Não é para menos que o fascínio diante os cinco livros da biografia de Joseph Frank tenha motivado David Foster Wallace a alertar os escritores contemporâneos sobre a necessidade de reaver a atmosfera espiritual apaixonada da Rússia de Dostoiévski. A leitura do primeiro volume da biografia me provocou aquela contrapartida recalcada que sentem os que, destituídos da felicidade, recebem uma maciça lembrança dela. Olhando desse lugar do tempo, com tanta metástase monstruosa da história entremeada, a impressão é que todos daquela época sofriam de uma ingenuidade enternecedora ao assumirem grandes ideias hoje cadavéricas, discutiam com veemência assuntos hoje tornados impossibilidades decretadas. Não é para menos que esse livro tenha fundamentado a lucidez em Wallace do quanto a ironia é a sobra fraca e auto-deletéria do mundo vazio de paixões em que vivemos nesse século. Vemos Dostoiévski atravessando as ruas de São Petersburgo, sob uma temperatura de 20 graus negativos, com o coração inflamado da felicidade de todas as possibilidades abertas pelo discurso, indo se reunir à Plêiade de Belínski, e sentimos o quanto nos custa a ausência dessa imunidade espiritual. Foi inevitável lembrar, no transcorrer da leitura, o poema de Eliot evocando nosso elmo cheio de nada, embora Eliot o tenha escrito no alto do século XX em que ressaibos dessas grandes ideias ainda podiam se manifestar em um niilismo combativo.
Deve ter provocado uma profunda angústia em Wallace, assim como me provocou a mesma angústia, ver o quanto a espiritualidade se reduziu ao silêncio de tal maneira que a alusão a certas palavras provoca uma retração sarcástica dos músculos faciais: espiritualidade, socialismo utópico, defesa dos humilhados e ofendidos, a opressão do bezerro de ouro, e várias outras. Não nos parece gritantemente infantis tais termos? O livro de Frank é generosamente povoado de nomes que nos causa um involuntário asco diante a fé descabida em abstrações anacrônicas. Fiquei impactado com a confissão de Wallace do que esse livro lhe provocara, a tal ponto que tinha que lê-lo o mais rápido possível. E esse livro é um ensinamento do que nos tornamos, o homem em geral, o ponto decíduo da história em que estamos em um processo de evolução cujo único lema definitivo é que a evolução nada tem a ver com melhora. O júbilo que o homem atual tem é o de expressar sua indiferença, emulando o Calígula de Camus que conseguia afirmar além do murmúrio e do constrangimento que a indiferença era seu único sentimento para com a existência. E Calígula cai bem na comparação a pessoas conectadas em um universo cibernético que nada tem a ver com a realidade, mas que lhes trazem a impressão cada vez mais sedenta de que são déspotas sensualistas prostrados diante seus computadores e celulares.
Terminei ontem o segundo volume dos cinco da coleção de Frank, e até completar todas as três mil e quinhentas páginas estou impossibilitado de me desviar para qualquer outra leitura. Não é só o deleite de se transportar para a geografia e a atmosfera ali tão bem revelada, mas tudo que o livro provoca em questões. Questões como a de que o escritor sem um tema legítimo é o mais vazio e mecânico dos artífices; da importância da fé sincera nas ideias fundamentais para poder escrever; de como os escritores e o mundo atual estão despovoados dessa fé. Questões históricas elucidativas como a comparação entre o sistemas penitenciários czarista e o soviético: como John Gray escreveu, os três primeiros anos do stalinismo matou mais que nos quase 400 anos do czarismo, e vemos sinais disso no quanto as prisões antes de 1917, por mais atrozes que fossem, eram bem mais humanas e permissivas que as que se seguiram. Dostoiévski, por exemplo, se preso fosse sob o domínio de Stálin, teria sido exterminado nos primeiros meses; e Stálin dizia que as prisões czaristas pelas quais passou fez dele um homem culto, pelo provimento de leitura que nelas havia. E vai ver foi por essa reavaliação dos níveis de agruras que fez com que o chefe absoluto de estado soviético fosse muito mais impiedoso com seus inimigos.
Ontem fiquei surpreso por falar sobre Rafael Saddi a um esclarecido amigo professor, e ver que este amigo não sabia do que se tratava. Saddi deveria ser importante no cenário nacional, mas ninguém o conhece, e deveria ao menos ser relevante entre a classe dos professores estaduais daqui, mas é quase um completo desconhecido. O fato alardeado de sua prisão política provoca a mesma sensação de anacronismo histriônico de certas palavras que ressaltam que vivemos em uma realidade de brinquedo. Também ontem eu e a Dani dissemos à Júlia que ela não deveria mais dividir o lanche com os coleguinhas de sala, porque a Júlia nos contou que ela dividia o lanche, mas as amiguinhas não faziam o mesmo porque seus pais lhes diziam que não era para dividir. O mundo de Dostoiévski e o nosso nos mostra o quanto o ser humano é adaptável, e o quanto o automatismo realiza essa característica nos níveis mais rasteiros.
Terminei ontem o segundo volume dos cinco da coleção de Frank, e até completar todas as três mil e quinhentas páginas estou impossibilitado de me desviar para qualquer outra leitura. Não é só o deleite de se transportar para a geografia e a atmosfera ali tão bem revelada, mas tudo que o livro provoca em questões. Questões como a de que o escritor sem um tema legítimo é o mais vazio e mecânico dos artífices; da importância da fé sincera nas ideias fundamentais para poder escrever; de como os escritores e o mundo atual estão despovoados dessa fé. Questões históricas elucidativas como a comparação entre o sistemas penitenciários czarista e o soviético: como John Gray escreveu, os três primeiros anos do stalinismo matou mais que nos quase 400 anos do czarismo, e vemos sinais disso no quanto as prisões antes de 1917, por mais atrozes que fossem, eram bem mais humanas e permissivas que as que se seguiram. Dostoiévski, por exemplo, se preso fosse sob o domínio de Stálin, teria sido exterminado nos primeiros meses; e Stálin dizia que as prisões czaristas pelas quais passou fez dele um homem culto, pelo provimento de leitura que nelas havia. E vai ver foi por essa reavaliação dos níveis de agruras que fez com que o chefe absoluto de estado soviético fosse muito mais impiedoso com seus inimigos.
Ontem fiquei surpreso por falar sobre Rafael Saddi a um esclarecido amigo professor, e ver que este amigo não sabia do que se tratava. Saddi deveria ser importante no cenário nacional, mas ninguém o conhece, e deveria ao menos ser relevante entre a classe dos professores estaduais daqui, mas é quase um completo desconhecido. O fato alardeado de sua prisão política provoca a mesma sensação de anacronismo histriônico de certas palavras que ressaltam que vivemos em uma realidade de brinquedo. Também ontem eu e a Dani dissemos à Júlia que ela não deveria mais dividir o lanche com os coleguinhas de sala, porque a Júlia nos contou que ela dividia o lanche, mas as amiguinhas não faziam o mesmo porque seus pais lhes diziam que não era para dividir. O mundo de Dostoiévski e o nosso nos mostra o quanto o ser humano é adaptável, e o quanto o automatismo realiza essa característica nos níveis mais rasteiros.
Charlles,
ResponderExcluirConquanto seja desolador, seu breve escrito é um retrato real da nossa época, de nossas vidas. Diante daquilo que expôs tão bem e de maneira tão lúcida, veio-me à mente (Não ao acaso, penso) uma pergunta que dá título a um livro de Tchernichévski: "O que fazer?" (Aliás, recentemente traduzido para o português). Essa é, na minha opinião, uma pergunta urgente diante do caos e do vazio, e de toda angústia que eles trazem consigo, especialmente se pensarmos que para ela, infelizmente, não haja resposta.
Abraço,
Marcos
Não sabia da tradução do livro do Tchernichévski, Marcos. Ele é muito citado na biografia do Dostoiévski. Vou atrás.
ExcluirOntem veio um grupo de mulheres e crianças da igreja da minha esposa aqui em casa, para um chá de fraudas. Eu os deixei à vontade e saí para jantar fora. Um pessoal bem intencionado e muito agradável, e que tem um grupo no whatsapp chamado para o qual fizeram questão de "adicionar" a Daniele. A Dani, desde ontem, não tem mais sossego; ela me mostrou as dezenas de mensagens que recebe a cada hora, de 42 mulheres diferentes, desejando bom dia, bom apetite, boa noite. É algo cômico, mas que pode fazer enlouquecer. Os atos sociais estão cada vez mais vinculados às forças da alienação, e, convenhamos... um tanto vazios e cosméticos.
Errata: chá de fraldas. (Sempre tenho problemas com essa palavra.)
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