distante que parece super-dimensional, já está sendo computado no presente. A inequívoca falta de tempo para que as coisas possam ser consertadas, no livro de Houellebcq, retiram dele qualquer valor de previsão preventiva. O homem moderno é tão auto-isolado em sua falácia cultivada de independência e desenvolvimento, que só lhe sobra duas opções diante o conquistador bárbaro: a extinção abrupta pelos atos sanitizantes do terrorismo, ou a conversão ao novo sistema. Houellebecq transverte o conceito de barbarismo e evolução, ao fazer o leitor pensar em quem é realmente o mais forte: o europeu-americano, para quem o pós-colonialismo decretou sua total falta de propósito na corrida da história, ou o oriental de arma na mão e com convicções milenaristas arraigadas para quem a violência é a forma efetiva de varrer a flacidez dos derrotados dessa nova história afim de tomar seu lugar por direito. A dicotomia desfavorece em todos os sentidos o primeiro, em seu amoralismo, em seu vício compulsivo por sexo, dinheiro, glamour, moda e tecnologia estúpida de eterno entretenimento; isso tudo o torna uma espécime sem compasso ao determinismo biológico e geográfico (uma vez que seu próprio habitat sofre as consequências de sua estupidez). Em sua pouca aptidão à sobrevivência, a burrice em não ver os sinais da derrota, mesmo envolto com tantos diplomas tolos e excesso de informações, é mais um sinal enviado pela fisiologia em favor da suplantação pelo novo homem, o homem atuante, íntegro em sua falta de pieguismo para ver a necessidade da violência e do assassinato como legitimidade espiritual. O homem houellebecquiano é um integrante de uma espécie em franco suicídio; em todos seus livros, esse é o tema principal. Mas o tema de Houellebecq não para apenas na extinção, mas na substituição. O homem oriental é quase uma nova espécie, que inicia uma nova história.

Fiquei impressionado com a frase de Houellebecq, na entrevista citada no primeiro parágrafo deste texto, de que esta é uma realidade distante do Brasil. Não sei se Houellebecq é sagaz o suficiente para ter lançado uma ironia como última frase ao programa_ penso que se trata apenas de uma frase simpática, nada mais. À medida em que eu lia Submissão, eu me identificava cada vez mais com o narrador. O Brasil passa por um período negro de imposição sem reação de uma espécie de neo-talmudismo ultra-moralista, com graves consequências. O país se tornou um cenário fértil para todo domínio de massa no campo religioso e ideológico, com tentáculos lançados na política e na mídia. Jesus Cristo é um coadjuvante que serve para finalizar uma autorização hipocritamente piedosa para uma versão do Velho Testamento que avaliza toda espécie de ganância financeira e feroz desejo de poder. Simplesmente, as partes do evangelho em que se fala de caridade e condenação à usura, foram extirpadas. Acontece no Brasil, hoje, o que Dostoiévski falou em O grande inquisidor, a monumental cena descrita por Ivan Karamazóv em Os irmãos Karamazóv: o Cristo é uma figura simbólica, sem transcendência, robótica e totêmica, um amuleto que serve para atrair ouro e resposta à toda necessidade da carne. E tanto mais frutifica esse cenário, quanto mais o país se atola na crise. Mas é engano ver qualquer semelhança entre esses homens subjugados com os novos homens assassinos de Houellebecq. Estes, na premissa da sobrevivência, seriam os primeiros a se entregarem a um novo deus, se fossem lhes dado tempo para a conversão antes do massacre.

11 comentários:

  1. Charlles, eu até gostei da supracitada entrevista, mas aquela insistência da jornalista em saber se tal personagem era ele, ou se ele tinha feito algo parecido, me deixou um tanto incomodado, até me lembrei de uma entrevista do João Ubaldo, em que ele fora perguntado como tinha conseguido escrever com tanta riqueza de detalhes uma cena ocorrida no romance"sorriso do lagarto" em que é descrito uma cena de felação entre dois homens, aí ele já irritado de tanto falar a respeito que nem tudo o que ele escrevia tinha necessariamente ocorrido de fato, ele responde: "praticando com os amigos".

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    1. A repórter fez perguntas muito extensas, exibicionistas, o que deixou o Houellebecq visivelmente se policiando para ser gentil.

      Essa história do Ubaldo (muito engraçada), me fez lembrar de uma entrevista do Saramago ao Roda Viva. Um dos entrevistadores era muito, mas muito gago, gago de dar dó, e ele então empreitou uma pergunta angustiante que pareceu demorar todo o bloco para conseguir ser feita, ao que o Saramago respondeu: "Não. Próxima pergunta?"

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  2. Sobre Houllebecq, ele de fato estava bem desconfortável, mas parece que isso já é de praxe, mas a jornalista conhecia um pouco da obra e de suas idiossincrasias, uma outra coisa que eu notei foram os tantos cigarros que ele fumou, e eu acho que ele acabou ficando sem cigarros e teve que recorrer ao cigarro eletrônico, mas essa coisa de sempre querer saber se tal personagem é um alter ego do autor é tremendamente broxante, para lembrar de outro escritor, o Marcelo Mirisola costuma dizer que sempre escreve na primeira pessoa, já para que as pessoas achem que o personagem é ele(eu nunca li nada dele então não sei do que se trata a trama de seus livros) para chocar os leitores, mas só mesmo num país de retardados como o nosso para se acreditar em tudo o que está numa obra de ficção.

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    1. Uma conhecida nossa postou em uma rede social reclamação sobre o absurdo volume do culto de uma igreja daqui. Nós moramos a dez quadras da dita igreja, e desde as 19 horas de ontem, até além das 22 horas, se ouvia nitidamente a gritaria do pastor, e a voz aviária de pior tipo da estridente mulher que canta os hinos. O pastor, de manhã, já anunciava aos berros em um carro de som sobre o culto, usando palavras usuais de possessão e descarrego. Coincidentemente, a coisa foi programada no mesmo sábado em que acontece na cidade uma festa católica bastante popular_ pura coincidência, né. Essa conhecida foi retalhada nos comentários na rede social; ela foi xingada em baixíssimo nível, de maneira assustadora. Cheguei a pensar que, se ela saísse nas ruas, sua segurança estaria comprometida. E os difamadores usavam citações da bíblia, se chamavam entre si de irmãos, e segregava mais ainda a mulher como uma pessoa demoníaca e de coração pérfido. Tudo, claro, no português mais indigente possível. Um dos instigadores era o agiota da cidade, que ficou rico por usurpar em cartório as casas, carros e demais bens de seus devedores, e que todos os dias aparece na rede social compartilhando posts sobre combate à corrupção. Um país de estúpidos teleguiados, de ignorantes proto-homicidas, de moralistas ególatras violentos sem espiritualidade e sem substância. Confesso, mesmo, ter ficado espantado, apesar de achar que nada me espantava em um país como o Brasil. Neste sentido, Houellebecq é um alento.

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  3. Ou seja Charlles, daqui a algum tempo talvez eles irão trocar a bíblia por um AK47, e mandar a todos a seguirem a palavra de DEUS, ou então expurgando aqueles que não forem seguidores da "palavra".

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Caro Charlles,

    Parabéns!! Excelente texto, abrilhantado pelos comentários seus e os do Tiago. Não tenho nada acrescentar sobre o que foi dito e ilustrado; endosso tudo o que foi exposto e comentado tão bem. Só posso agradecê-los. É um dos raros prazeres que tenho com a Internet: ler seu blog. Novamente: obrigado!

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  6. Houellebecq subiu no conceito de Charlles. =) Ótima resenha.

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  7. Caro Charlles, leste isto?

    http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/222659-submissao.shtml

    abraço,
    Fernando

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