sexta-feira, 13 de maio de 2016

O quarto



Ter a impressão, um tanto singela mas não menos verdadeira e incômoda, que se gastou tempo demais amando os escritores errados; que a identidade procurada se revelou a farsa já há muito prevista de que não surgiria abruptamente, como uma iluminação, como uma compensação mística irretocável por tantos anos dedicados com afinco em querer possuí-la. A identidade, real e substanciosa, que se começa a ter, vem, antes, da destruição dessas superstições: jamais seria um escritor como os que amou pela vida toda. Jamais poderia, como sempre desejou fanaticamente, prescindir de seu contexto geográfico. Aliás, a geografia é o que lhe cobra mais rearranjos inteligentes: a opção de que se a transverta em símbolos concretos de um paralelismo imaginário, com a contradição tornada lógica de ainda assim manter o firme pé na realidade. Sente a sarcástica posição de que agora é que está lendo os autores certos. Lembra de seus incansáveis exercícios para ter a fluência veloz e elegante de Saul Bellow; recorda uma tarde, há 15 anos, sentado nas escadas de um prédio de escritórios, em que escreveu uma página inteira no caderno que era como uma psicografia, e que a releu mil vezes e mil vezes pensou que aquilo era seu amuleto. Então é assim (de certa forma é um ponto para ele ter tido sempre a presciência de que só poderia se tornar um escritor quando essa verdade libertária desmoronasse sobre ele). Uma vez escreveu para um amigo a tola declaração de que se algum dia se tornasse um escritor, seria um escritor médio-europeu. Quando escreveu isso percebeu imediatamente a tolice, mas aí é que estava a legitimidade da coisa. Alguém que tivesse algo para dizer não sobre si mesmo, não sobre suas tristes e desinteressantes vaidades mobiliárias do fetiche do ato da escrita. Lê Kertész, já famoso, especular se "perdera a profundidade". Nada lhe parece mais ridículo, ridículo a um ponto de lhe provocar náuseas, quando vê a pessoa se arvorar com o termo "escritor". Há inúmeros provocadores de náuseas no Facebook. Função: escritor. Escreveu o quê, e, mais importante: para quem? Um dia acessou o link disponível do romance de um desses escritores, leu a pequena obra toda num espanto de estoicismo, e ficou sentindo o velho terror de se ele próprio estaria tão patologicamente incapacitado para enxergar a si mesmo quanto aquela figura. Havia diálogos sobre religião tão simplórios, havia um auto-deslumbramento masturbatório na pretensa "surpresa" do final, que ele pensou: nenhum conselho é mais valioso do que aquele do Hemingway de que se você não conseguir se tornar um escritor, o que lhe resta é dar um tiro na cabeça. Um tiro metafórico na cabeça retiraria da visão aquele tom de importância arrogante do sujeito que não se enxerga. Ele jamais incorreria nessa falha de caráter; não aos 40 anos e o que lhe tem de vida pela frente. Acompanha com aquela falta de compromisso e total ausência de espiritualidade a alguns textos pelo Facebook. Mil compartilhamentos, mil comentários de "como tu és um gênio", para textos que só se tivesse uma lesão cerebral iria interessá-lo. Um dia vê o tema de doutorado de uma dessas sumidades_ uma mulher_, e é sobre não sei o que da sociologia relacionado à série de televisão The Wire. No mundo inteiro, achar alguém que ainda não perdeu a profundidade. Uma vez, há muitos anos, pediu a deus que se tornasse um escritor. Desde seus 14 ou 15 anos aprendeu por si mesmo, pela taxa de sofrimentos recolhidos que lhe cabia em sua então acentuada lucidez, a não pedir nada a deus para si mesmo. Mas nesse dia, talvez andando pela cidade, talvez sob a chuva, talvez suportando a dor então superalimentada de algum rompimento amoroso, pediu unicamente isso a deus. Comportou-se como se deus houvesse lhe respondido positivamente. Um dia chegaria. Abdicou das opções naturais de sua família para a acensão social. O que ele sempre soube é que a literalidade desse seu pedido era: Senhor, me faça possível ser um escritor médio-europeu. Sabia o que pedira. Não pedira a iconografia do escritor: a silhueta romântica da janela acesa na madrugada mergulhada em trabalho. Não pedira sequer reconhecimento. Não era modéstia, falsos pudores cuja capa invertida revela a situação do gênio não compreendido. Pedira na verdade a concentração, a seriedade, a chama. Era isso: pedira a Chama. Pedira a independência do artesão potente de ser deixado em paz pelo mundo, pela Alameda da Mentira. Pedira, como diz um personagem de A peste, "o possível para recusar a ficar do lado da praga". Pedira, em um entendimento profundamente pessoal, o sofrimento eufórico de ver tudo sob o prisma da perenidade sublocada resistente à mesmice, ao pensamento feito, ao rolo compressor das importâncias e certezas dos atos do cotidiano. Pedira um pouco de deus a deus. Pai, me faça partícipe, um associado para o qual não se lhe dê clemência, para o qual se lhe dê a visão suficientemente ponderada não mais que o limite para que sua mente insuficiente possa se abrir um pouquinho mais no sentido do terror e da alegria divina. Para ele não haveria prêmio maior. Volta a pensar nos escritores errados que leu a vida toda, os grandes, os canônicos. Claro que os julga errados agora por ter, de cada um, retirado o máximo que pôde. Agora se lhe cai nas mãos os escritores esquecidos, feitos para serem esquecidos, os grandes desbravadores de mais um dos infinitos campos de percepção da existência. Pai, me dê a sinceridade e me invista da ebuliência sanguínea necessária. Escrever apenas pela impostura e pela pose nunca lhe passou pela cabeça. Tem uma completa indiferença a isso. Poderia ter já publicado ao menos 3 livrinhos talvez substanciosos para certos nichos de visibilidade, mas o que seria isso? Historinhas de certo charme. Lembra certa vez, na infância, em que um escritor visitou sua sala de aula. Um escritor legítimo, do qual acabara de ler seu livro. Ficou muito empolgado, ouviu ao senhor ali em frente com um silêncio religioso. Hoje não se recorda do nome do homem, mas o título do romance era Duas lutas. Falava sobre rinhas de galo e o fato que lhe deleitou além da própria qualidade da obra foi ela ter dois finais. O leitor que escolhesse o que melhor lhe convinha. Sabe que esse tipo de livro não é para ele, que ele não conseguiria escrever uma história tão idônea, retilínea, honesta, vigorosa. Talvez depois, se algum dia se tornar um escritor, no crepúsculo da carreira. Não se julga melhor que esses escritores_ aliás, só ele sabe que não se julga melhor que ninguém. Apenas sabe que o que teria para dizer vem de outra fonte. A motivação do que tem para dizer vem de uma zona mais intimista de exploração. Sempre esperou pela grande ideia, a grande inspiração. Todos os escritores afirmam que ela não existe, mas nunca acreditou neles. De maneiras que, agora que acredita neles, em um contraste desconcertante, ela parece estar à sua frente, e é o mesmo livro que vem escrevendo desde adolescente. Só que o x da questão é que, agora, parece saber como abordá-la, de forma que ela mudou radicalmente, tornou-se uma ideia furiosamente nova. Kertész começa seu melhor romance, O fiasco, descrevendo maniacamente o quarto do escritor herói do livro. Aquela estante é assim e assim, aquela cadeira assim, a cama é dessa maneira, o tapete é de tal forma. Durante as estupendas 130 páginas do primeiro capítulo, a descrição do quarto volta recorrentemente entre as tantas reflexões e ações de cena: o armário e estante são assim e assim, a madeira é dessa qualidade. O escritor para poder pensar e escrever, se isola do insuportável barulho em torno colocando massas moldáveis importadas na posição profunda dos canais auditivos. É preciso essa repetição para firmar a constatação de que o escritor tem apenas aquele apartamento minúsculo para trabalhar. Todo o mundo lhe é inóspito e violento, e por isso cada detalhe inapreensível de seu reduto remete indelevelmente aos redutos de sua alma. O quarto é sua casca de tartaruga. O escritor de Kertész, que é o próprio Kertész, encontra-se sem ideias, desempregado às custas do emprego de sua esposa como atendente de lanchonete. O mercado editorial da Hungria despótica em que vive rejeita seu primeiro livro por o julgar pouco comercial; estariam dispostos a publicá-lo se ele aceitasse concessões, mas ele, como diz, não consome e não é consumível. Parado no corredor do prédio, ele tem uma iluminação (cuja cena é descrita em vários outros momentos da bibliografia de Kertész): a de que ele só tem essa vida, e de que essa vida é única e exclusivamente dele, e de que ele pode fazer o que quiser com ela. Que o que tem de escrever é sobre o que ele vem guardando intimamente de toda sua interação com a existência, e não pode ser outra coisa. Ser lido, ser publicado, passa a ser o menor de seus interesses. E por isso sua escrita é tão bombástica e sobrenatural, tão profunda e sinfônica. Quanto mais o escritor de Kertész se fazia esquecido e escondido, quanto mais ele se tornava invisível, no universo de seu quarto, não precisando de nada mais do que a folha e a caneta, mais ele cumpria o que lhe tornava humildemente acessível à inapreensível visão de deus.

4 comentários:

  1. "Quanto mais o escritor de Kertész se fazia esquecido e escondido, quanto mais ele se tornava invisível, no universo de seu quarto, não precisando de nada mais do que a folha e a caneta, mais ele cumpria o que lhe tornava humildemente acessível à inapreensível visão de deus."

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    1. Por incrível que possa parecer não fiz o comentário...
      Esse final do texto é fantástico,

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    2. Talvez o ato de escrever seja semelhante àquele dos pequeninos quando diante de um brinquedo dentre os dedos, a decifrar silêncios...

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    3. Um abraço para você, Ramiro. Obrigado.

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