sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Rimbaud

 


Sempre tive um forte preconceito contra Rimbaud. O que um adolescente pode escrever de legítimo? Desde então meu desprezo total por ele. Afora o magistral romance do Le Clézio, Quarentena, em que ele é um dos personagens, eu não tinha nenhum rastro dele na minha biblioteca. Então me chegou esse volume de suas obras completas, por obrigação contratual, e, por puro enfado, peguei-o para dar uma olhada essa manhã e comecei a ler Uma estação no inferno. Li todas as 40 páginas com os olhos cheios de lágrimas e o espírito cheio da euforia contestatória diante uma entidade antiga, que nada tinha de adolescente e nem tampouco de francesismos. Então isso é Rimbaud? Então esse "negro", esse "filho de Cam",  como ele se define em uma das passagens, esse "ser de uma raça inferior", como ele de novo se mostra criticamente agregado aos excluídos da Terra, é o Rimbaud que por meio século eu ignorei? Essa alma transbordante de ternura, ódio celestial e amor humano!

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O gene, uma história íntima, de Siddhartha Mukherjee



Toda a humanidade veio de uma tribo de sete mil negros que morava na costa oeste africana há 200 mil anos.


Nós só pudemos nascer e estarmos vivos graças à mitocôndria, uma organela que habita as células e é responsável por minuciosas funções indispensáveis, e que só existe na embriogênese pelo óvulo, nunca pelo espermatozóide. Ela é trasmitida única e exclusivamente pela mulher. 


A fibrose cística, uma doença devastadora e fatal, é uma herança genética restrita a europeus e seus descendentes. Ela só se manifesta como doença se pai e mãe forem possuidores do gene correspondente, caso contrário, foi a sua presença recessiva no dna que fez com que milhares, ou talvez milhões de pessoas, sobrevivessem à peste negra. Seu comando genético determina a retenção de sais no corpo, o que impediu que o sintoma de diarréia intensa advindo com a peste matasse seus portadores.


Sendo simploriamente conciso nas conclusões suscitadas por esses dados, todos nós somos negros, somos femininos, e temos milhares de doenças escondidas em nosso genoma que tanto podem ser nosso holocausto quanto nossa salvação. E mesmo assim, estão disseminados pela sociedade, na história, nas religiões, no comportamento, na política e no pensamento midiático o preconceito contra negros e outras discriminações "raciais" estúpidas, o ódio contra as mulheres e a eugenia contra os fragilizados e "diferentes".


Por isso eu disse para a Júlia, quando nós iniciamos a leitura do soberbo O gene, do Siddhartha Mukherjee, de onde vem os dados acima, que este é um dos livros verdadeiramente religiosos. Se houver um propósito maior e mais sublime na nossa espécie tão combalida pelo ódio e pela ignorância, está aqui, na simplicidade chocante do nosso genoma (que é quase idêntico ao do verme), nessas zonas de silêncio e nesses espaços vagos na catedral genética. Tudo o mais é  a procura e a ânsia por saírmos do atraso milenar, do estarrecimento da existência que ainda compreendemos de modo tão errado. Mukherjee está repetindo o que vem sendo dito desde os profetas judaicos, desde Platão, Kafka, Einstein, etc.

Solenoide, de Mircea Castarescu

 


Vejo agora que uma cantora dos EUA disse que ganha mais dinheiro com fotos de sua bunda do que com shows. Isso tem relação direta com esse grande livro que eu encerrei a leitura, finalmente, hoje. Castarescu faz um romance escatológico. Uma apologia de seus cheiros, de seus parasitas, de suas unhas, de seus dentes, de suas exsudações, de suas glândulas. O romance é não só suas memórias recolhidas da infância, como seu corpo. Ele é prolixo, palavroso, interminável. Lá pela página 400, ele retorna de maneira exaustiva para a descrição de sua sala de aula onde é professor, em uma precária escola romena, e dos alunos e colegas. A Bucareste onde nasceu e vive é tão encarnada com seu ser que surge como um estômago de um monstro ciclópico com porões secretos e câmeras mortuárias com estátuas de vice reis gigantes. Em um país massacrado pela política desendividualizadora, em que as pessoas são números funcionais em um projeto capenga socialista, o narrador de Solenoide, o próprio Castarescu, se reafirma como espírito, como consciência, como atenção constante e incansável. Na era dos celulares, em que o motorista não consegue dobrar uma esquina sem se atualizar sobre a nova estúpida dancinha do tik tok, um romance de oitocentistas páginas de celebração dos poderes da atenção é o que Adorno dizia de que, no futuro (hoje), os únicos livros relevantes seriam os mimeografados. É por isso, e pela escrita soberba, que esse exaustivo romance é uma obra prima. Uma espécie de símile de A montanha mágica, pois se naquele romance Mann se mostrava saudoso de um mundo de altas ideias destruído pela primeira guerra mundial e o início efetivo do século XX, aqui Castarescu se mostra saudoso da interioridade lírica, do ambiente da infância, da lentidão da mneumônica, da religiosidade suspensiva da personalidade, que o século XXl decretou anacrônico e ridículo. Não é à toa que o idiotismo do homo cibernético, o que fica 24 horas por dia recebendo propaganda inútil entremeada a informações banais, possa reagir a essa exuberância do ser com ranço. Se a literatura se míngua em uma literatura menor, ligeira, curta, que pode ser lida em um dia e é nobeliada como representante passível dessa finada forma de arte, esse romance é uma afronta violenta, é uma reafirmação brutal da escrita. Castarescu aqui escreve para ninguém, como Soljenitsin fazia ao enrolar o manuscrito de seus romances e os enfiar nas frestas das paredes do Gulag, escrevendo só para si mesmo. E assim compôs um livro em que se pode habitar. (A tradução do livro é do ótimo Fernando Klabin.)